O atual governo caracteriza-se em seu cerne pelo ódio à razão. Primeiro, por vincular-se, desde o período eleitoral, com uma bancada religiosa fundamentalista e anticientífica e com uma extrema direita ignorante e adepta ao clã dos racismos e preconceitos vários e, depois de eleito, com a instituição declarada, através de discursos, práticas e atos, do culto à ignorância e ao homem violento.
Dizer categoricamente que um governo se caracteriza pelo ódio à razão possibilita explicar, de algum modo, as investidas contra tudo aquilo que a razão representou e representa para o processo civilizatório.
Como se dá sistematicamente esse ataque ao que é humano, ao que tem as suas raízes na civilização, na dignidade de cada um em particular, sem distinções? Como se dá esse ataque anti-humano contra o que a razão fundou para que pudéssemos sair da barbárie, do obscurantismo, do horror, do fascismo? Por que se pretende, através da governabilidade legitimada, atacar o humano em sua essência, em sua materialidade social, em sua forma fenomênica de existir como ser digno de vida e liberdade? Por que se pretende com o ataque à razão, instituir uma "verdade" única acerca da realidade fatual, a “verdade” que só serve a interesses políticos de uma Wille zur Macht? Que alvos seriam usados como testa-de-ferro para que este ataque sub-reptício e perigoso à racionalidade pudesse ganhar não só legitimidade pública, mas adquirir força e poder discursivos, como uma fé, por flertar com algo maior, como se fosse um dogma de uma política da religião ou de uma religião política? Por que é preciso, para tal governo, compactuar com o absurdo, com o grotesco, com o caos, todavia, num paradoxo e numa contradição interna, sob o lema da ordem, do progresso, do avanço econômico, ainda também sob a defesa do que é o "certo", de que há um lado "errado"?
Se compreendermos que a razão foi a responsável pela civilidade, pelo avanço civilizatório – e, aqui, neste sentido, de acordo com o conceito de civilização de Antonio Cicero! – e não mero progresso técnico-científico, isto é, ao avanço da categoria da dignidade humana como norteadora de todo e qualquer princípio ético e moral, de toda prática, ato, discurso, isto é, representação fenomênica do que se apresenta como liberdades e direitos e garantias fundamentais, isto é, como um portento social onde todo e qualquer ser humano deve ser respeitado e tratado com dignidade, compreenderemos que o ataque à razão não é só um ataque a uma questão filosófica ou sociológica, mas uma agressão violenta ao próprio humano como ente universal civilizado merecedor de vida e liberdade.
Neste sentido, ainda, pode-se afirmar que a defesa da razão está intimamente ligada a todos os valores que tornam a vida um bem maior, acima até mesmo da liberdade. O ódio à razão é um ódio à vida, à liberdade, à civilização, à educação, às diferenças, às igualdades, à ciência, à existência, à natureza, à cultura, às artes, à filosofia, às verdades fatuais, à crítica. E, consequentemente, o culto à violência, ao obscurantismo, à mentira histórica, ao relativismo absoluto, à ignorância, à intolerância, ao preconceito, aos racismos, à morte, culto evidenciado fenomenicamente através dos ataques violentos, através de medidas político-administrativas, a professores, a artistas, cientistas, intelectuais, adversários políticos, grupos sociais, minorias vulneráveis, ONGs ambientalistas e outras, etc.
Por que isso se dá? O culto à violência e ao homem violento vem desde os primórdios do mundo, desde quando a barbárie era a regra mor. Na Bíblia, em textos gregos antigos, como em “Os trabalhos e os dias”, de Hesíodo, temos exemplos explícitos do culto ao homem violento. Na Roma Antiga, este culto fincou as suas raízes, de forma legitimada através da força estatal, na societati (aqui, claro, no dativo singular!), como forma de espetáculo: os gladiadores saciavam o desejo de sangue e morte dos spectatorum (no genitivo plural), como uma diversão não só viril e vingativa, mas como um culto à força, à violência, à morte ao que denominarei agora de ή πολιτική τοῦ θανάτου (a política da morte), caracterizada pela banalização da morte, isto é, a vida como mercadoria política. A vida daqueles que não são tidos como parte do grupo, daqueles que não importam, dos tomados não só como adversários, mas como um estorvo, em um processo de reificação e ausência de reconhecimento. E, indubitavelmente, diversos fatores também estão implicados neste complexo processo.
Dadas essas considerações iniciais, é importante salientar que a racionalidade não tem importância para essas pessoas, logo, novas “teorias”, novos “conceitos”, novos “fundamentos” éticos e morais, quase sempre revestidos de crenças religiosas e experiências personalíssimas, são usados para não apenas substituir aqueles que não se adequam à moral moralizadora que se quer impor aos demais, mas para destruir verdades fatuais e científicas que são tomadas como um incômodo, como algo detestável, desmascarador da ideologia que tem pretensões de unanimidade, mesmo que, para isso, a força estatal e a violência letal possam ser usadas.
A História e a ciência são relativizadas para atender a anseios ideológicos e políticos. O culto ao mito do redentor, do salvador da pátria e do paladino da justiça e o culto a uma metafísica barbárica tornam-se exagerados: é preciso encontrar o inimigo da necropolítica! Os inimigos da política da morte são aqueles que defendem o humano em sua complexidade, em sua dignidade absoluta. Ora, se se chegar a defender a humanidade em cada ser absolutamente, sob os ditames da razão, é lógico e evidente que não há espaços para preconceitos e racismos. Portanto, os adeptos da necropolítica não aceitam esta possibilidade, porque ela fere a sua Wille zur Macht, a sua vontade de poder, a sua realização como ser ideologicamente distinto e superior.
É preciso, agora, explicar essa “distinção” e essa “superioridade”, base, de algum modo, para explicar preconceitos e racismos. Desde os primos vestígios da civilização, as distinções têm por origem o fator força/poder e o fator religioso. Primeiro, porque a força bruta dos mais fortes, com a sua potencialidade de exercer violências várias, sempre foi capaz de impor vontades e arbítrios. Portanto, os mais fortes sempre tiveram à mão uma forma de exercer a vingança privada, tanto na escolha dos seus como na demarcação do que é seu. Essa relação escolha dos seus/delimitação do que é seu marcou a História da violência humana e, possivelmente, o culto ao homem violento (o termo grego ὕβριν ἀνέρες significa homem violento e já era existente nas obras antigas, como em Ἔργα καὶ Ἡμέραι, de Hesíodo.). O culto ao homem violento era uma forma de desprezo pela razão. A obediência àqueles que eram fortes, violentos, tinham armas e poder não era unicamente exercida por tais fatores, isto é, pelo exercício da força e da violência, mas também pela admiração que esse poder causava. Não só o medo foi capaz de engendrar o culto ao homem violento por temor à vida, mas a própria admiração que esses seres causavam por seus feitos humanos, por sua audácia, astúcia, valentia, coragem, violência, vingança. Esses homens não só se reconheciam como absolutos e autoritários, bem como passaram a sentir-se deuses, divindades, detentores de poderes divinos, poderes de decidir sobre a vida e a morte de todos os outros.
Tendo-se sentido deuses ou inventado divindades (que, em toda a História humana desde as religiões politeístas e monoteístas, apresentaram sentimentos, desejos e vontades humanos e até chegar a ter as formas humanas in totum, expondo iras, raivas, ódios e vinganças. A violência sempre fez parte da história dos deuses. Tanto é que muitos humanos foram mortos em nome de deuses e religiões!) para justificar por que poderiam fazer tais atos violentos, tais pessoas outorgaram para si mesmas o direito de dizer o que era certo e errado, o que era justo ou injusto, com apoio na força e na violência e, mesmo, na popularidade e no carisma exercidos por suas imagens de autoridade. Devemos, de certo modo e sob certa perspectiva, às primevas pessoas que se rebelaram contra essa autoridade da força bruta os iniciais acessos da conquista da razão contra o império da violência e da morte. Certamente, tais pessoas foram muito perseguidas, como ainda hoje são. Após o nascimento do culto ao homem violento, possivelmente, deu-se o rebento dos primordiais matizes da dúvida e da desobediência civil.
De volta à atualidade, a junção da extrema direita, de alas religiosas fundamentalistas, da bancada da bala e do boi e de parte de liberais xinglings proporcionou e vem proporcionando, sem remorsos ou receios de inteligência ou ética, um ataque sem freios à razão, sob diversas formas e vertentes. Parece que cada escolhido (a) para gerir e administrar uma função pública específica tem rancor, aversão ou ódio pelo tema da função que deveria administrar. Isto é: gente que não gosta de minorias vulneráveis para pastas dessas minorias; gente que não respeita direitos indígenas para cuidar dos direitos indígenas; gente homofóbica para cuidar de direitos de LGBT; gente fundamentalista para cuidar de educação e ciência, etc.
A negação da ditadura (por interesses pessoais e ideológicos, afinal ainda que o governo tenha sido eleito democraticamente faz questão de explicitar a sua face militarizada, pondo, em diversas pastas governamentais importantes, militares das Forças Armadas), a perseguição aos tidos como “comunistas” (qualquer um que passe a criticar o governo é a priori tido como “vermelho”, “comunista”), aos partidos e militantes de esquerda (tentativa de criminalizar partidos de esquerdas e movimentos sociais), os ataques à educação e às universidades (redução drásticas de recursos com o intuito de diminuir a produção acadêmica, mas não só, com o interesse de engendrar a privatização do ensino superior; a tentativa de passar uma imagem distorcida da realidade universitária, expondo o ambiente universitário como um antro de “vadios” e “usuários de drogas”, bem como cerne do pensamento “esquerdista”), os ataques às instituições de pesquisa e de dados estatísticos (promoção de discursos que atacam as instituições, como IBGE, INPE, INMETRO, bem como retaliações contra aqueles que nestes órgãos se manifestam contrários a tais discursos distorcidos e ideológicos) como os ataques nefastos à liberdade de expressão e de crítica (negação do Chefe do Estado de responder às entrevistas, muitas vezes, por se sentir incomodado com a razão crítica e a liberdade de imprensa) bem como à liberdade de imprensa (tentativa discursiva de manipular a massa para a criminalização de jornalistas, bem como o ataque aberto a diversos jornais e revistas, não só através da redução de verba, mas pela demonização do jornalismo como um todo).
E ainda os ataques às ciências, à filosofia (a propagação de que o trabalho prático é vital; o desprezo pelas atividades humanas mais relacionadas com o pensamento, com a crítica), à sociologia, às verdades fatuais históricas, os ataques aos direitos de minorias vulneráveis, principalmente indígenas (questões sérias de ausência de interesse em proteger a população indígena e promoção arbitrária discursiva da violência contra tal minoria, por dar credibilidade e apoio ao uso de terras indígenas) e LGBT (tentativa de barrar quaisquer projetos de lei ou políticas públicas que tenham como objetivo diminuir a violência e o preconceito contra os LGBT), os ataques às políticas públicas referentes à preservação do meio ambiente (negação do desmatamento florestal, apoio à caça, e liberação inescrupulosa e desenfreada de pesticidas), o culto à política armamentista, a identificação absoluta com ideologias religiosas fundamentalistas como norteadoras de atos e práticas políticos, o ataque à saúde pública, e, claro, o culto à ignorância (atacando, sistematicamente, a fim de criminalizar as artes, os artistas, os intelectuais) e ao homem violento (na defesa absoluta da liberação desmedida de armas para “todos” bem como a apologia à tortura e aos que dela fizeram uso), etc.
Tudo isso e muito mais nos mostram a ineficácia e ineficiência do governo para considerar e preservar a racionalidade como fundamento da civilização. O ódio à razão agora se dá por uma ideia nefasta de um chauvinismo sem limites e de que a esfera humana está politicamente abaixo de um deus detentor de uma suposta verdade redentora, a da ideologia caricata e perigosa daqueles que odeiam a realidade dos fatos.
Adriano Nunes
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