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Literatura

Por João Neto Félix Mendes - www.apensocomgrifo.com

Seu Toinho e sua filha Luzinete, momento em que ele recebia o Títuo de Cidadão Honorário de Poço das Trincheiras

Folheando meu livro de memórias de um aprendiz de bancário que um dia eu fui, encontrei experiências, aprendizados e histórias, muitas histórias. Pouco ensinei, mas aprendi muito, principalmente as lições não programadas que vinham de gente simples e anônima que eu encontrava na lida diária. Outras tantas preleções levei-as junto comigo na expectativa de transformá-las em dever de casa. Muitas se concretizaram, outras pelejo até hoje. Quando a gente vai envelhecendo, vai melhorando umas coisas e piorando tantas outras.

Quando o Banco do Brasil iniciou suas atividades em Poço das Trincheiras em 1983, iniciamos uma jornada que perdurou por anos. A presença da instituição naquela cidade sertaneja trouxe novas perspectivas e esperanças de desenvolvimento.

Na curva de despedida da cidade, o rio Ipanema faz festa! Quase rente ao solo, a toda largura, faz barulho raspando água à flor das pedras que cantam. Corredio, embala cantigas de acordar os homens e adormecer as crianças e as lança aos ventos à sombra desleixada das vigilantes craibeiras floridas de amarelo-ouro em reverência ao povo do lugar. Flores e sementes vão junto, levando a primavera e a promessa de vida nova a lugares incertos.

Com pouco tempo de trabalho, seu Toinho (Antônio Luiz dos Santos Filho(1951-2019), um dos primeiros clientes, chamou à atenção pelas suas iniciativas. Embora com a visão limitada e mobilidade reduzida, agiu rápido: alugou uma sala defronte ao banco, improvisou balcão com tábuas e ali iniciou seu negócio de venda de cocadas de coco e café com pão aos numerosos clientes que chegavam cedo esperando pelo atendimento.

O sertanejo natural de Mata Grande era obcecado pelo trabalho. Quando conquistou razoável clientela, mudou-se para a própria residência, transformando um cômodo em mercearia, ampliando os serviços prestados, incluindo fornecimento de refeições aos funcionários do banco, que era preparado por dona Lourdes, sua esposa. Comida simples e saborosa! Era o que a gente queria. E ele também: ganhar dinheiro conosco! Era um dos seus feitos. Fazia questão de dizer!

Embora só tivesse estudado o ensino fundamental era um homem que acreditava na educação como a força transformadora da dura realidade nordestina. Amiúde, acompanhava de perto o desempenho dos filhos na escola. Ao final de cada ano, inspecionava os boletins, premiando-os pelo bom desempenho.

Bem humorado, dizia verdades disfarçadas de brincadeiras, disso nunca esquecemos! Didática de quem sabe que o tempo não lhe será favorável, por isso as lições precisavam de urgência, sem dramas. Havia sempre algum filho o auxiliando na mercearia e quando a gente chegava por lá ele dizia:

- Luzinete, seja ativa como seu pai ! Pergunte o que os meninos do banco querem?

Era motivo de risos. Virou jargão motivador! Até os servidores do banco usavam entre si.

Em outro momento:

- Neno, seja ativo, não cochile no barcão! Atenda aos meninos do banco!

Seu Toinho era portador da síndrome de Arnold-Chiari que é uma condição em que o tecido cerebral se estende para dentro do canal espinhal, causando sintomas como dor de cabeça, problemas de equilíbrio e coordenação, entre outros. A síndrome levou-o a perder a mobilidade aos 40 anos e com isso vieram outros problemas: baixa visão, problemas hepáticos e cardíacos.

Mesmo com pouca instrução formal, era referência na cubagem de áreas rurais. Os cubadores utilizam métodos próprios na prática de medição de terras, decorrentes de suas vivências e de seu saber/fazer. Vinha gente de várias partes do município procurá-lo para fazer os cálculos.

Nos anos 2000, reencontrei o Neno, como meu colega do curso de Administração da UFAL no polo de Santana do Ipanema. Relembramos muitos momentos.

Sua maior realização e orgulho era afirmar que era um dos poucos pais pocenses que havia conseguido formar todos os filhos: Luzinete (Pedagogia) Antônio José - Neno (Pedagogia e Administração), Jailson (Pedagogia ) e Luzicleide (Biologia, Pedagogia, Química e Letras).

Avesso à política, desaconselhou a propositura da filha Luzinete ao legislativo municipal, mas ainda assim, pediu votos para a futura vereadora. Durante seu mandato, no período de 2016-2020, chegou à presidência da casa. Em 2018, por iniciativa de outro edil, seu Toinho recebeu o título de cidadão honorário pocense. Uma honra e tanto.

Só descansou quando deixou todos os filhos concursados. Os incentivava para que se inscrevessem nos concursos e ainda alugava transporte para que fossem fazer as provas. E conseguiu: Luzinete, professora(Estado e Município), Neno(Detran), Jailson (Casal) e Luzicleide (Professora em dois Municípios).

No início do ano, por ocasião da II Feira Literária de Santana do Ipanema, evento em que apresentei a exposição fotográfica digital, “100 anos da Iconografia Santanense”, conversei bastante com a Luzinete, via WhatsApp, que fazia parte da coordenação do evento, mas eu nem suspeitei que fosse a filha de seu Toinho. Foi ela mesma quem descobriu, não sei como! Afinal, desde que fui transferido em 1989, não retornei ao lugar, mas não foi por falta de vontade. Foram os reveses da vida! Sabe qual foi a primeira frase que eu disse quando ela se identificou:

- Luzinete, seja ativa como seu pai!

Rimos, mesmo digitalmente, com aquelas figuras inertes e sem graça, tão comuns nos dias de hoje! Longe, muito longe do que foi na vida real.

Seu Toinho, encerrou suas atividades uns três anos antes de falecer, deixando um legado de persistência, educação como prioridade e superação. Vimos aqui, quatro décadas depois, para recordar desse sertanejo aguerrido. Fazemos menção da sua memória para simbolizar tantos brasileiros anônimos que viveram e vivem os mesmos propósitos.

As flores e sementes deitadas na água foram levadas pela correnteza. Encharcadas, adormeceram guardando o dom da fecundidade e sonhando com o futuro. A dormência foi quebrada uma década depois, quando a brisa do fim de tarde balançou seus galhos. A mãe natureza mandou os sinais. É tempo de despertar. Acordaram árvores feitas, com raízes ancoradas na ribanceira do rio em lugares ermos, às vésperas da chegada da primavera. Estavam carregadas de botões amarelo-ouro e o novo ciclo recomeçou.

Que assim seja!

Fonte:
https://www.apensocomgrifo.com/2023/11/sonhando-e-realizando-o-futuro.html

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