SEJA QUEM QUER QUE SEJA

Contos

Por Marcello Ricardo Almeida

Trovão. Trova. Troveja. A melancolia da lentidão do passado fazia tudo circular. Gerw Schäädl, pai de Rein Schäädl, o Chinelão, sentado num banco de madeira pregado à parede ao lado de fora do quiosque, numa Santana que não existia mais. A cidade transformou-se. Eram noites escuras. Prédios em todas as ruas, altos e iluminados, iluminados e ricos, ricos e cobiçados. No ar, o trânsito enlouquecia. O pai Gerw tentava adivinhar o conteúdo dos transeuntes com os olhos. A narrativa da nova cidade era mortal e silenciosa. Ao acordar entre a fumaça e a poeira de lado a lado da rua, papai Gerw Schäädl sentava-se à porta do quiosque num banco de madeira que pertenceu ao avô Schäädl e nele sentia o alívio necessário ao homem com a sua idade. De herança em herança, o banco viajou sem data. Uma madeira grossa e rota cujo marceneiro anônimo trabalhou à época em sua simplicidade. O banco gasto possuía o exato lugar de sentar-se. Papai preparava o cigarro caseiro com as unhas. O olhar perdido na Rua dos Enforcados. Gerw Schäädl, quando não era vestido em brim, era em calça e blusa de moletom, boné puído e chinelo de dedo, Eu construí meu vida ticholo por cima de ticholo. A abelhudo veio e recramou de nós, do óleo fedorento que espalhei no madeira. Enquanto me criticavam, eu comia leitoa. Ria, que se dobrava, e outra vez ria e ultrarria. Hoje, quero polenta com toucinho. As unhas dos dedos dos pés grandes e enlutadas. No quiosque do papai Gerw Schäädl, o Schäädl vendia alho, cigarro, cabo de martelo, carne defumada, corda, botina com solado de pneu, pincel, sal, facão, vinagre, fumo de corda, feijão, arroz, fubá, carne seca, toucinho, farinha, bala de laranja, de limão, de tangerina, leite em pó, prego, parafuso, querosene, vela, lâmpada, peixe seco, conservas, cachaça de banana, cerveja, picolé, bacia de plástico, copo, biscoito, pão, fósforos, botão, açúcar, milho, gaiola, pá, xerém, azeite, pedra de amolar, enxó, alicate, café, chave de fenda, tecido, mangueira, sabão, lâmina de barbear, temperos, vassoura. Dentro do quiosque predominava a sombra e um cheiro agridoce. O papai Gerw Schäädl tinha uma relação mítica com aquele terreno na Rua dos Enforcados. Em volta de casa, ele colhia milho transgênico semeado por drone, na época do milho, feijão, no tempo do feijão, laranja, macaxeira, batata doce, beterraba, cenoura, tomate, morango, laranja, limão caipira e levava-os ao quiosque com as unhas dos dedos dos pés grandes e enlutadas. Ficaram para trás as exibições de filmes nas feiras, o vaivém frenético da Tecelagem WuuB, os gritos no quintal e a ajuda que nunca vinha, a cana-de-açúcar plantada para fazer o melado de cana no alambique de fundo de quintal movido por velho aplicativo, que ele aciona de onde desejasse acionar, fosse das bananeiras ou da sombra do abacateiro, da goiabeira, do pé de acerola quebrado numa noite de vento. Trotrovejaveja. Trova. E que trovejasse! Trovão. Trum. Treco. Telecoteco. Trovejava. Trovejaremos. Trovejamos. Trovejais. Plá! Trum. Tam. Truntrum. Tá. Plá. Estalo. Tururum. Trá. Trabuco. Tântrico. Virum e vra. Vrum. Brum. Tudo era Babel feito Babélica de Bebel, disse, e viu o Panema; botou água pelos olhos, pelas ventas. A maior crueldade que possa existir, disse, é impedir a pessoa de amar quem ela ama. Asioteia, Asioteia, aonde vai Asioteia, Asioteia aonde vai com Píndaro, na calçada que leva ao lugar onde o silêncio já vai começar. Santana mudou o seu nome de cidade, Santana. O rio roncava em sua perenidade de navegar. Temos um rio navegável? É o que se vê. Hoje, pedi a ti nova bicicleta, que voasse, igual ou superior ao modelo que me deste e, de manhã, vi a luz; sonhei ser atleta. Trovejaremos. Trovejamos. Trovejais. Trovão. Plá! Trovar. Eétrum. Truntrum. Tá. Plá. Estalo. Tururum. Trá. Trabuco. Tântrico. Virum. Verum. Vrum. Brum.

No ônibus, na viagem de volta, ainda sopravam as palavras do governador Von Wruund nas orelhas de Chinelão. As palavras inventadas do governador Von Wruund confundiam a sua cabeça. Trovão. Trovar. Trum. Té. Truntrum. Tô. Tá. Plá. Tururum. Tá. Trá. Trova. Trovador. Troveiro. Trabuco. Tântrico. Vrum. Brumbrumbrum. Catapum. Trovão. Plá. Trum. Estalo. Tururum. Trá. Trabuco. Tântrico. Virum. Vrum.

Todos os dias, o ônibus que levava os trabalhadores da fábrica passava na frente do prédio do Jornal Civitatis. Chinelão escutava o barulho do ônibus. Continuei no jardim por horas e contei todos os pés de flores e vi que alguns necessitavam de um pouco de vida. Prossegui e contei as rosas no olho, e disse que a minha vida tinha gosto de bílis. A minha realidade sempre foi muito real, quase insuportável. O ônibus que levava os trabalhadores da fábrica passou outra vez defronte ao Jornal Civitatis e Chinelão disse que o emprego na fábrica era um emprego condicionado à realidade daquela vida talvez fosse suportável. Na fábrica, ele inventava nomes e povoava as máquinas digitais com nomes que saíssem da sua cabeça, e os nomes incomuns dos vizinhos de Chinelão foram enchendo as suas memórias. Cercou-se de nomes bizarros a partir do próprio Rein Schäädl. A sua figura se duplicava através da janela do ônibus que o levava à fábrica. Anteontem, dispensaram o cobrador; ontem, foi a vez do motorista. Os hipermercados ficavam abertos 24 horas; não havia caixas, não havia fiscais, se alguém quisesse consumir, comprar, pagava com o olhar. Imaginou o município sitiado e foi subjetivo, contraditório, cheio de superficialidade. Conversava com Elaineeew que só existia em sua cabeça e inventou uma família de esquisitos nomes, ele com Asioteia, ao invés de vê-la com Píndaro. Santana, que não era mais Santana, via os pais de Chinelão, Gerw e Pubhiccas Schäädl, com olhos de estranha conclusão. Os seus irmãos p Maaxx e o Moorrittzz, além do velho, o Ottiwaak, casado com a Gaayaa, e via também o Hesmee e Joohaphaaneezzw Schäädl, e as irmãs prostitutas a Líccia, a Thrauuy e a Terta, e o líder religioso, o Friwef, e o governo, o Von Wruund. Chinelão via a cartomante-mor passar com o sorriso fluorescente, e acenava; ela não lhe retribuía o aceno, e ele guardava o aceno cheio de vergonha. Viu a Tecelagem WuuB, viu os amigos do pai, o Ralf Baallweibttiz, viu o Heinz Küiellhlerwz, viu o Rayzaweinhphoo Säuglingsheim, o Ruudoolphzwiz Einreizzwitries, o Cakeephoo, o Pablooweinkaraza, o Saavegra, o Bobbyebeybye Gaaagh, viu o latoeiro, o Fraantz, o sapateiro Schoof. O barulho do motor se confundia com os pneus no asfalto e as imagens apareciam e desapareciam quadro a quadro nas janelas do ônibus. Quis o pai, não fui eu; o pai guardou o ódio. E zulivre retumbou dentro dos ouvidos de Chinelão. O tecido verbal do governador lhe saía pelas ventas, boca, olhos, ouvidos. A verborreia dele lhe atrapalhava, a verborragia infinda queria emprenhar-lhe pelos ouvidos. Invadiu às janelas o verborrágico Von Wruund; quebrou-se em vários pedaços. O governador foi internado, o governo estava doente, publicam em hologrfamas. Todos tinham acesso a isso, era só piscar. Os armados nas ruas. Piscava-se as pálpebras e tomava conhecimento. Doença? Ninguém acreditaria. Durante a internação, o Von Wruund ficou arisco. Os poderes da cartomante-mor livram-lhe do desespero. O Von Wruund não ia admitir atitude jocosa em dias assim. O monocrático fazia as suas necessidades na cama sob o efeito de ais. Sabia como eles me chamavam? História. E eu leigo falei que a história queria apenas saber a história da história, se a história permitisse à história cuja história fosse ainda história. Asioteia, a última vez em que estive com ela, ouvi dizer que estava com uma viagem marcada pra Maceió. Fazer o que em Maceió, Asioteia, se você tem Civitatis? Só preferi viver aqui, Chinelão, enquanto Santana ainda era Santana. E quando Santana ganhou o belo nome de Civitatis? Santana inchou, Chinelão, inchou. Casas incharam, secou toda à vontade. E, hoje, voo a Maceió. Maceió, Asioteia? Irei a Maceió. Este lugar não existe mais.

Um letreiro, ruído pela ferrugem na entrada do hospital, dizia que apenas o tempo desmanchava o tempo. Von Wruund fugia das fortes doses de remédios. Não vou ficar nessa cama molhada e fedorenta. Levantava-se à pressa, ia cumprimentar colegas, bem está esta manhã, Napa Leão? E tu Ju Lio Cê Zar? Olá, professor Mal Thus! Como passou essa noite a sua senhora, a Dona U. Topia? No meu estado de espírito, a imoralidade passou a ser um prato açucarado. Vamos à farra, gritou, vestido num pijama branco com manchas e uma pasta escura grudada. Senhores, estou me sentindo num atoleiro de sentimentalismos. Chega noite! Por que ela demora? Sou tomado de manhã por autocomiseração, meio-dia sou um cadáver, à noite um ufano incorrigível. A minha retórica foi comprada a preço de banana. Ela? Troquei por linguajar fluido e volátil, ainda recebi troco. Troco a retórica pela linguagem do povo e não peço torna. O meu coloquialismo brigou com a sintaxe. Quem consegue controlar uma sintaxe cheia de caprichos? Meu coloquialismo não conseguiu. Escutaram isso? É o burburinho das massas. Viram o Dr. Pleonasmo? Era a carne de minhas unhas ontem e, hoje, sumiu. Espere. Falaram agora ao meu ouvido que o Dr. Pleonasmo foi encher a cara em copo de vidro grosso, ele e os estereotipados. Alô Pi Cazo, olá Dr. Mor Reau! Todos sabem, nunca foi novidade a ninguém que eu sofria de fissuras que apavoravam a minha política. Estou concluindo meu Tratado da Governabilidade. Queriam ler? O primo Ner Ro é fogo na roupa! Mas ninguém, em Civitatis, comemorava a internação. Hoje, fui, peremptoriamente, abandonado pela cartomante-mor.

Não, não, não fuja, Dr. Von Wruund. Chegou a hora. Se me incomodar, enfermeira, você vai ouvir o meu grito seminal à noite toda. Vai querer isso pra você? Queria ficar de castigo numa biblioteca, gritava batendo os pés. Hoje, eu não tenho estofo onde repousar a consciência. Senhoras e senhores, quem foi que me confinou nesses trajes de menores? Venha, Dr. Von Wruund, eu troquei a roupa de cama. Senhora enfermeira, eles me prenderam numa biblioteca molhada e fedorenta. Foi isso, não foi? Separatista imundo! Um colega de quarto gritou todas as letras. Caramba, carambola, fruta-do-conde. Não foi culpa minha se o mundo quis ser um e depois os cambitos não suportaram o peso do câmbio. Enfermeira, por favor, enfermeira, eu perdi o meu caderno; estava ali a caneta também. Prometi e jurei, solenemente, ler o Tratado da Governantabilidade em voz alta. Escreva, aí, no caderninho gordurento. Irrompe do nada e disparava a correr. Esse meu amigo não tinha fundos. Preferia cair no fundo do poço, mesmo sabendo que ele não tinha fundilhos. Fundo do poço! grita. Do poço! Ouço! Oco! Eco! seguiu com os berros e gestos desassombrados, Ouço! Oco! Eco! Fundo do poço! Prefiria cair. E a voz da enfermeira atrás dele: Zéééééé. Ó, Zé! Não és nenhum vocativo, Zé. Ou és? Sai, daí, Zé! Preferia o poço, mas não posso. Zé; oh, Zé! Sai, daí, seu sádico! Von Wruund, sem controle da situação, confessou durante o arroto final que não se importava com esse empobrecimento. Ele não queria nem sentir o cheiro. Ignorava de propósito. Disse com ímpeto autoritário. No ônibus de volta à fábrica, Chinelão matava os seus demônios à unha. E, dali, via a cidade entregue ao lixo e a gente abandonada. Via o pai, naquele comércio de secos e molhados, se dizendo rei da Pedra do Reino. Via a confiança e via o medo na cidade.

Chuva. Ruas. As janelas fechadas. Chaquaquaquaquaqualgava o lotação choaquaquaquaquá apertado de trabalhadores fabris. Riozinhos engordavam, córregos obesos invadiam as ruas de Civitatis. O Rio Civitatis penetrava na terra e não voltava à superfície. Chovia em Civitatis feito choro escuro e demorado. A cidade não vai passar dessa noite, repetia Chinelão, os morros desmoronavam-se e engoliam ruas de casas. Civitatis afundava-se numa sopa de barro arenoso. A chuva ficou chovendo e choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu choveu um amontoado de barro revolto. Chuva e lama engoliram a cidade e os moradores.

Balas de laranja! Balas de laranja!
Quem vai querer balas de laranja?
Ói, ó, ói bala, bala, bala de laranja!

De manhã, a chuvarada teve merecido fim. O dia em Civitatis voltou com todos os estados patológicos.

O retorno é mesmo uma renovação? perguntou Asioteia. E Chinelão ficou calado ante os portões da fábrica, que lhe oportunizou programar e reprogramar a máquina.

O tempo da humanidade não é o tempo da divinização! disse. Ela riu, ele retribuía com risos fosforescentes.

Naqueles dias quentes e chuvosos, o vento frio era uma lâmina de aço que vinha do bananal e lambia o cabelo perfumoso da lavadeira, tia de Asioteia. Ocorreu uma pergunta na imaginação de Rein Schäädl, e Chinelão, como era chamado na tecelagem Rein Schäädl, fez tremendo esforço ao abrir a boca: Ei! disse. Por que ontem as roupas estendidas e balançadas pelas máquinas dentro da fábrica pareciam pessoas aflitas, como se fossem folhas de bananeiras? E a máquina respondeu-lhe qualquer coisa com jeito e gesto de surpresa. O cabelo de Asioteia chicoteava o seu pescoço! disse, mas a máquina não decodificou o que ele disse. Retalhos de perguntas atormentavam sobremaneira a máquina, disse, porque ela recriou o passado num quebra-cabeça neurótico. A Lavadeira, como Chinelão deu nome à sua máquina, em sua calma era nervosa e as suas emoções pareciam emprestadas de outra máquina. No chão, formigas taiocas paravam em conversas de segredos. Amanhã, uma formiga disse a outra entre as engrenagens da máquina, nenhuma formiga irá interromper o percurso.

Na noite anterior, nuvem de formigas deixou a máquina e cobriu Civitatis. Chinelão viu, e tentou consertar. Tudo inútil. Nomes. Pá. Velas. Malemolência. Tijolos. Silêncio. Outras máquinas jogadas nas ruas. Madeira. Cruzes. Umidade. Flores. Vazio. Muros. Árvores artificiais. Mofo. Fotos. Barro. Gramas. Buraco. Pedras. Memória. Sepulturas.

Bricolagem a vida de Rein Schäädl, o Chinelão. E a máquina questionava-lhe se as formigas copularam algum dia em sua frente. Ele respondeu à máquina com outras perguntas, O que conversavam as formigas? Por que estavam com pressa? Dentro do formigueiro de taiocas havia túneis? Durante a última guerra, não, porque não houve ameaças de guerras. Durante a última ameaça de guerra, disse o narrador onisciente, secretas passagens abrigavam os corações arrependidos. Chinelão notou um erro no sistema. E o seu coração obrigava-o à pressa e os pensamentos o amarravam nas imaginações.

Devia ter alguma passagem secreta para fugir do velho tempo, quando ele vinha lhe puxar as orelhas. Desde que deixou o cemitério em meio a nomes, pá, velas, malemolência, tijolos, silêncio, ruas, madeira, cruzes, umidade, flores, vazio, muros, encalacrado, árvores, mofo, fotos, barro, gramas, buraco, pedras, memória, sepulturas, Chinelão passou a misturar realidade e imaginação.

...?
Repetiam-se dia a dia os temores que assombravam Civitatis.
Chinelão, com cabelo repartido ao meio, gritou – Pai!
Quem taí?
Soeu!
Eu?! berrou, lá dentro do quiosque, com as portas fechadas. Eu quem?
Eu, ora! Quem sou eu? Eu sou eu.

Gritou por gritar, porque sabia que uma vida de retalhos o fê-lo feio e raso. Esperou em vão do silêncio uma resposta e se foi na Rua dos Enforcados. Quais lembranças ficaram? Ele não ia responder à máquina que estava entre a mão e as pálpebras. A máquina, em seu silêncio de máquina, queria dele tão-só uma ou duas piscadelas. Ele lhe ficou devendo. Ela era paciente; poderia esperá-lo por uma eternidade. Ele parecia não compreender que ela só lhe esperava uma piscadela, um comando de voz. Civitatis queria só escapar de lugares-comuns no lugar-incomum no qual se encontrava. Não havia ponto de fuga, segundo as opções da máquina, que esmiúça uma vida que podia ter e não teve. Não apenas era desligá-la; ela continuava viva. Vivia como se dormisse um sono leve. Ele ia, cedo ou tarde, ser engolido pela alucinação dos algoritmos. Só, arrastava a mão esquerda no caminho, na calçada da muralha na Tecelagem WuuB.

Na Rua dos Enforcados garimpava consolo. Como se lembrava? Isso não era uma máquina, Píndaro. Era Asioteia, sobrinha de Cleobulina. Asioteia filha de Temistocleia e pai desconhecido. Neta da feirante D. Xântipe e do marceneiro de muletas, ambos mortos, queimados no incêndio provocado pela vingança de fogo do marceneiro Zeugma. Deixou-lhe à cabeça o zumbido da inconfundível voz, Quem? Quem taí? Estabeleceu-se uma pausa. Nom – era o decalque da língua local falada pelos mais velhos cujos novos consideravam-na ridícula e se esforçaram para negar a tradição. Nom era o infechoso de marca maior que se dicia meu filho? Demôio! Com dificuldade, Chinelão suportava aftas e crises de gastrite. Por que, pai? O pai devia ter um buraco desse tamanho no cérebro. Ele nunca quis falar a língua que se exigiu que ele falasse. Viu passar em sua frente o operário Laio, viu passar Tebas, viu Abrão e Abraão. Opinião por opinião valia menos se comparada à sujeira de um mosquito! disse. Ali, da janela viu o dia só sem sol. O dia acordou enjambrado. Num banco de madeira, imaginava-se ele e a mãe. Nas ruas, só os olhares e, dentro da cabeça, o silêncio e as lembranças, a realidade em frangalhos.

Enterrou-se nas mãos. Os sapatos, mãe.
Que sapatos?
Movimentava-se a cidade. Civitatis faminta, apressada.
Os sapatos. Eu não era mau aluno.
Sapatos? Parou de tomar os remédios! disse, e brilhava a fluorescência na boca da mãe.
Remédios, mãe?
Por que ficou alterado?
Porque trocou de assunto.
Eu? disse a mãe com o seu sorriso fluorescente.

Falava de sapatos, não de remédios. As máquinas, mãe, eu vou instalar as máquinas naquele canto da casa. Nós éramos de rapadura ou de queijo cottage? Esperou em vão que a mãe falasse qualquer coisa. Falasse, mãe!

Passou a vista nas telhas pontuadas de musgo.

Não queria ouvir essa coisa de sapateiro comia tacha. Aqui em casa todos conhecem aquele fornecedor de couro que vendia em condições. Se ele vendeu em condições ao puto do Schoof, por que não vendia a mim? Pra nós, mãe. Me escutou, mãe? Sapatos, mãe. Sapatos masculinos, femininos, sapatos infantis. Por que gritou?

Gritei de medo, seu folgado!
Não sou folgado.

Safado! Folgado e relaxado. Com essa idade? Malandro sem-vergonha. Voltasse imediatamente à fábrica. A economia fabril e as relações determinavam o que era bom. A conduta dos moradores foi por muitos anos ditada pela fábrica.

Chinelão fugiu da conversa da mãe que não parava de falar. Na Rua dos Enforcados, Chinelão queria assistir aos deslizamentos contínuos e abruptos de terras. Ao suntuoso prédio, o pai arrastava até lá as unhas enlutadas, ajoelhava-se na primeira fila da nave principal e comia as contas do rosário trazido em seu pescoço. Mastigava lento e, às vezes, apressado. Todas as orações desciam ao estômago do pai; as conhecidas, as desconhecidas, as inventadas, os pedaços das que fosse por ele lembradas, as imaginadas, e as que poderiam ser criadas. Dizia um “rogai por nós” e ficava bêbado de repeti-lo, e via anjos em movimentos nos vitrais das janelas enormes. Repetia um punhado de “rogai por nós”; e as preces caíam em seu estômago, e ele fechava os olhos. Rogai por nós. Baixava a cabeça com outro “rogai por nós” e apertava o terço, era outro “rogai por nós”. Em calças de riscas de giz, Chinelão, na porta, ouvia o “rogai por nós” cheio de caretas e dentes miseráveis. Saía Chinelão; resmungava; a mão na parede sem reboco em um canto de muralha da Tecelagem WuuB. A sua boca se encheu d’água ao sentir o cheiro de carne crua na salmoura e no tempero. Eu vivi até agora e morrerei a qualquer momento, resmungava. Aftas perturbavam-no. E ele tentava trá-lá-rá ou ensaiava uma polca no bico com assovios tortuosos. Às vezes, sentia-se alimentado pela gastrite. As estações dentro dele (no verão o choro, no inverno a revolta, na primavera se considerava rejeitado e eufórico no outono) manifestavam-se todas elas antes do meio-dia.

Subjetivo, contraditório e cheio de superficialidade. A imaginação fervia.
Acontecimentos com Chinelão não eram lineares.
Tudo o que lhe cercava merecia ser duvidado.
Uma bagunça os tempos verbais e a vida.

Quem governava fazia o que fazia. Estou num estado de miséria. Ladeava a muralha da Tecelagem WuuB esfregando a mão esquerda na parede úmida e áspera da fábrica. Nuvens derramaram-se. Na Rua dos Enforcados, há o hálito dos esgotos, o cheiro de ônibus. A chuva forte, sobre a hipocrisia, com cheiro molhado. E os dejetos apodrecem no estômago da cidade. Ônibus roncavam com cheiro de óleo em combustão. Os cheiros em Civitatis misturavam-se num sanduíche com folhas murchas de alface, carne mal passada de porco, tomate, cebola, pepino e ovos em fatias, maionese e catchup. A chuva vai derreter o mundo hoje ou logo amanhã cedo; ela vinha forte, em rajadas; às vezes, uma poeira d’água fazia da cidade lama. A terra não poderia absorver tanta chuva. De vez em quando, uma tosse seca, Chinelão parava um pouco e, novamente, a conhecida voz, Cai fora daí, insolente; a pneumonia te levará ao buraco eterno! Quem? Quem taí? Soeu. Eu Quem? Trá-lá-rá. Civitatis apodrecia na chuva. Na atmosfera opressiva, ele caminhou na terra molhada e nela sentiu o cheiro característico da morte. Viu o povo frio numa época cheia de hostilidade. Os laços eram frouxos em Civitatis e não estreitos, pois cada qual em borralho comia mingau. Nada que cheirasse a novo interessava a essa gente. E com gestos e expressões estranhos, Chinelão arrastava a mão na parede encharcada.

A turba tomava as ruas de Civitatis. Os gritos ecoavam em todas as partes como se desse vida ao Dr. Brado. Cresceu, tomou corpo, inundou as casas. E não havia rua, beco, avenida, condomínio fechado sem que não houvesse sido preenchido por Dr. Brado que se multiplicava em brados.

Abaixo a razão! disse.
Fim da razão! o coro em lugar do prólogo. Ela não existia mais.

Trabuco. Troveja. E seguiram nas ruas sob a liderança de Dr. Brado Atroz. Trovejou. Trovejando. Trovejado. Trovejaria. Que trovejasse. Trovejava. Trovão. Trum. Trovejaremos. Trovejamos. Trovejais. Plá! Trovão. Trovar. Trum. Tam. Té. Truntrum. Tô. Tá. Plá. Estalo. Tururum. Trabuco. Tântrico. Virum. Verum. Vrum. Brumbrumbrum. Catapum. Trum. Plá. Estalo. Tururum. Trá. Trabuco. Tântrico. Virum. Verum. Vrum.

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