LIAMES E CONCHAVOS

Contos

Plácido Nunes

Nem sempre o porvir surge ornado de esperanças. E se existem esperanças e luz nessa roda-viva, não saberemos definir que precisão divina compôs Justino, que doses de rancor e maldade foram acrescentadas à sua alma, que tipo de toxina letal corre em suas veias e vibra ao chegar aos ventrículos, que angústia insólita corrói os seus dias e transforma a sua vida numa treva violentamente atraente, numa batalha de planos e conchavos, como se cada hora fosse só importante se alguém sofresse, chorasse ou mergulhasse no abismo das decepções, dos fracassos e do desespero.
Suas vítimas preferenciais são os amigos, se esse termo puder ser aplicado às pessoas que convivem com Justino. A morte provocada por esse demônio moderno se traduz por uma perda do ânimo, da alegria, da existência, da divindade e da crença no céu. Analisando o comportamento diário, os sonhos, as expectativas, os romances, as falhas, os erros e as grandes chances, Justino vai se apoderando da alma e da intimidade dos que o cercam, cria laços de dependência, corrompe os valores, multiplica a impotência dos que se submetem aos seus conceitos e retira de todos o maior tesouro que possuem: a fé em Deus!
Não encontramos em seu perfil desfigurações monstruosas ou psicopatas, não dissecamos de seu espírito traumas infantis e nem síndromes edipianas e nem mórbidas disfunções cerebrais congênitas ou adquiridas. Talvez tenha sido influenciado por Sade ou Maquiavel, mas duvidamos de que tais leituras tenham chegado aos seus olhos ou ouvidos. Filmes de terror ou suspense não estão entre os seus escolhidos. De Laclos foi bebido o gosto clássico pelas cartas, porém aliviava suas tensões ouvindo Beatles e Strauss. Que traço pode estar oculto em seu ser que somos incapazes de arrancar à força ou através de conjecturas? Que segredo inviolável poderia ficar à tona e fazer desmoronar toda a sua estrutura pagã? Que liame há entre o seu dizer abertamente que a morte de Deus é remota e que não há mais glória em alardear essa boa-nova?
Que anjos decaídos andam por aí sabemos, mas o que nos impressiona é que os tais filhos bastardos da incoerência e da tecnologia vagam bêbados, drogados, sem preocupações triviais, sem poesia, sem rumos, sem aréolas e sem asas. Que cor poderia preencher a lacuna da imensidão das perguntas obsoletas nesse momento? Que razão teria Justino para convencer veementemente os seus amigos de que a vida não é uma dádiva e que todos os conceitos cristãos de amizade e amor já não ultrapassam o dólar? Que desejo incauto embriaga o ego desse diabo sem rabo e sem espeto? Que licor não seduz essa má fumaça em forma de homem? Justino volta agora do Correio.
Os fins intensificam os meios. Sua carta não era de uma malícia comum. Dizer a seu irmão Teobaldo que a traição é um brinde à socapa e que, se possível fosse, comprasse o mais luxuoso dos ataúdes para Natália ainda assim não soaria fútil, pois a conclusão da correspondência era magnânima: "deixo o seu coração acreditar em minha dignidade e nada acrescentando às intempéries que possam, nesse segundo de mácula, conduzir-te a erros pueris, sou obrigado por amor fraternal a relatar um nome: seu melhor amigo Antenor.". A carta chegou às mãos de Teobaldo como o furacão Katrina e se havia estrutura inabalável em todo o seu ser, tudo ficou poeira e sombrias avalanches de desconfiança e ódio, desmoronadas certezas de virilidade e de fidelidade, ruínas de tramas e acertos de contas. Natália escolhe os últimos adereços de seu enxoval. Sorri como se fosse uma sobrevivente do holocausto.
Inveja? As dores do mundo não suportariam o peso ou a leveza do enigmático descuido de Justino. Lembrou-se de que esquecera, no mercadinho da esquina, o seu guarda-chuva. Que alívio! Que sorte! Saiu, como disparo de fuzil, em direção ao mercadinho, passou pela sorveteria do Seu César veloz e mal acenou. Lá vai o desmiolado do Justino! Credo! Não fale desse modo do Senhor Justino! Ele é um encanto de ser humano! Mais dez passos e viu Carlos, o açougueiro, gritar do outro lado da rua. Justino! Justino! Tem carne fresca hoje! E os demônios-irmãos nada puderam fazer. A olhada súbita para Carlos retirou todo o campo de visão de Justino. Sentimos pela primeira vez um sorriso ocupar a sua face e a resposta esperada por Carlos veio como vômito de sangue, pernas e braços arremessados como antípodas em espaços infinitos, dentes como pérolas lançados ao asfalto, cabelos, pele, roupas afogadas na maré vermelha de soro e células. Os carros solidamente passaram e o barulho da surpresa e da dor contaminou a vizinhança.
A chuva, naquela manhã, cessara rapidamente. Não eram perceptíveis mais sinais de chuva. Justino sabia da impossibilidade de chover, mas o seu guarda-chuva dava-lhe o ar que o seu arquétipo requeria. A perda do guarda-chuva seria rasgar o tecido etéreo da sua alma. Descoberta a fatalidade do esquecimento do objeto adorado, desvencilhou-se de tudo e seguiu para a estrada do vácuo, para o vazio das horas.
O corpo continua ali estendido. Chove levemente sobre a cidade. Tudo quase pára. O dono do mercadinho veio ver o que acontecera. Está com o guarda-chuva de Justino. O sangue coagulado vai-se dissolvendo com as gotas de chuva. Natália não tinha mesmo grandes afeições por Justino. O inferno ri de si mesmo. Não aprendera a chorar.

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