CARNAVAL? CONTO A ORIGEM DO SAMBA

Contos

Por Marcello Ricardo Almeida (*)

Nesta cadeira, na sala silente, repousava o dia. Na parede da sala gemeu a janela esquálida com olhar de distância à espera do sol que se entretinha entre nuvens.

Testemunhei o Carnaval. Brincantes distribuem sentimentos preservados entre janela e sol. O tempo atravessava a eternidade das formigas. E, nesta sala de casa, a mesa era plácida, indiferente, pressionada por cadeiras, toalha, louça. Reunia-se em torno da velha mesa a comemoração da chegada do Carnaval em efusivas gargalhadas e gritos.

Quando os primeiros raios da manhã atravessaram a sala, a chave girou e, assim, a fechadura cedeu à tranca e a maçaneta abriu a porta ao jardim. Foi neste jardim que conversei, e aprendi, e nos divertimos com as histórias dos carnavais de meu bisavô.

Cada dia era um abrir de cortinas na velha casa onde habitam os grilos e as formigas. E os espaços calculados pelos números e os sabores da química experimental.

Em cada canto da casa repousava a ciência de meu bisavô; seu oratório protegia a metafísica, o armário, as louças, os talheres. Céu não prometia chuva e havia nuvens d’água em algum lugar percorrendo rios voadores.

Aos poucos, o velho relógio de móvel retomava o tique-taque. Isto era como se a engrenagem no universo logo dissesse também ser igual tique-taque.

E na cadeira de balanço, o velho viaja em tradicional cochilo apressado e ancho feito criança. Esquecido, o velho sonhava que o amor era filho do Recurso e da Pobreza nascido no Carnaval.

Chuviscos no Serrote do Cruzeiro desenhavam novo um horizonte de chuva. Pingos, ora jorros. Logo, nuvens escuras cercariam os bairros. Velho ancho em completo desaforo. E derramou-se água em seu sonho de criança como se fosse festa. Ele viu, em sonho, no próximo Carnaval, o homem indo a Marte, pois a Terra já não oferecia meios de continuar nesse lero-lero, e tantas contas a serem pagas. Pero Vaz ao Rei escreveria que em Marte a terra era boa, e marcianos amigos; eles trocariam miçangas por terra, água, comida; pedacinhos de espelho fariam os marcianos felizes. Se antes a viagem fosse além-mar, logo a viagem seria outra: viagem além-Terra; e haveria solução à fome, às terras áridas, às guerras, às carestias. A Terra exportaria a Marte saborosas ambrosias, e a passagem, se hoje fosse caríssima, haveria promoções, passaria a ser apenas cara, em breve, Marte tornar-se-ia um barato e, se continuassem as viagens, tudo seria de boa graça, escreveu Pero Vaz ao El-rei.

Não faz muito, na padaria aqui perto de casa, reencontrei meu bisavô. Ele havia chegado de viagem. Onde vai brincar Carnaval? perguntei. Ainda era das brincadeiras de carnaval?

Ora! – na fila do pão, ele comentou. – Meu pai era poeta, e o avô também o era; meu bisavô me dizia versos que aprendeu com seu pai, versos vindos de seu avô e, assim, até onde me lembro fui forjado na poesia feito ferreiro que forja versos. Minha mãe sempre escreveu; não sabia viver de outro jeito. Poesia, pra minha mãe, disso sabia, tinha um quê que outro que não tinha. O pai conheceu minha mãe assim, durante uma chuva de ritmos e rimas.

Nunca fui de perder o Carnaval. E, outro dia, fui brincar carnaval em uma praia perto de casa. Me preparei e saí, contou.

Acompanhei-o à casa dele. E após o café, sentava-se no jardim ao lado das filhas, relembrando velhos carnavais.

Fui a um carnaval e reencontrei Eva fantasiada de formiga. Preservava no quintal cansado formigueiro, Eva? Enquanto havia quem preferisse formigas em um quadro, emolduradas em vidro, penduradas à parede. Sua opinião era a de que a paixão era um afeto, e a afetividade era vida plena, feito Carnaval. O sopro vida vivia-se ao se sentir vida a cada dia, ao acordar. Eva sorri e sorri com Eva.

Aumentados e diminuídos afetos qual poder de agir, Adão aprendeu com Eva que os prazeres do corpo são o sol numa manhã simples, amor e mais água no feijão; e caminhar por esses lugares; e os prazeres na psique são viajar na metafísica comum, alertar sobre o abismo no caminho, se alegrar com a vida e mais água no feijão. E nesta Filosofia dos Prazeres, a noite chegava quando a noite chegava, e o dia era outro dia do mesmo dia, na Filosofia dos Prazeres.

Carnaval era não deixar o corpo perder o ânimo necessário, repetia meu bisavô. E a alma, mesmo aflita, se acalmava.

Povoada por prédios unidos a prédios, a telhas, e telhas sobre paredes, a amizade, dizia meu bisavô, era essa rua preenchida por telhas. Havia pedras na rua, poeira; havia este sol que brilhava e a lua que iluminava; também chovia na rua. A amizade era Carnaval, como uma rua de prédios. Essa rua curva-se, ela ora afunila-se, ora alarga-se, ora aproxima-se, e desaparece. E o caminhar por essa rua nos favorecia.

Nas pedras do calçamento refletia-se a luz das estrelas, e não era na lama da rua, na poça fétida que se refletia a luz da lua. Na praça, as luzes brilhavam; até as luzes do universo refletiam próximas ao poste de luz. E como sofria essa luz artificial porque sabia não ter luz própria.

Carnaval era mesmo esse corre-corre. Era briga nessa vida e muita sorte. O intervalo entre noite e manhã, logo meio-dia; fim de tarde fugia a luz do sol, e as nuvens e as formigas no açucareiro se diziam, finalmente, felizes.

Uma noite de Carnaval não se esquecia. Na grama os grilos reclamavam da chuva. Plantas nessa noite, agradecidas, adormecidas. E as janelas distantes eram abertas iluminando na grama os pingos da chuva.

E, de repente, a alegria dos blocos. Singrava na jangada de Butim no mar das tempestades de batuques, brincantes provocam motins cheios de farnizins e pantins e, se cobrados pela festa de Momo ora Dioniso, eles cantavam em coro fi-lo porque quí-lo. Vão-se os balanços na jangada, as notícias ruins.

À noite ia alta na via profana, quando a criança nasceu. Carnaval era esta criança nascida na via profana. O bisavô fechava os olhos dizendo que o samba se originou nos roçados, nas roças, no iluminado e rico Nordeste, nos cantos de trabalho, nos xaxados de feijão, nos diferentes cortes da cana, nas colheitas, nas terras onde linguagem cantava em ritmo de dança na carne sem ossos, nos corpos molemente.

O que diferencia os tipos de sambas? – perguntei.

Batuques! – respondia. – Os ritmos eram o que originaram os diferentes estilos de sambistas, adiantou-se.

Todos estes tipos de sambas, disse, samba-de-morro, samba-de-pagode, samba-de-terreiro, samba-de-breque, samba-choro, samba-de-gafieira, samba-de-partido-alto, samba-canção, samba-exaltação, samba-de-enredo... O berço encontrava-se na cozinha, na roça, na colheita, no agradecimento aos deuses das festas – Osíris, Lupércio, Saturno. Indo longe gostava de ir meu bisavô.

Dia de sol em Maceió, praia de eufemismo em eufemismo, disse, universo unia meus passos. No guichê, a passagem de trem. Recife estava bem ali. Porque ele gostava de ir longe de casa. Na plataforma, vagões à pressa logo chegariam ao Recife. Bacamarteiros deixavam a igreja, terno de ex-votos, zabumba tocava, crianças jogavam ximbras nas ruas riscadas de regras dos jogadores de bola, aos gritos l@drão! l@drão! E as crianças jogavam gritos, tiros, bangue-bangues corriam. Santana do Ipanema, instituísse o Dia da Feira Livre no Sábado, o Dia do Laço-de-Fitas, o Dia do Quebra-Pote.

Corriam os carros de rolimãs descendo rápidos, e desembestavam carros nas ladeiras da vida. Na pressa, os carros de rolimãs atravessavam a fronteira da infância e, na pressa, passavam na alfândega do país adulto, logo chegavam à velhice em jogo de pião que girava e girava como girava o mundo, giravam os dias à espera de Carnaval.
Brincantes, naqueles dias momescos, sequer aprenderam a apreenderem que na vida ninguém sabia se vai a vida ao amanhã ilusório e óptico logo passam as férias, logo a vida passa, à tarde passa, passa noite de lua que carrega à pressa. No Carnaval, sentado em seu jardim, disse meu bisavô, todo cenário é uma musse; há quem dela almoce; e, se uma velha espirra, outra tosse; e há quem se coce também; há nos vagões birras; há também mortes, e o trem vai chegando ao Recife noite, ao Recife mar, ao Recife escuro, ao Recife aquático, ao anfíbio Recife, Recife Boa Viagem, Recife São José, Recife velho, portuário Recife, ao esquelético Recife de prédios, de pontes, de carros; chás-chás-chás... era o trem xaxaxaxado chegando ao Recife de olhos cansados, e simpatias, e banhos, e patuás, e chás, chás, chás. E risca o trem sobre os olhos doce da terra que na estação espera coberta de sabores com cheiros de Boa Viagem e de Piedade e, assim, os e u f e m i s m o s sobre o universo unem-se o povo, no Carnaval, nas ruas estreitas e ladeirentas na Olinda dos primeiros estudos em Ciências Jurídicas, vulgo Direito.

Fui a um carnaval. Desconfiei. Não ouvi o som doce do samba. De longe, grades cercando praças, praias. Ruas apertadas de gente. Apenas dois estreitos caminhos permitiam a passagem ao povo; por uma, a polícia fiscalizava homens, rapazes, meninos, e na outra as mulheres. Andei, mexi. Nada de samba. Povo aéreo, o som do barulho somente conseguia desmilinguí-lo.

Passei. Som zumbia. O povo dançava imantado com azougue. Na tropelia sem farmácia que lhe socorresse, o povo a esfolar os pés nas pedras quentes.

Circulando o coreto, enfrentavam-se puxavantes; povo lanhado esquipava no tuntum! tuntum! tuntum! desorientado no som do galope. Maniçoba emitia a zoada. Sol tostava à vontade.

Zonzo povo.
Na latomia, o Carnaval tomava o mundo.
Puro suor.

Descia a velha Cristina arrastando chinelas. A velha descendo a Barão do Rio Branco. Nem toda velha guardava sonhos na caixa de sapatos. O coração descendo a Barão do Rio Branco. A velha magra, enterrava suas mãos em sacos de feijão, milho, arroz... descendo a Barão.

Àquelas alturas, fantasias esmolambaram-se. Amiudavam-se os passos. Amoleciam alguns deixando o coreto diante da pabulagem. Era desconchavo de correria. Quem acompanhava as estrepolias da criança que nasceu? Carnaval era criança a descobrir o mundo.

Velha Cristina murmurava orações: Eu volto, eu volto, eu volto, no ritmo do frevo, descendo a Barão do Rio Branco. E o pão que sobrava em sua mesa, e os sapatos esquecidos no chão? Descendo a Barão do Rio Branco. E as roupas esquecidas na cesta, moedas que tilintavam no bolso descendo a Barão. A velha Cristina pesada de sol. Armazéns faziam chorar o sal, e sulcar, e arar com olhos frevando a velha Cristina. Desceu essa rua carregada no coração de Santana do Ipanema; desceu a ladeira em sua caixa de sapatos e nela conduzia, leve, o coração.

(*) Leia também deste contista de Santana do Ipanema “Era um conto de Natal por ser tão necessário”.

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