Há uma paisagem na janela. Na janela há uma alma. Na alma há um coração. Não um coração que bate, só um coração que sente. No jardim do coração, folhas de outono deslizam, flutuam levadas pelo vento e deitam suavemente sobre a estrada fazendo o caminho.
Na velocidade da luz, cenas são transpostas uma atrás da outra de trás para frente. Numa fração de segundos vou tomando outra vida com lampejos de vigor e mais jovem e mais vigor. Vejo-me rejuvenescendo, acelerando e viajando em brumas. O tempo passa tão veloz que meus olhos se ofuscam de tanta rapidez e desacelera vagarosamente e, mais uma vez, sinto vigor e a inocência de menino, voltando ao começo. Na paisagem ficou o homem, da janela do horizonte veio só o menino.
No cenário etéreo a rua vai se formando, casas vão se construindo e gente, muita gente vai chegando e a essência de vida toma forma humana. Ouço muitas vozes e o alarido do povo. Agora tudo é real! Somente os meninos não chegaram porque sempre estiveram. Meninos mergulham no tempo, desaparecem e aparecem quando querem. Tem o segredo da magia de se transformar, com passe livre ao passado, presente e ao que ainda vai chegar.
Naquelas calçadas das ruas meninas desenham; ora com riscos de giz, ora com cacos de telhas ou pedaços de tijolos de construção, aviões de brincar de pular em movimentos salteados e alternados indo e voltando. Meninos também brincam, mas não tem graça. Tudo é delicadamente correto. Chato demais! Não há competição, apenas o luxo da emoção de estar junto.
De repente, chuva! Chuva que corre pela calçada e apaga em parte os aviões de risco de giz. Ficam traços que a chuva não apagou. Meninos estão a conspirar a corrida de carrinho de rolimã na calçada quando a chuva passar, desde a esquina da casa de Seu Lindomar até a esquina da casa de Seu Domingos. Antes, porém é preciso saber se Seu Costinha não vai passar por ali. Ele é bravo! Toma-nos os carrinhos de rolimãs e os patinetes e ainda nos denuncia. É muita confusão! Ele é implacável! Seu Costinha assombrava-nos, moleques travessos. Era temido e destemido. Não o queríamos por perto. Ele nos apavorava e nos roubava da inocência para o dever da correção.
A conspiração dera certo. Na esquina de Seu Domingos, Tonho era o vigia e Zezinho vigiava a esquina de Seu Linduarte. E eu a pilotar o carrinho de rolimã. Desci a ladeira soberano e temeroso, rasgando as calçadas de cimento sem dó, nem piedade, num barulho ensurdecedor que pareciam as trombetas dos vassalos, anunciando a chegada do rei, apagando os últimos e singelos riscos dos aviões das meninas, traindo-lhes a ingenuidade. De súbito, o aviso: Seu Costinha estava vindo, trazendo consigo a ira dos guardiões da ordem. Desfez-se a tarde, desfizeram-se os meninos. Corre, corre... Ainda gritou: vão soltar pipas! Gritamos: -Não queremos soltar piiiiiiipas... Temos medo, porque trazem doenças que descem pela linha untada de breu com estilhaços de vidro que cortou a linha da pipa do adversário até contaminar o dono como punição por mandá-la de volta ao horizonte.
Instantaneamente, na janela do horizonte o menino mergulhou na alma sem se dar conta e nas profundezas dos esconderijos secretos sofreu o encantamento de despertar homem, sabendo-se de repente, nada restando senão cumprir regulamentos.
Seu Costinha, que fora símbolo de assombro e medo, agora como por magia, virou menino e não mais os persegue, adora-os. Parece anjo que de nada mais lembra, a não ser do canto derradeiro dos guerreiros vencedores. O lenitivo agora é juntar-se aos meninos que ainda restam. Não há mais carrinhos de rolimã. Não há mais desenhos de aviões nas calçadas, nem giz, nem caco de telha, nem pedaço de tijolo de construção, nem meninice. Agora tudo é seriedade. Tornamo-nos confidentes! Será arte? Fico receoso de que vai lembrar a qualquer instante das transgressões e aplicar sentenças, todavia nada acontece. Não se fala mais no assunto. Romperam-se os grilhões quando cantamos a última canção libertária.
Reverencio esse menino que soube ser homem e que fez a viagem de volta ao começo para celebrar a festa do divino. No limiar da paisagem da janela, homens e meninos se encontram. No teatro do silêncio da terra dos homens acende-se uma chama no peito, queimam-se incensos de aromas nobres e partem seguindo para onde nasce o arco-íris. É lá que ele mora; onde todas as cores se unificam e estão as botijas de ouro.
A única diferença entre homens e meninos é o preço dos brinquedos, diz um ditado.
HOMENS E MENINOS
ContosJoão Neto Felix Mendes / Verão de 2009 01/03/2009 - 20h 38min
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