JUMENTO PODE SER JEGUE, MAS NÃO É BURRO

Crônicas

Sérgio Soares de Campos

Jumento, asno e jegue são sinônimos, designam o mesmo animal da espécie Equus asinus. Segundo alguns pesquisadores a denominação jegue é uma adaptação de “Jack”, uma das palavras para asno em inglês. Contam que, durante a segunda guerra mundial, os oficiais das bases americanas instaladas no Nordeste chamavam o bicho por esse nome, logo os brasileiros criaram a versão aportuguesada de “Jack” para “jegue”.
Inegavelmente o jumento foi elemento importante para o desenvolvimento da nossa cidade, pois, além de ter sido o meio mais utilizado para o abastecimento d’água, também transportava tijolos, telhas, areia e matérias
diversos utilizados nas obras de construção civil; e, no âmbito comercial, frutas e mangaios para as feiras livres e mercadorias em geral para as lojas. Acredito que, por esse motivo, no ano de 1969 o então prefeito Adeildo Nepomuceno Marques, acertadamente, resolveu homenagear o jumento com uma estátua junto do seu condutor (Candinho). Hoje já conhecemos diversas cidades no Brasil que resolveram prestar homenagem a esse tão querido e inteligente animal.
A escola de samba carioca Imperatriz Leopoldinense foi campeã do carnaval em 2002 resgatando um pouco da história do jumento no Nordeste, com o enredo “Mais Vale Um Jegue Que Me Carregue, Que Um Camelo Que Me Derrube... Lá no Ceará”. Dois ícones da música brasileira louvaram o jumento: Luiz Gonzaga cantando aquilo que o Padre Vieira pregava, “O jumento é nosso irmão”; e Chico Buarque de Holanda, que também fez homenagem ao bíblico muar, compondo “O jumento”. No entanto creio que o grande Chico Buarque cometeu um equívoco em sua obra. Senão vejamos parte da primeira estrofe:
Jumento não é
Jumento não é
O grande malandro da praça
Trabalha, trabalha de graça
Não agrada a ninguém
Nem nome não tem
É manso e não faz pirraça...

Certamente o jumento “não faz pirraça” com os mesmos objetivos que as crianças costumam fazer ao “empacar”, causando transtornos às mães aflitas que não conseguem fazê-las retomar uma caminhada sem que lhes atendam determinadas exigências. O empacar de um jumento e sua pirracenta determinação de não continuar atendendo ao comando do seu dono têm objetivos, digamos, mais pragmáticos que a simples chantagem emocional.
Assim como os índios brasileiros, que nunca aceitavam as imposições dos exploradores portugueses, espanhóis, holandeses ou qualquer outro, o jumento é igualmente discriminado por não aceitar certas regras que os seus donos tentam lhes impor. Diz-se que a um jumento “acostuma-se, mas não se doma”.
“Jumento empacado”, eis uma sentença com a qual designamos pessoas que, mesmo diante da evidência de que estão agindo de maneira errada, não mudam seus comportamentos. Porém um “jumento empacado” (stricto senso) tem real motivo para o seu comportamento. Na verdade o jumento é um animal que, no conjunto de suas manifestações instintivas, reconhece facilmente as situações de perigo iminente. Esta é a verdadeira razão da sua “pirraça”, tanto que não se tem registro de caso em que um jumento tenha sido vítima da armadilha conhecida como mata-burro. Portanto, tentar submetê-lo a uma “cega” obediência ao comando é perda de tempo. Nunca tente, por exemplo, fazer o jumento pular um obstáculo, pois ele considera tal proeza como uma situação de perigo.
Ao contrário do que se propaga, o jumento é um animal muito inteligente e de um senso de sobrevivência bastante apurado. Para se lidar com um jumento é preciso ser mais inteligente do que ele, necessário se faz saber que o jumento tem características físicas diferentes dos cavalos, o jumento não é tão rápido nem tão potente quanto o cavalo, por outro lado é bem mais resistente e ainda mais paciente do que este. Em todo o mundo ainda o usam como meio de transporte de cargas.
É muito comum, aqui no Nordeste, vermos um jumento empacado à beira de um riacho, recusando-se sair dali, mesmo sob açoites, ou, estando desenvolvendo sua relativa velocidade, estancar bruscamente, baixar o pescoço e arremessar seu condutor ao solo. Ele, nessas situações, certamente identificou o que nem mesmo o próprio dono pôde identificar: uma situação ameaçadora, o perigo iminente.
O jumento jamais poderá ser considerado vagabundo, no entanto, pelo visto, contrariando a afirmação do Chico, o jumento, entre seus pares, pode ser tido, sim, como o grande malandro da praça.

Crônica publicada em 23/10/2006

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