ERA UM CONTO DE NATAL POR SER TÃO NECESSÁRIO

Contos

Por M. RICARDO-ALMEIDA

Viver era um conflito em si.
– Agora fosse! Entendeu. Não? Me respondesse duma vez. Se a geladeira fazia o que fazia, e não precisava pensava, por que tu carecias pensar? Parasse, cabeça de ovo, com essa cabeça concordando com tudo o que te cercava, feito catenga. Quando entenderias duma vez que a máquina valia mais do que tu? – parou; estava na rua, vendo a reação dos vizinhos. – Os cotovelos desse povo, quando visse minha geladeira, queimavam igual brasa.
O tempo verbal, na casa de porta de duas folhas e janela, nunca mudara.
– Comprou?
– Não.
– Não comprou?! Não acreditava nisso. Você era um diabo. Vinha pedindo há quanto tempo, traste!
– Desde...
– E o dinheiro?
– Aqui.
– Não ficou prata nem ouro no cofre de barro, depois da bagaceira?
– Achava...
– Me afeiçoei àquela porca gorda. Entendeu? – soou a voz metálica que confundia mundo real com virtual, como se o mundo virtual fosse real e o real virtual. – Não me olhasse assim; o serviço em casa nunca terminava: quando não era lavando, era cozinhando, quando não cozinhando, lavando. Queria a geladeira aqui na palma da mão; era direito meu ter uma! – a ideia de geladeira era um enredo banal que se espraiou feito óleo sagrado.
– Oviamentente.
– Cada moeda, aqui em casa, era zup!
– Não se aporrinhasse.
– Fosse comprar logo, infitete!
– Bagaceira.
– Danou-se. Ufa!
– ...
– Emburacasse. Entendeu?
– ...
– Tasenfadado?
– Não.
– Parasse com moganga; tavas cá gota!
– Não.
– Diabeisso! Deixasse de fulegarem. Não chegasse lá com miolo-de-pote.
– Não.
– Desse uma carreira, cabra.
Saí com o bafo dos gritos. Aquelas palavras sempre duras pareciam ter gosto de cinza que corroíam por dentro, lembrando as palavras do padre sobre o inferno. Esses assuntos quando começavam eram custosos terem um final, costumavam envolver num abraço de jiboia arrochando, cada vez mais arrochado até sumir o ar.
Gostava de andar por aqui; esse cheiro de grama recém-cortada era o perfume característico dessa rua, e essa outra possuía o sabor do quebra-queixo (o vento era sempre doce, nessa rua antiga). Santana era uma festa; lugar mais aprazível na terra de todas as terras por onde andei.
Nuvens, que se reuniram desde o dia de São Gabriel, trouxeram bonanças ao sertão. As chuvas foram bondosas nos meses subsequentes – outubro chuvoso, novembro de muita água – dezembro chegou com o sol; o estio sobre o bioma do semiárido iluminou suas cores; aquela mudança climática global revelou viço à vegetação e deixou agrônomos estupefatos.
Olho-D’água de Flores, alto sertão alagoano, a caminho da Tapera, as chuvas pararam nos Carneiros donde se avistavam Lajes, depois Pão de Açúcar, e a Palestina era logo ali, antes Monteirópolis, longe não era de Jacaré, em breve elas chegavam à Batalha, e, às barbas de Jaramataia, próximas ao velho Isidoro; adiante, as chuvas nas Cacimbinhas, e as chuvas no Capim, não demoravam e ei-las na Olivença; Santana do Ipanema perto dos Dois Riachos; e foi assim que as chuvas seguiram viagem ao Poço, passaram pela Maravilha e terminaram no Ouro Branco, desde 29 de setembro.
Na sociologia das águas, por aqui passaram chuvas, deixaram nas pessoas rastros, rastros nas pedras, nas paredes de minha casa, e me fizeram do deserto oásis, e encheram os potes d’água; as mesmas águas de chuva fizeram curvas, atraíram aves; craibeiras balançaram ao vento; trovoada despencou das alturas com graves ameaças, ameaçou craibeiras sem quebrá-las. Na sociologia das águas, meus amigos, todos os peixes fósseis ressuscitaram; foi a multiplicação dos peixes no rio morto de sede cuja lama o sepultara.
As janelas das casas açoitadas; pingos de chuva eram látegos.
Água veloz cortava à noite em todas as direções, cortavam as nuvens pesadas d’água; nuvens estoicas, meus amigos, desceram ao rés do chão encharcados na enxurrada; e a panela de sonhos sobre o fogão. As cisternas, agradecidas, durante as chuvas armazenaram, sequiosas, toda a água do céu.
Na ligeireza, corriam às ruas de Santana encravadas na geografia sertaneja. Iam meus pés descendo, subindo becos, evitavam o tapete de cacos de vidro. Suor desdenhava-me na roupa escura fazendo desenhos abstratos.
A vingança era minha. Me foi garantida proteção legal. Na sapataria, todos meus amigos disseram que o exercício arbitrário das próprias razões vinha sempre a meu favor. Ou não, hein! A vingança era minha, sim, senhor, era minha.
Viu? Panema botou água.
O povo nas portas das lojas. Santana cobria-se com decorações à espera do nascimento que se repetia todos os anos, meia-noite ao dobrar dos sinos. O povo nas portas da matriz.
O rio dava cambalhotas engraçadas em cima das pedras; largo outra vez; pedras ocultas em caixões d’água, meus amigos; cercas de arame farpado avançavam e se perdiam, devoradas pela força das águas. Os amigos viram os calungas no entorno do volume d’água? Apontavam e riam.
As estações – foram presas por ímã à porta da cristaleira – eram recontos.
Ruas largas, ricas moradias, sobrados da época do império.
Nas lojas de tecidos, e armarinhos que eram muitos, ouvia-se refrão: Esse Natal importado/Cabia por ser tão?/Íamos festejar direito/O nascimento perfeito/Com Jesus no coração.
Era festa, Santana.
Comentários corriam nas bocas de aluguel às portas dos mercados: Fulano era perfeito. Não, senhor; perfeito era Sicrano. Não, senhora. Quem disse? Sicrano nunca foi perfeito. Pra ser perfeito, só mesmo Beltrano.
Catacrese e Sinestesia passavam de sombrinha, de braços. Antítese e Paradoxo jogavam dominó trocando silêncio pelo barulho das pedras numa mesa cansada na porta dum bar. Vida não era uma garrafa em cujo interior preservava-se uma carta com manchas gráficas sobre o nada, mera narrativa curta de ficção, um canto de amor e amizade, um conto de horror cósmico.
Seu Eufemismo, na porta do armazém, gordo e sorridente, puxava com a ponta dos dedos e soltava o suspensório plaft! sobre o ventre volumoso plaft! Dona Paronomásia, no caixa da padaria, contava os couros-de-ratos e, sorrindo aos clientes, a sugestão era a de que levassem pães, pães à vontade, que acabavam de sair do forno; os clientes perguntavam se tinha pão doce jacaré, bolacha sete capas.
O tempo nem sempre era cronológico, porque nem sempre se conseguia livrar-se das lembranças; as memórias repentinas eram inevitáveis, costumava dizer a moça no balcão ao padeiro com balaio de pães na cabeça – derrubava-os num caixote de madeira espalhando o cheiro de pão que cobria o ambiente e logo o cheiro de pão avançava àquela rua; pães doces atraíam abelhas, moscas eram aprisionadas em vidros transparentes e baratas surpreendidas na mistura de açúcar e bicabornato.
Experiências de pessoas passadas vinham como ondas à Paronomásia que era surpreendida rindo sozinha, sem motivo aparente, no caixa da padaria. Como ria dona Paronomásia, ria a mais não poder, ria e gargalhava uma gargalhada longa que se estendia e emendava-se às outras, dia a dia contando papéis fedorentos e as moedas grudentas. Era como se fragmentos do passado voassem em torno de sua cabeça quais moscas volantes. Dona Paronomásia, a exemplo dum velho que ria na porta da matriz, não foi submetida a procedimento cirúrgico em Maceió conforme o velho foi, isto o transformou – a cicatriz dava-lhe a impressão de que vivia rindo da vida e das ameaças do inferno, durante as homilias do padre.
Nas portas largas e altas de madeira esculpida circundando à matriz, gente em situação de vulnerabilidade social não se cansava em estender as mãos aos passantes; um casal, cuja gravidez prenunciava fim da gestação, esticava bacia de queijo do reino. Que pediria? O mínimo necessário, pois queria sobreviver.
Na rapidez em que subi, desci a escadaria indo em direção ao mercado. Aquela cuia de lata de queijo do reino na mão representando a figura da fome que a tevê chamava de insegurança alimentar.
Nas ruas da feira, uma mãe de família, debaixo da sombrinha da renda mínima, comprava jambos maduros, imbus suculentos, sapotis e pitombas.
Anos de escravismo acorrentados à memória do povo. As casas de ferragem e as casas de couro anunciavam promoções. Os pés e os braços das pessoas tinham pressa.
Lá embaixo, sempre apressada, ia minha primeira professora; a freira Metonímia atravessava a calçada alta, cumprimentava os transeuntes baixos, alcançava a praça central, descia a rua do rio; ia visitar as casas como fazia sua congregação estrangeira. Padre que dizia, Fossem vocês em paz e todos os seus sonhos vos acompanhasse, passava pelas crianças abençoando-as, pelos preços fazendo o sinal da cruz.
Prosopopeia atrás do balcão da farmácia. Apóstrofe e Gradação falavam de política na porta da matriz onde um lambe-lambe cortava retratos 3X4.
Personificação, que era um tipo cãochorro de rua, recebia o afeto de Santana. Personificação cochilava envolto no calor do sábado, encolhido numa calçada larga na qual os pés dos passantes corriam atrás do tempo perdido e outros esperavam Godot só por esperá-lo. Distante do cãochorro, o velho rio contava lorotas às corredeiras que desciam da Barragem; o ruído das águas num clarão preenchia o ar de aroma e o dia amanhecia em Santana.
A vida era uma festa onde se regalava e se festejava; depois as luzes apagavam-se e, no silêncio reinante, ouvia-se a manhã logo alcançar um outro meio-dia, e já entardecera; quanto menos se esperava, velha noite ocupava tudo, preenchia tudo de breu, só lembranças restavam. E dona Tristeza, que vendia na porta do mercado balas e pipoca doce, sofria duma moléstia cujo desequilíbrio a levava à queda da casa de Usher, porque nunca quis viver Macabéa em busca do tempo perdido nem ver a tempestade; na visão de dona Tristeza, o sertão era grande e cheio de veredas nas quais vidas eram secas mesmo depois de cem anos de solidão; no dizer de dona Tristeza, as pessoas eram as mesmas e os sofrimentos do jovem Werther, habitante dum casarão cara a cara com a matriz, se repetiam por haver ordem no caos, e uma folha não caía da árvore se não permitida pela árvore. Havia cores na manhã, repetia tantas vezes dona Tristeza ensacando a pipoca, sentisse o perfume.
Quiasmo puxava água do rio. Silepse levantava uma casa, tijolo por tijolo. Elipse costurava na sala de casa, consertava roupas usadas cuja vizinhança lhe trazia e, lá fora, Assíndeto, seu irmão, encilhava um cavalo.
O espaço de Elipse era cheio de tecidos cortados, tesouras ávidas por cortá-los mais um pouco (tesouras de tecido, de picote, de arremete, tesourinhas), linhas, agulhas, dedais, alfinetes, agulhas de mão, fita métrica, desmanchador, giz de tecido. Toda a trama era formada como aranha fazendo o que veio fazer na vida de aranha; tessitura formava-se na casa da costureira Elipse, irmã de Assíndeto, – ela era um tipo Penélope mítico sem motivo de esperar vinte anos a volta de Ulisses; – Elipse solteira, a vida toda fazia o que veio fazer na vida. No ambiente de trabalho, ao lado da Singer, em seu relógio de areia passavam as horas, os dias sempre iguais, as semanas, os meses sempre parecidos, os anos, as décadas que se perdiam dentro de outras.
Nas janelas das casas havia jarro de flores; e vassouras amontavam o lixo de folhas que os ventos nas árvores espalhavam. Antomásia entoava um canto de trabalho, enquanto estendia suas roupas no varal colorindo Santana por dentro. Onomatopeia, o sapateiro, vizinho de Antomásia, remendava sapatos com a boca cheia de pregos.
O professor de matemática não gostava e ficar por baixo da professora de português, e todos em Santana sabiam. Hipérbole dava aulas de português e Pleonasmo de matemática, no grupo escolar. Àquela hora do sábado, eles de mãos dadas descendo as ladeiras em direção à feira das frutas. Anáfora vendia comida na rua desde menina, aprendeu com uma tia. Polissíndeto medicava o povo comercializando remédios a domicílio de domingo a domingo. Professora Hipérbole, naqueles trajetos estreitos durante a feira, encontrava-se com gente de seu agrado, soltava coisas assim, Nossa vida, vizinha, não era sintática, era semântica; sintáticas eram máquinas que obedeciam sem reclamar e exerciam sua função sem pestanejar; era só apertar uma coisinha assim, ó, e a coisa era vrum-vrum! Vida semântica era a nossa, porque criávamos coisas, inventávamos feira no sábado, e dávamos aulas, festas, alma, fazíamos batizados, casamentos e, finalmente, morríamos.
Algumas épocas das estações produziam mais afetos se comparadas às outras, comentava o professor de matemática porque não sabia ficar calado diante da sapiência da mulher. Hipérbole entronchava a boca e passava um rabo-de-olho no marido, e Pleonasmo, conhecido por todos em Santana, mudava o rumo da prosa, olhava o céu infinitamente azul, Essa sensação de calor era aqui e em toda parte. Como era valoroso o verbo ser.
– Que narrativa era essa, professor, em sua mão?
– Era um conto de Natal por ser tão necessário.
– Quem escreveu?
– Uma autoria dessas e não daquelas.
– Essa autoria sempre aparecia por aqui, na feira?
Zeugma cortava tábuas, lixava-as, envernizava-as, fazia móveis sob medida na porta da rua no endereço no qual morava desde menino. Aliteração dedilhava sua viola de cocho assobiando uma harmonia que lhe preenchia o espírito.
Assonância fazia a lição de casa, preparando-se para um exame imaginário. Seu Anacoluto, que voltava da matriz com o terço à mão, perguntava-se em que ano estávamos naquele ano diferente de tudo o que viu na vida.
Os núcleos dramáticos eram muitos cujas figuras, umas associadas às palavras, eram de linguagem, outras associadas ao pensamento combinavam às ideias, e havia as de construção modificando a estrutura em Santana. Era sábado de feira, e numa feira assim era impossível núcleo dramático único em um conto.
Próximo ao mercado da carne formava-se outro adjunto de gente, este cercava o desafio dos copos. Os corpos espremiam-se querendo ver a moeda colocada debaixo de um, dos três copos sobre tabuleta improvisada em dois tamboretes, onde a habilidade do jogador ludibriava os olhares mais atentos com o balé oriental das mãos numa luta marcial lúdica mudando rapidamente a posição dos copos.
Um conhecido passou de bicicleta perguntando: O que mandava, meu patrão? As mulheres de lenço repetiram: Vixe, Maria! Os homens: Oxe!
Os urubus voavam alto e pardais em revoada em torno das figueiras cujas copas protegiam o povo do sol. Os motoristas com carros de aluguel jogavam conversa fora, enquanto esperavam corridas; havia quem falasse de futebol, do resultado da Copa, das urnas.
O rio cheio revelava boas novas e ano vindouro de fartas lavouras, milho e feijão à vontade. Vários carregadores de caminhões parados defronte aos armazéns, outros descarregavam milho, feijão, mamona, algodão. Pratos na balança davam o preço; mercadoria rumava ao interior dos depósitos sombrios. Serviço de alto-falante móvel passava anunciando circo. Ruas enfeitadas colorindo Santana.
Sob qual dos copos encontrava-se a maldita moeda! Vi que era naquele; jurava que vi. Preferia não arriscar. Aquele astuto rapaz de chapéu perdeu dez. Foi. Ia arriscar cinco dessa vez, o astuto? Se conseguisse acompanhar a dança dos copos nas mãos desse maldito jogador, poderia dobrar o dinheiro que trouxe de casa; dobrava, e compraria o que compraria, e mais um pouco. Da próxima, iria à desforra.
A mulher de blusa roxa com flores acabou de ganhar. Como conseguiu! Deveria ser comparsa do farsante.
O matuto de chapéu de couro com barbicachos arriscou 50, dessa vez. Perdeu. Saiu cuspindo marimbondos e falando siribobeia da peste. Barrufa, condrufa!
O homem de cigarro de palha afirmou que sabia em qual dos copos havia visto a sorte. O jogador o provocava. O homem de cigarro desconhecia as fases nesse jogo: ganhava-se, perdia-se, desesperava-se e morria-se de tédio; alguns jogos despertavam doenças na gente. O homem, cujo cigarro de palha passeava dum canto a outro na boca sob fino bigode, aceitou desafio, e ganhou o que pôs à mesa no jogo de azar; a brasa no cigarro ficou viva e a boca soltou fumaça densa que deixou o matuto tonto de euforia.
Se não encontrasse embaixo de qual copo escondia-se a moeda, perdia todo o dinheiro, ficava sem saber o que fazer na vida; ela, lá em casa, esperava com a moléstia dos cachorros atrás da porta, pronta a mandar a carcaça pra baixa da égua; acabava no Rabo da Gata.
A feira no sábado enchia-se de gente logo cedo; desde ontem à noite não parava de chegar o povo, os vendilhões nas toldas defronte à matriz espalhavam-se até à delegacia de polícia, e o Aterro estendia-se invadindo o comércio de gado – as reses eram pechinchadas, bodes, cabras, carneiros, galos, galinhas, capões de pernas ao ar à espera de compradores.
Um violeiro tirava o sustento de sua viola. Adiante, o contador de causos. Lá na frente, o poeta cordelista romanceava a chegada de frei Damião ao céu. De que tipo de liberdade estávamos a confabular? Dissesse. A liberdade de pássaros, porque sabiam eles que voavam, ou liberdade era esculpida só naquelas ruas parisienses? Havia liberdade enganosa, cheia de engodos e ardis, prometendo tanta pompa, sempre à espreita esta velha traiçoeira de sempre, pronta pra enganar e mentir. Liberdade era só bem-estar, uma noite de festa em Santana. O galo-de-campina, engaiolado e vendido na feira do passarinho, cantava à liberdade; o caboclinho cantava à igualdade entre os bichos de penas; o tico-tico e os sanhaços sonhavam com a solidariedade entre as criaturas de asas e bicos soltas na caatinga entre mandacarus, palmas forrageiras e mulungus.
Se dobrasse nesse jogo o dinheiro que trazia comigo? E se dobrasse o dobro do dinheiro? Chegaria rico em casa. Beija-flor-barriga-branca cortejava as flores de dona Menina; espojava-se num pé de rosas papa-lagarta-acanelado; fim-fim e tuim ocupavam silêncio das casas de paredes grossas; o pernilongo-de-costas-negras cantava no beiço do rio, casaca-de-couro andava no chão à caça de insetos gordos e macilentos, rolinha-picui fazia ninho entre os arbustos, tiziu lustrava a plumagem com bicadas repetitivas, lavandeira-mascarada chocava ovos, coleirinho cantava, rapazinho-dos-velhos observava o tempo, canário-da-terra anunciava, noivinha-branca fugia do carcará, anu-preto cochilava no moirão da cerca, frango-de-água-comum namorava e beija-flor-tesoura admirava o sol. E se nesse jogo conseguisse ganhar? Dobrava a aposta, tomava todo o dinheiro desse jogador safado, enganador da fé. Ficaria folgado.
Com dinheiro dessa gente ficaria bem feliz. Mudaria de casa, mudaria de roupa, sapatos novos, viagens extraordinárias. Esqueceria minha vingança ao dono da sapataria que entregou minhas contas semana passada, não esperou nem que se concluíssem as festas; sonegou meus direitos trabalhistas. Ganharia no jogo, desistiria de tudo, esqueceria a vingança, não iria mais cortá-lo à faca.
Nas portas largas e altas da matriz, o casal na gravidez da espera. Revendo-os, chamei um daqueles motorista de praça. O casal guardou a bacia de queijo do reino e foi ao hospital. Com dinheiro de comprar a geladeira fiz compras à mulher grávida, alimentei o homem que dizia a mim e ao motorista ter sido carpinteiro à época de vacas gordas sem acreditar que houvesse um tempo de vacas magras. Vi que o filho do homem não poderia nascer na rua. Aquele homem perdeu tudo o que tinha e o que poderia vir a ter um dia, quando a indústria de móveis fechou as portas e os acionistas preferiram aplicar o dinheiro no sistema financeiro.
Após o conto:
– Comprou?
– Não.
– Não comprou?
– Precisava contar.
– Contasse.
Finda breve narrativa:
– Cê era um santo. Não acreditava nisso.
À noite, em Santana, naquela praça defronte à matriz, luzes mudavam de cor e, para cada uma das cores, um verso formava-se. O vermelho escrevia: o pinheiro plantado no Natal dava presentes o ano inteiro; e a cor azul: uma manjedoura, dezembro iluminado, havia luz no estábulo; e a cor amarela escrevia: o grilo, na palha, falou, quando Jesus nasceu: “O povo crucificava até Deus.”

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