A SOCA TEMPERO DE JOÃO DE DEUS

Marcas do Passado

Remi Bastos

O tempo estava passando, a modernidade lentamente ocupava os espaços dos jovens, deixando para trás tudo aquilo que fantasiou a sua adolescência: O pião, a peteca, a ximbra, as brincadeiras de pega-pega, garrafão, quatro cantos, mão no bolso, Mandrake, as corridas de bicicletas no Monumento, os jogos de castanhas, de botões e de notas de cigarros, as matinês no Cine Glória e Cine Alvorada. O palhaço da perna de pau já não saia mais às ruas atraindo a meninada com as suas modinhas---- “Subi pelo pau desci pela rama,/Menina bonita me bota na cama”; “Balanceiro da usina, tão  danado pra roubar,/Tanto rouba como tira na balança e no pesar”; Hoje tem espetáculo? --- Tem sim sinhô. Oito horas da noite? --- Tem sim sinhô. “Arrocha negrada --- êêêêêêê”.

Os dias haviam mudados, os tempos eram outros. A calça curta cedera lugar para as de pernas longas ou compridas; o cigarro para muitos se tornou um hobby principalmente nas conquistas amorosas. Surgiram os primeiros picos capilares, novos cortes de cabelos foram introduzidos, os primeiros flertes e consequentemente, a primeira namorada. O pente e o espelhinho de bolso eram duas constantes no cotidiano dos iniciantes da puberdade. Foi justamente nessa época que as caçadas de rolinhas, nambus e preás tomaram outro rumo. O adeus a peteca e a receptividade a espingarda  soca-soca ou de vareta, a famosa “soca tempero”, mudou o comportamento dos jovens da época. Raro era aquele que não possuía uma espingarda e praticasse caçadas nas propriedades situadas nas cercanias de Santana. João de Deus era um dos promissores caçadores. Sujeito de fala mansa, bom amigo, acaboclado e trazendo na face um bigode em formação, porém recheado. João de Deus morava no Bairro do Monumento, ali por trás do antigo Pinguim, mais tarde Toca do Pato, nas vizinhanças de Seu João Soares e Dr. Aderval Tenório. Possuía uma espingarda com mais ou menos 1,10 m de comprimento com a qual realizava suas caçadas no cercado de seu avô paterno, o velho João José,  ao lado do Asilo dos Velhinhos no Povoado São Vicente. Vez por outra o João de Deus passava em frente à casa de Benedito acompanhado de seu irmão mais velho o “Nego Índio” e os filhos de Zezinho de Dona Beatriz, rumo ao dito cercado e a Lagoa do Junco. Os bornais apresentavam sintomas de carga pesada: três cartuchos de pólvora, dois quilos de chumbo número 3, duas braças de corda para o preparo da bucha e dez caixas de espoleta Guarany. Todo esse material era adquirido na Vidraçaria de Gileno Carvalho. Estes passavam o dia inteiro num tiroteio cerrado, era tiro pra todo lado. No final da tarde retornavam trazendo amarrados em embiras trinta catengas, dezoito calangos, cinco cágados d’água mirins, quatro caga-sebos, dois vin-vins, um cololô, três tontas, sete Zé neguinhos, além dos seis cachorros que deixaram no caminho.

Eu também era freguês da espingarda de João de Deus. Certa feita, após preparar todo material necessário exigido pela soquinha do João, juntamente com Benedito, seguimos  com destino ao Baixio de Seu Abílio Pereira e Serra da Camonga.  Além do material bélico, Benedito transportava em um bornal meia dúzia de banana, uma dúzia e meia de ovos cozidos, meia cuia de farinha, oito rapaduras e três libras de charque. Provisões suficientes para um mês de caçada. Partimos num domingo as cinco da matina. Entramos pelo cercado de Seu João José no sentido da Lagoa do Junco e Riacho do Bode num tiroteio sem trégua. Eu dava dez tiros e o velho Biu dois.  Mais adiante entramos pelo Baixio e Camonga. Somente Benedito havia acertado um tiro, matou um Caga Sebo. Por volta das quatro horas da tarde, já de volta para casa, resolvi aumentar a carga no bacamarte de João de Deus. Coloquei meio quilo de pólvora e bucha na bichinha e dei para o meu amigo testar, sem que ele soubesse, em um gavião pousado no olho de uma craibeira.  O Biu se aproximou um pouco do alvo, fez uma pose de cangaceiro atirador, ajoelhou-se sobre uma perna, enquanto fiquei abaixado por trás de uma moita de catingueira observando o resultado.   Daí a pouco o estampido. Benedito foi arremessado a uns cinco metros de distância com a bunda para cima, enquanto o “borná”  com os mantimentos sumiram com a explosão. Olhei para o meu amigo, o rosto com uma borra preta da pólvora, parecia um mateu. Fingindo não saber de nada, perguntei-lhe, o gavião caiu aonde? E o interrogado olhando-me com cara feia, respondeu: “Ne-nego fia da-da puta, que ti-tiro da “bobônica” foi-foi esse?    Nessas alturas o  ouvido da soca tempero e o cão haviam voados para o inferno, só não arrastou o cano porque estava preso com arco de barril. Retornamos para casa e no dia seguinte fui devolver a espingarda ao João de Deus. Este ao ver a velha arma sem o ouvido e o cão, falou na sua linguagem própria : “Negão você carregou na porva”.  E a partir daí nunca mais tive coragem de pedir a soca tempero de João de Deus emprestado.

Arcaju/SE, 14/09/2010

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