NISE DA SILVEIRA E AS IMAGENS CONSCIENTES

Outras Peças Literárias

Por: Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros *

Dra. Nise Magalhães da Silveira (15.02.1905 – 20.10.1999) tem sido abordada por diferentes perspectivas, sendo necessário o estudo de seu papel a serviço da comunicação, tanto entre humanos como principalmente desde a infância, sua capacidade de decifrar a linguagem dos animais, utilizando, como ninguém, esse dom que relatava desenvolver desde os cinco anos de idade, quando viu sua grande amiga, a galinha Pedrês , ameaçada de morte. Filha única, vivendo num casarão com quintal e varanda no bairro de Bebedouro- Maceió, costumava brincar com os animais da casa, sendo sua preferida Pedrês, uma galinha muito bonita, sarapintada de preto e banco, de crista bem vermelha. Durante muito tempo acompanhou a capacidade da amiga de se auto proteger nas brigas dos outros bichos, e estar atenta a sua presença, quando se chegava roçando-lhe as pernas, para ouvir as histórias que a criança solitária lhe contava.

Um dia, chegando na cozinha, encontrou Pedrês presa embaixo de uma mesa. Dirigindo-se a ela, a menina Nise lhe pergunta o que está acontecendo para ela estar ali amarrada pelos pés com as asas trançadas para trás. A amiga olha para ela tão comovida, com lágrimas escorrendo dos olhos bico abaixo, que lhe transmitiu a notícia fatídica: vou ser morta agora para ser o seu almoço!! Diante da mensagem recebida Nise dá um grito de tanto horror, que seu pai, Professor Faustino Magalhães da Silveira, correu assustado e abraçou a menina em prantos, gritando para não matarem sua amiga. Ninguém a convencia de que Pedrês estava enganada. Dra Nise dizia ter sido impactada pela dor de sua amiga diante da morte, ela uma galinha que cacarejava com tanta alegria saudando a amiguinha. Naquele momento, comovido com aquela empatia da filha com o animal de estimação, o pai proibiu a morte de qualquer animal naquela casa. Dali para a frente nunca mais Dra. Nise emudeceu diante da ameaça de morte de qualquer animal, principalmente gatos e cachorros, seus considerados, amados e respeitadíssimos “Coterapeutas”.

Em fins de 1920, seu pai preparava, como informa em entrevista a Ferreira Gullart, um grupo de estudantes que pretendiam ser médicos. Destaco desse grupo a própria filha do Professor Faustino (única mulher do grupo), seu sobrinho Mário Magalhães da Silveira e o aluno dileto Arthur Ramos Pereira, que tocava um dos dois pianos de cauda da sala, em dueto com sua mãe Lídia, antes de começarem as aulas. No início de 1921 o professor viajou com esses estudantes para Salvador, para acompanhá-los nos exames, o que se tornou hábito para os três que, até à conclusão do curso de medicina em 1926, contaram com a presença do mestre que viajava para Salvador em todo período dos exames de final de ano. Nessas ocasiões o professor Faustino comentava os esforços dos quatro, afirmava que tanto sacrifício não deveria redundar na formação de três funcionários de laboratório farmacêutico que só soubessem prescrever remédios, sem pesquisas maiores sobre saúde e os clientes. Exigia que fossem algo mais, que se dedicassem a promover novas coisas no campo da saúde no Brasil, no que foi atendido: Dra Nise revolucionou a Psiquiatria, Dr Mário Magalhães, grande sanitarista, modificou a saúde no Brasil quando, à frente do Departamento Nacional de Endemias Rurais, erradicou as principais doenças endêmicas do Nordeste e do interior do Brasil, como verminoses, tracoma, maleita, todas as doenças transmitidas por mosquitos e hanseníase. A Arthur Ramos coube, como primeiro catedrático de Antropologia e Etnologia da Universidade do Brasil, desmascarar as teorias europeias racistas, demonstrando a ausência de consequências degenerativas na miscigenação entre diferentes povos e etnias. Como primeiro Diretor Efetivo do Departamento de Ciências Sociais da UNESCO em 1949, empreendeu luta pela paz, contra o analfabetismo, preconceitos e dominação pelas armas, superioridade econômica ou corrupção, de uma nação sobre outra.

Quando quis me tratar com mais intimidade, eu - personalidade seca e avessa a grandes manifestações de afetividade, Dra. Nise me disse que eu tinha sido alimentada com leite de onça, o animal mais arredio e brabo da selva e da catinga, passando a me tratar desde então, de forma carinhosa, como “Leite de Onça”.

Numa das longas aulas que me dava enquanto desfiávamos horas de lembranças de Maceió e sua vida na crônica de seu amigo Arthur Ramos, companheiro de preparatórios e da Faculdade de Medicina em Salvador, dileto aluno do Professor Faustino, me explicou: Os seres humanos portadores de qualquer característica especial , que os distinga das demais pessoas têm imediatamente um desenvolvimento extraordinário da percepção, registrando com rapidez o momento em que é percebido e visto como diferente, fenômeno popularmente conhecido como “sexto sentido”.. Com o passar do tempo passa a captar, como se tivesse um radar, qualquer sentimento, olhar ou gesto de censura ou rejeição, reagindo com temor, desolação, agressividade ou afastamento daquele ser que o segrega. É o início de um comportamento autista que, levado ao extremo, leva a pessoa atingida a se isolar do mundo, quando é diagnosticado em diferentes graus de esquizofrenia. Ela afirmava então que os segregados sociais, como mendigos e populações de rua são procurados por gatos e cachorros também de rua, que se aproximam deles, roçando-lhes as pernas até serem percebidos e aceitos por eles, tornando-se ambos inseparáveis, em perfeita comunicação um com o outro, partilhando os restos sociais que lhes sobram, mas sem o isolamento a que seriam condenados sem aquele animal de estimação.

Eles se comunicam evitando o mutismo que os isolaria da convivência humana. Cachorros e gatos de rua e dos antigos telhados sempre se juntavam em bandos para auto -proteção, embora preservando a dose necessária de hostilidade para a auto- defesa.

Em seus trabalhos sobre o “Afeto Catalisador”, a psiquiatra apontava a capacidade afetiva desses animais, focada em qualquer tipo humano, sem viés crítico, dando-lhe substrato de vínculo com o mundo circundante, impedindo-lhe o isolamento fracionador da personalidade, em sua percepção da realidade circundante. No Hospital Psiquiátrico do Engenho de Dentro os animais eram criados em todo o território por onde circulavam os portadores de problemas emocionais, para serem conquistados por aqueles animaizinhos vadios que perambulavam pelos jardins e oficinas de tratamento. Juntando afeto e arte, o método da Dra. Nise mediava os espaços de perturbação da mente humana, abrindo comunicação entre seres vivos, aí incluída a natureza, para a retirada das grades que protegem na realidade os chamados NORMAIS, da convivência com os diferentes.

Tanta importância tinha para seu método de reabilitação mental a percepção afetiva dos animais, que um dia me explicou porque eu, que não afago gatos nem cachorros, podia frequentar sua casa e suas oficinas de trabalho: Leite de Onça, você não afaga nem um desses meus amigos. Eles servem também para me alertar sobre o caráter de quem me procura. Quando chega alguém aqui em casa e toca a campainha os bichinhos vão ver abrir a porta. Se algum deles se arrepia ou arreganha os dentes, não deixo entrar! Às vezes eles se afastam e ficam observando a visita, o mesmo fazendo eu. Com você não; eles se roçam nas suas pernas e ficam querendo saltar no seu colo, achando que você vai acarinhá-los. E você, por burrice, fica arisca. Eles sabem que você não deixaria ninguém lhes fazer qualquer mal. Como eles sabem, eu não sei; só sei que eles me dizem que você é dos nossos!

Sua relação com esses animais era tão conhecida que um dia, estando em sua casa, telefonaram para avisar que o prefeito Conde, do Rio de Janeiro, soltara várias carrocinhas apanhando cachorros de rua. Furiosa com a notícia, a Dra me entregou o caderno de endereços e me mandou ligar para o gabinete do prefeito, dirigindo-se a ele com fúria, chamando-o de covarde, criminoso, e que mandasse prender a mãe dele! Ameaçou de chamar a imprensa para denunciá-lo, conseguindo a promessa de suspensão daquele ato de governo.

Em 1991 a Dra sacudiu o Brasil com uma campanha de denúncia de uma das mais populares festas de Santa Catarina, a “Farra do Boi”, onde multidões se divertiam com diferentes formas de tortura dos bois sacrificados como entretenimento. De 19 a 24 de março daquele ano, a médica protetora dos animais, com Perfeito Fortuna - criador da Fundição Progresso (Circo Voador) na Lapa, a Comunidade da Rocinha e intelectuais (artistas plásticos e de teatro, jornalistas, psicólogos, psiquiatras, antropólogos e professores de diferentes especializações) e tipos populares do Rio de Janeiro, juntamente com Instituições Protetoras dos Animais, promoveram um evento de ocupação de palcos, praças e mesas redondas, intitulado “Forra do Boi”, culminando com belo desfile de um mundo de pessoas fantasiadas de animais no Aterro do Flamengo, em direção ao Museu de Arte Moderna. Divulgadíssima pela imprensa carioca, lia-se na Convocatória:

A violência cada vez mais presente em nosso cotidiano tem um poder negativo tão sutil que penetra nas mentes das pessoas e estas passam a absorver os atos de violência como coisa normal. Trata-se das maiores barbaridades como se troca de roupa.

Há muito vemos pintarem pessoas que pensam de forma inversa. Inverter tal situação é obra titânica. Se nos ligarmos às coisas boas da vida, como a alegria, o amor, as forças da natureza – tudo ficará do nosso lado.

A FARRA DO BOI representa, para nós, o nível a que chegou o desamor entre o homem e a natureza, já que o boi é um fator de integração com nossos instintos mais naturais.

Encontramos o Boi em diversas manifestações culturais do Mundo. Na Índia é um animal sagrado, considerado, nos antigos Vedas, como a última manifestação antes da encarnação humana. No Estado de Santa Catarina, o Boi de Mamão conta lindamente a história da colonização daquelas praias pelos açoreanos. O pacífico povo daquele estado se sente impotente diante da forma cruel com a qual o boi é torturado durante a “Farrado Boi”, a ponto de preferir se afogar a ter seu sofrimento prolongado.

A maneira, pacífica mas firme, de que dispomos de favorecer a consciência crítica ampla, é a de reunir e mostrar as inúmeras formas de expressão artísticas e culturais inspiradas pelo Boi. Para tanto, convocamos todos os bichos para ajudar o Boi a sair desta enrascada. É

A UNIÃO DOS BICHOS PELO BOI, de 19 a 24 de março, quando nosso querido amigo mostrará porque foi escolhido como símbolo de paz e de união entre todos os bichos.

É nesse clima de paz e alegria, acima de tudo, que o Circo Voador/Fundição Progresso e a Comunidade da Rocinha, coordenados pela Dra Nise da Silveira e Perfeito Fortuna, apresentam a “FORRA DO BOI”.

Como comunicadora ela atraia para seu círculo de amizade e de trabalho pessoas que partilhavam suas ideias e idiossincrasias, como sua amiga Lya Cavalcanti, famosa taquígrafa do Senado Federal, jornalista que trabalhou na BBC de Londres, transmitindo notícias da Segunda Guerra Mundial. Sobre ela afirmou em crônica Carlos Drumond de Andrade, ser a mulher mais inteligente que ele conhecia. Na casa da Dra. Nise encontrei essa sua amiga Lya, partilhando com ela o amor pelos animais, morando no Cosme Velho, com mais de sessenta cachorros e gatos, enfrentando as denúncias da vizinhança e combatendo as políticas de carrocinhas dos prefeitos prendendo os cachorros pela cidade. Lya e a Dra. participavam de uma Sociedade de Proteção aos animais, em período em que essa defesa conferia a seus agentes epítetos de loucos. Mas elas se comunicavam muito bem com seus objetos de estima, respeito e proteção. Morrendo muito idosa, na rua General Glicério em Laranjeiras, Lya deixou seus bens para quem cuidasse de seus bichinhos, sacrificando-os quando atingissem condições penosas de vida.

(*) Antropóloga. Doutorado em Ciências Sociais; Pós-Doutorado em Antropologia; Pós-Doutorado em Ciência da Literatura .

Artigo publicado no Caderno B do Jornal Gazeta de Alagoas Fim de semana 5 e 6 de novembro de 2016

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