Uma imagem de uma gaivota na praia, talvez não fosse tão-só imagem; às vezes, ela falava para além da fotografia. Qual verbete, no estranho hábito da leitura, que verbete, por ser verbete, enverga e não quebra. Aliás, verbete nasce verbete, e é verbete por sê-lo. Ninguém ousa, disse, duvidar de um verbete quão a moldura do pássaro na tela azul. Mostrou com o dedo. A mão não abandonava as aliterações. Sendo tudo provisório neste mundo geoide próximo ao que se diz irregular por gravidade e distribuição da massa, o verbete expande a percepção no voo da gaivota presa à imagem. Chinelão, estupefato, ouvia Von Wruund que era assessorado pela cartomante-mor.
Ninguém lia mais em Civitatis. Às pressas, passava por dentro o olhar de repente na imagem azul como se fazia no passado com a locução adverbial. A luz azul estava cada vez mais comum na cidade.
Ultimamente, Civitatis amanhecia tomada pela coloração alaranjada que lhe cobria da cabeça aos pés, como se os ventos do Norte da África houvessem rumados ao Oeste. Naquela manhã, como na anterior, o estômago de Chinelão delirante e tonto entre grossas fatias de pão cujo forno, na velha copiadora 3D, lhe dava opções entre pães salgados, doces e agridoces. Os drones passavam em voos rasantes. Nas últimas semanas, o trabalho na fábrica não lhe favorecia. O medo do início da nova guerra só aumentava. Os serviços na tecelagem, não sendo constantes como costumavam ser, se tornaram eventuais; Chinelão ficava em tempo integral disponível à tecelagem exportadora de tecidos cuja finalidade era usá-los como artefatos aeroespaciais. A geleia lhe escorria pelos cantos da boca. Limpa a boca, Fortunato! Entre salivadas barulhentas, o ar dos pulmões fazia a fonética alcançar o verbo dicendi. A caseira geleia com casca de laranja, cabeça, língua, fígado, pés de porco cozidos e congelados lhe escorriam pela roupa. A imagem da comida não o deixava, Hoje, outra vez, eu enterrei o pai; outra vez, caminhei no cemitério mole e pegajoso, pisei no barro, deixei pegadas. De longe, avistava a Rua dos Enforcados comprida e larga. Aquele parente distante, o Cel. Bé do Algodão, depois das topadas nas terras secas, pedras, espinhos-de-rosetas, fez mais fácil a fortuna como proprietário de jornal. Escorria a geleia. Mal conseguia falar. Na boca, a geleia se derramava; na mão, outra generosa fatia. Na cidade, a fala era uma mistura da língua dos ascendentes cafuneicos das Terrasalheias. A língua nom tinha osso, Fortunato. Pressionante, pressionante! Teressante! Me chamafam de pom-duro, disse o pai que morava num casebre de madeira. Feliz de quem tem caça à beira da estrada: nom passa fome, Fortunato. Nom, nom passa. A cabeça de Chinelão flutuava em Civitatis cercada pelo silêncio de uma cascavel. Àquela hora, os transportes serpenteavam o céu. A cidade acordava cedo. Saiu de casa esfregando as mãos nas calças, passava a mão direita na boca e sugava dos dentes os resíduos de pão e geleia. Aonde vai Fortunato essa hora? Não sei, mãe. Chinelão venceu a Rua dos Enforcados. Aquele nojento do sapateiro Schoof, disse passando a mão na boca e a esfregava na roupa, aquele imundo desgraçado pensava em ganhar o mundo; sujeito preguiçoso e sortudo que matava o tempo dormindo, não dava um prego na broa de milho e levava o mundo de barriga numa mesa de baralho. A poeira de chuva fina não parava de incomodar. O tio gastou a vida atrás dum balcão de tecidos; durante a semana, era na loja; no sábado e domingo, empurrava o cortador de grama e conquistava a simpatia da mulher. Papai queria que eu tivesse 15 filhos, que eu começasse aos 17, que aos 32 terminaria, que as roupas deles não seria problema porque era só passar de um ao outro, que a comida se comeria, como se sabe, comia um onde outros comiam, disse que a escola a todos decerto não atingiria, nem todos nasceriam à escola, e o trabalho talvez os alcançaria, que a vida regulariza as vontades, que as festas e os pormenores se encarregariam em lamber o que sobrasse, que olhasse cada semana onde os meses passariam, que falasse com o tio, não aquele, mas aqueloutro, o que se fazia quando se tratasse do que não se sabia ao enfrentar a sobrevivência nos enfrentamentos à sobrevivência. E o que farei, papai? Vá lhe pedir o dinheiro da feira emprestado! disse, e explodiu em gargalhadas. Quem virá a nosso favor, papai, se o lado de lá tá ou não noutra guerra? Ora, ora, se a até a pedra passa, disse, imagine a praça que chora à pressa.
O tio dizia que os servicinhos na loja de tecidos eram favas contadas. Ele passava os dias na mesma rua, com a mesma roupa, com os mesmos sapatos. Empregado na loja de tecidos, o tio irmão de mamãe viveu medindo panos. A casa do tio não tinha paredes esburacadas e sujas. O chão brilhava, encerado; quem chegava à casa do tio tinha que deixar os sapatos lá fora. O tio era um bocudo. Vá à casa de seu tio, Fortunato! A mãe em casa, no quarto, em posição de lótus. A mãe foi quem enterrou o umbigo debaixo dum pote velho enferrujado de limo, os dentes de leite cuidaram deles o pai com rompante de vivente das cavernas. O pai, no quiosque, um lápis atrás da orelha e um cigarro na outra; fazia contas de cabeça ou sentado na frente do comércio pastoreava a vida alheia. Aqueles dias, a vida era tomada por uma hermenêutica diferente. Um carro movido por prótons parou defronte ao quiosque e homens desceram apressados. Pressionante, pai disse. Pressionante! cismava Teressante! E a atitude do pai foi interpretada por uma ação arrogante. Aquilo era levado à boca por um funil. Veio-lhe a ânsia de vômito em, depois, o choro. Passou a junção de dois substantivos numa palavra composta, era o trem-bala, e os homens apressados se foram porque estavam em sua hora-atividade. Os visitantes inesperados abandonaram a gente dentro do quiosque. As prateleiras foram ao chão com garrafas de cachaça. Roscas, melado de cana, frutas secas espalhadas pelo quiosque, pães, doces caseiros, compotas e conservas em vidro grande. O pai, sem encontrar as palavras certas, cabelo repartido ao meio, um risco de bigode, um quilo de bochecha, barrigudo, cansado, suava, trêmulo. Desde criança, quando ficava nervoso, enchia a boca de saliva e se engasgava. Não parava de cuspir. Engasgou-se na própria saliva. Sujou os vermelhos bigodes. Atormentado e possessivo, o pai não conseguiu falar. Pigarreava, procurava fôlego. Engasgou-se, nojento? Ele foi educado na língua de lá. A atitude deles, antes de saírem, foi pisarem os pães e as frutas, jogarem compotas ao chão, chutaram; no ataque, eles derramaram feijão, farinha, milho e quebraram as gaiolas. Finalmente se foram. Pressionante, reclamava o pai. Pressionante! O ataque foi rápido e quase o derrete numa pasta de carne. Moídos os ossos das mãos, e os clientes do quiosque viam a distância. Tapas no rosto estalavam. Mais pancadas. Alguma vez se lembrou da infância? disse um deles. Lembrou-se por que ficou velho? Eles batiam onde doía mais. Lá fora, os clientes do quiosque sem vontade em ter uma reação. Aprendeu a obedecer? eles repetiam. Decorasse de vez, velho estúpido, a nossa matemática a2 = b2 + c2. E atiravam nas imagens de santos, nas figuras de mulheres nuas nas paredes de madeira. Um bêbado anônimo quis meter a colher no assunto, antes do trem-bala. O bêbado dançava e ria, à distância dum espirro, assobiava e cantava um frevo. O latoeiro Fraantz andava dum lado a outro. Papai sentia-se um cãochorro. O bêbado insistia em distrair a fúria com o frevo. As calças molhadas. Mijou-se, velho? riam. Papai levantou-se; equilibrava-se sobre dois cambitos. Não era fácil encontrar um porquê ao comportamento dos clientes do quiosque, exceto de um bêbado; todos abandonaram papai. E, hoje, outra vez, o enterrei. Caminhei no cemitério, outra vez, pisei no barro, deixei pegadas. Visitei o túmulo. E sugava o passado por uma, saía por outra. Deixou a Rua da Esmola e entrou na Alameda dos Eucaliptos. Sabia que a memória morria, a leitura morria, a utopia e as pessoas morriam? Asioteia morreu, sabia, e morreram Temistocleia e Eufemismo, há muito tempo morreu Cleobulina. Distante do bairro andou cabisbaixo na longa calçada e ruas transversais paralelas à alameda na qual apareciam as placas Rua do Teatro, Rua da Alegria, Rua do Sossego, Rua da Tripa, Rua do Maloqueiro, Rua Dr. Jãojão Aramefarpas. Assim se foi na Rua do Carrapato, na Rua da Poesia, na Rua Sensaída. A vida moldada pelos filhos. Um casou-se mesmo contra os novos valores; e ao ser questionado por vizinhos e amigos, na Rua dos Enforcados, sobre o paradeiro de Ottiwaak, papai tinha a resposta na ponta da língua, Nunca conheci essa animal! Os outros dois foram morar no continente Cafuné; papai morreu sem notícias de Maaxx e Moorrittzz. Se uma das filhas se foi, a outra ficou numa casa de prostituição. Chovia. Junho costumava ser de um sol do tamanho duma laranja sobre o fiapo de rio. Baldes de tinta caíam nas tardes antes das chuvas. O amarelo da laranja incandescente costumava desenhar a paisagem. Uma laranja gigante de sol cintilava o rio todas as tardes. Vieram as chuvas cedo ao Estado de Lisonjeico. O calendário falava em estio. A mudança de clima modelava a cidade. Primeiro o barulho, depois chuva ininterrupta. Os meses avançavam, retrocediam velozes, e os pés de Chinelão lesmavam.
Trabalhadores engolidos por donos de máquinas. Desde cedo, papai me dizia que eu era invejoso de marca maior. Papai reclamava de uma chuva por dentro sem propósito nem rumo. Era a voz de mosquito nas orelhas. Essa sua vidinha, Chinelão, não vale nada! Vez ou outra, os relâmpagos da memória lhe cortavam a realidade num irreal cheio de pedaços diferentes. Cheio de tragédias e sonhos de entrar no ramo de sapatos. És um sem prazeres. Tudo para ti é desinteressante. Ao menos fosse explosivo, beberrão e fanfarrão, amasse ao menos a comida acima de todas as coisas. És mesmo um falso de aparências e interesses. Medo e ódio te consomem. Criou-se sem bondade nem alegria. Não te lembras há quanto tempo, durante a vida, talvez nunca, tivesse, algum dia, explodido numa gargalhada sobre qualquer assunto. Cresça. Não quero. Cresça. Não vou. Nunca chegarei a ser a banana que ele foi. Ressentido. E daí! Maluco. Cresça, criatura. Não faço questão. Por que arrasta esse chinelão maior do que o teu pé? Não é da tua cepa. Às claras e às escuras, procurava a quem culpar. E se alguém o visse pulando a cerca? Não tinha, segundo o que acreditava, nem chance nem coragem.
Civitatis construíra-se de operários, ex-operários e aspirantes a operários da Tecelagem WuuB, na antiga fábrica na esquina da Rua Enkren e a Rua dos Enforcados. Com a morte do Cel. Bé do Algodão, a tecelagem foi a primeira e a maior fábrica. O presente trivial era sonhar em fazer parte do quadro da fábrica têxtil. Chinelão nunca quis trabalhar na Tecelagem WuuB; as aspirações dele eram negócios e sapatos. Fraantz, o filho do latoeiro, criado na rua de Chinelão – eles tinham a mesma idade – ao completar 14 anos recebeu uma festa na rua por ter sido contratado na tecelagem. Os amigos gritavam com a voz de trinca-ferro, Também quero, Fraantz, também quero! Ó, tu, ó escuta aqui, tu nom fosse com a Brunsmeldhar porraí, no, hem, só porque agora és operário têxtil! explodia a rua em gargalhadas. Subia as escadas, descia, em casa, a mãe de Chinelão corria da cozinha ao jardim.
Nom me fales do sapateiro Schoof!
E o silêncio encheu a boca de Chinelão.
Nom quero ouvir falar em sapatos, hoje, aqui em casa.
Não vou morrer antes de provar que o sapateiro vai além das suas tachas! disse e começou a imitar o decalque da linguagem da mãe. Moreu, ó moreu, todo mundo. Seu Thouchim moreu de caruncho, seu Grunfum de gemido, moreu seu Anghigof de grito, dona Pequena de medo, moreu seu Mudo num espanto.
Nom me corija! exaltou-se a mãe. Nom gosto.
E a mãe, outra vez na cozinha, outra no jardim, subia as escadas, descia. Se a procurasse lá embaixo, estava lá em cima; e se a procurasse lá fora, estava dentro. Chinelão tinha o sapateiro Schoof atravessado na garganta feito espinha de peixe.
O sapateiro Schoof não passava dum cheira-cola.
Nom gosto que fales assim! censurava-o. O pai não aprova.
Chinelão apressou o passo e mordeu o céu com olhos. Cerrou a boca.
O pai nunca amou dinheiro. Eu amo dinheiro, mãe; amo acima de tudo. Diferente do sapateiro Schoof, que perdia o salário na mão de buraco; sentado, bebia, fumava durante o jogo e falava alto, que do outro lado da rua se ouvia.
Nom prossiga nessa conversa.
O pai, mãe, falava que devia ter começado a vida com vendas de sapatos na feira, não com aquelas porcarias de filmes antigos. Se o pai tivesse começado a vida com vendas de sapatos e não com aqueles filmes sem graça, provocando gente da tecelagem, de feira em feira, hoje, eu...!
Cale-se, imprestável! impediu-o de seguir o discurso. Respeite a memória do meu marido, infeliz! deu-lhe outro fuete.
O trinca-ferro não me deixava, aqui, na Rua dos Enforcados, na santa paz. À noite, reuniam-se o latoeiro Fraantz, o sapateiro Schoof, o quiosqueiro pai de Chinelão, Hilaa e outros jogadores numa mesa barulhenta de cerveja e linguiça de porco. O pai, ao terminar de comer, tirava os dentes postiços e os depositava dentro do prato. Palitava a boca com o indicador. Mãe, papai se orgulhava em preparar, na véspera, a carne, metendo as mãos sujas com as unhas pretas de graxa dentro do latão de salmoura de onde saíam as mãos limpas como novas. As mãos do pai, mamãe, apertavam o rosto sobre os dentes. Por que, pai? Cáries! ele disse. Elas atravessaram o esmalte, o aplicativo me informou, e chegaram à dentina no prolongamento do nervo, outras atingiram o canal e provocaram infecções na polpa. Começou com a gengiva inchada, vermelha. Por causa de abscessos, ele perdeu todos eles; começou pelas panelas e acabou com a gengiva careca. Um rosário ao pescoço e fitas do Senhor do Bonfim nos pulsos. Devoto de Nossa Senhora do Bom Parto, durante as novenas, papai era o primeiro a chegar à nave principal. O cabelo dividido ao meio era uma pasta de sujeira. Viu o filho que se aproximava do quiosque, Rapou o bigode. Agorra nom mais homem? Rapou o bigode, tu feio! Feio que dói. Ei, seu merdinha, nom te quero, nom; fora!
Naquela noite, o sono de Chinelão não foi tranquilo. Ele presenciou ratos escapando dos bueiros nas ruas e baratas saindo de latões de lixo. Era como se fosse possível a realidade ser alterada a seu bel-prazer, como parte da criação de quadrinhos que lia antes de dormir. Ao invés da normalidade, tintas e lápis fantasiavam cuja única saída era fugir da realidade. No começo do fim, as noites liberam dos esgotos ratos famintos que corriam nas calçadas e gigantes baratas que subiam pelas paredes e pelas pernas das pessoas.
Que, pai?
Caia fora, tu feio! derrubou sobre o filho o labafero habitual.
Eu, feio? Credo!
Fora!
Pai, mas.
Fai pra lá. Tu nom, demônio! Sai, sai diabo! Esse tua invecha. Doença! Infechoso duma figa. Vai te tratar! Tão infechoso, que os cotovelo pega fogo.
Enquanto distanciava-se do quiosque, a voz o acompanhava:
Ó, rapou o bigode. Nom mais homem? De bigode rapado, tu feio!
Chovia em Civitatis, e a cidade parecia lagunar. O clima não era mais o que havia sido, quando a região foi caracterizada como semiárida. Havia alguma mudança na órbita dos planetas. Os moradores, aos milhões, diziam que a chuva chovia dentro deles.
Não sabia Fortunato que o Dr. Brado Atroz faleceu? Como! Afogou-se nas próprias preocupações. O exagero era da ascendência cafuneica. A atmosfera alaranjada apagou o azul. O finado foi o último filho de Mara Berrogrosso, bisneta do Cel. Bé do Algodão. A eternidade, rapidamente, o conduziu. E a incapacidade humana mais a prejudicou e menos contribuiu com as festejadas conquistas. A humanidade não passava de mais uma espécie entre tantas que ocupavam este planeta perdido. Morreu mesmo? Morreu. Não acreditava? Não sabia. A função da cegueira com promessas de tocar o sabor primordial era crescente, crescente o ouvir o som que levava ao abismo mais próximo.
Era como se não estivesse acontecendo nada? Não era. Tenso. Extático, diante do suntuoso prédio, Chinelão perdia-se no pastel pós-metroviário. Ele não sabia como chegou. Levado pelo estranho hábito da leitura? quis saber. Outra onda de contrautopia do tecnicodeterminismo? disse. Estático, expirou e espirou, os olhos não conseguiam enxergar altura tampouco largura. Os costumes dos homens, filho, disse Von Wruund, ó filho, insistia com olhar azedo e a boca lhe soprava fumaça. Os costumes dos homens são variáveis. Às vezes, ele dava a impressão e o jeito da mãe, calculou. Filho, ó filho, insistia. Para Chinelão, filho era a abreviatura de quê? A vida, esta viagem de bilhete único, disse Von, fê-lo perder a bagagem? Com um senhor sanduíche de mortadela, caspas no paletó e palheiro entre os dedos cheios de anéis. Filho, ó filho, governar é uma ciência cercada de segredos por todos os poros. Von Wruund metia a mão no pacote de biscoitos Aliterações e falava soprando pedacinhos molhados de Aliterações:
Acaso, conhecestes a língua do pê?
De quê?
Do pê. Porque pelo pê, pode-se pedir poder ao povo; e se pede ao parvo a perda perpétua; provoca-se perversidades profundas e, por fim, o povo perdoa os pecados. Às vezes, não era necessário mudar, só contemplar. Ontem, eu me livrei dos mitos, anteontem da ignorância, trasanteontem dos ídolos.
Com atenção e curiosidade de criança no primeiro dia na escola, Chinelão ouvia falas intermináveis que escorriam da boca gorda.
Viu algum oponível ao chegar aqui? Não, óbvio que não. Não viu porque não há. Von Wruund perguntava e ele mesmo respondia. E por que não? Porque tresnoitei com estes pensamentos. Tenho nojo da tirania. Eu só te recebo, filho, pois nas tuas veias correm as tintas do Doutor Honoris Causa Cel. Bé do Algodão. Aprovou a viagem de metrô de monotrilho? Trouxe isso do outro lado do mundo. Sabe o que eu era? Uma cópia imperfeita. Eu rompi com a visão mítica e sofri a mesma ruptura de seu Só, de seu Ão e de seu Ari. A propósito, que horas? Tive que acertar os ponteiros e olhar através das vidraças e ver a chuva que lava essa cidade. Quatro horas em ponto. Eu sabia! Como eu sabia? Porque daqui eu vejo seu Kã e o caminhar dele na praça, mesmo debaixo de chuva. Afinal, filho, quem éramos nós? Nós éramos nós, ora! O que podíamos ser se não nós mesmos, né, e por quê? Porque se não fossemos nós, quem seríamos, né? Caso não pudéssemos ser nós mesmos, seríamos o outro? Eu buscava a verdade, e seu Dê que pensasse outra coisa se quisesse de fato existir. Filho, confesso que dividia a cama com a Verdade. Se não gostou, filho, descartasse. Ih! Engraçado, essa noite, eu sonhei que a minha superestrutura fornicava com a estrutura da vizinha, e as duas gozavam testemunhadas pela bisbilhoteira da infraestrutura. E o que queria dizer, alguém sabia? Ei, vem cá! Deixe-te dizer ao pé do ouvido. Perguntei à cartomante-mor. Eu acreditava que o tempo fosse um romântico, um romântico incorrigível. Sabe o que éramos antes de todo este ciúme? Nômades. Entre eles, quem poderia ser legítimo soberano? Questão difícil, meu rapaz. Não era? Questão difícil, meu menino. O agir decorria de quem, filho? De mim, do soberano, e todo o mundo sabia desde ontem. Se não gostasse, pergunto-lhe, por que não descartou ontem? Ou achou que eu ia fazer o que fez o seu Rou, que entregou os filhos aos orfanatos da cidade? Filho, sabe o nome de solteiro da mamãe? O nome de solteiro da mamãe não é outro senão Gan Sogrilhões, filho. Ó, filho, mamãe, modo de dizer, pois a cartomante-mor foi quem me fez ser quem eu sou. Ser. Ou não? Ser é o que sou. Aliás, não sou cego feito mizaru, filho, nem surdo como kikazaru, e muito menos mudo que nem iwazaru. Aliás, isso, daí, tu já percebeste, não foi, filho? Gostou desse lugar. Gostou? Recheado de doces por fora. Foi o que te atraiu até aqui, filho? Sempre fui maternalista, um ser maternalista. Notou? Impus, percebeu, filho, sem culpa nem medo, a Civitatis o inefável e a disciplina de seu Kã. Afinal, filho, os cafuneicos sempre quiseram austeridade, não foi? A culpa não foi minha, filho. A culpa foi de quem? Civitatis é uma cidade lagunar. E saber que Civitatis antes era semiárida. Só chove nessa cidade, filho. E como estão os cafuneicos em Civitatis? Na campanha vindoura, filho, voltarei lá. Von Wruund muda de assunto como se troca meias furadas. Ó, filho, por acaso ouviu falar em meu amigo seu Só? O velho, não o novo. Ganhei a feiura do injustiçado seu Só, menos a pedagogia da sua inteligência. Von Wruund metia a mão no pacote de Aliterações e falava de boca cheia. Vivi aqui no bairro Solidão desde menino. Sempre adorei Civitatis. Nela, os hospitais não apodrecem, nem as escolas caíam aos pedaços. Talvez não acreditasse, mas sempre tive Civitatis por meta. Civitatis e Pólis, pra ser mais exato, justo, honesto contigo. Afinal, quem não é justo com o seu travesseiro, né, com quem pode ser, né, não? Von Wruund soprou mais uma vez a fumaça do palheiro. Ali, está o Salão dos Segredos! apontou com o braço pesado. A chave? Sempre a carrego presa ao pescoço. Lá, Salão das Vaidade com as portas arreganhadas. Aquele, o Salão das Rusgas. Sobre ele, filho, sem comentários por hora. Me desculpe... Vamos supor... Daí, então... Chinelão reviu o pai em sua avant-première. Vamos supor... Daí, então... Von Wruund metia a mão gorda no pacote de Aliterações e ria o riso gordo, espalhafatoso, escorriam no canto da boca outros me desculpe e vamos supor, daí, então. Filho, ó, vivemos na era da multiplicação das ciências. Nós vivemos, filho... nós e os nós de nossos dedos aaa... ééé... iii... ooo... ééé... Sibilou na conjunção adversativa masss... Estalou dedos. Puxou pela memória. E sorriu com o seu hálito de chocolate amargo. Procurava as palavras e sibilava outra conjunção adversativa. Voltava a procurá-las, como se ele estivesse nu no caça-palavras. E, naquele ponto, por mais que garimpasse, nas profundezas da memória, unidades de linguagem, este substantivo palavra não lhe emergia nem com a força da cartomante-mor sempre ao seu lado. Ela o segurou pelas mãos e, pedindo calma, deu-lhe algo misterioso que trazia na mão fechada, ele engoliu e logo parou de procurar palavras. Às vezes, Von Wruund ficava água sem cheiro e sem cor. Se eu tivesse tergiversado, que eu tenha tergiversado, se tu tivesses tergiversado que tu tenhas tergiversado se ele tivesse tergiversado que ele tenha tergiversado, se nós tivéssemos tergiversados, que nós tenhamos tergiversado, se vós tivésseis tergiversado, que vós tivésseis tergiversado, se eles tivessem tergiversado, que eles tenham tergiversado, mass... aaa... ééé... iii... ooo... ééé... Vamos equacionar as diferenças. Sabe, filho, eu interpretei Civitatis; e a minha interpretação sempre foi a de que a2 = b2 + c2. Tem alguma dúvida disso? Não, senhor, meu senhor. Foi o que suspeitei. Obrigado, senhor. Não me agradeça. Me desculpe, meu senhor. O tempo é o senhor dos encontrões. Sim, senhor. Ó, filho, veja como chove em Pólis. Assim chove em Civitatis? Deixei a cidade sob forte chuva, senhor. Foi o que pensei. Este ano tá bom demais de colheita. Milho verde à vontade, filho? Sim, meu senhor. Foi o que cogitei, e por isso sou o que era já em outras eras. O São João este ano quero estar em Civitatis, pular fogueiras e ter relações compadrescas com quem quer que seja e gerar afilhados à vontade. Não é isso, filho? É isso, sim, senhor, meu senhor. Von Wruund riu um riso gordo e debochado, soprou fumaça do palheiro, comeu novas Aliterações trazidas pela cartomante-mor. Ele caracterizava mais um fetiche que comia Aliterações. O que era verdadeiro e o que era falso? Uns caminhavam pela estrada da violência, disse, e Chinelão atento, enquanto outros preferiam a calçada do bom-senso. E Chinelão olhava as aliterações nas mãos de Von Wruund atraído pelo cheiro de chocolate amargo. Quando eu era uma criancinha, filho, a minha cabeça era um borrão desordenado. Cresci. Hoje, eu sou uma antinomia. Uma antinomia? Isto, filho, isto. Chinelão ficou mastigando a antinomia de Von Wruund sem saber se poderia digeri-la. Era ou não era uma contradição servir a dois senhores? Era, sim, senhor. Tu és um dos meus, meu filho, tu és um dos meus. Este é um dos meus! anunciou. Chinelão encheu-se de euforia demonstrada em sua linguagem corporal diante de Von Wruund, a cartomante-mor e dos seus assessores. Eu, ó filho, sou o que as mensagens e as imagens, que estão em toda a parte, chamam de vir-a-ser. Os escorpiões nunca foram iguais às baratas. Depois de uma pausa de baforada, no palheiro, hummm... outra baforada longa. Filho, ó, filho, fale alguma coisa; não me deixe falar sozinho. Mais baforadas. Me fale da linda e maravilhosa Civitsatis. Chove muito por lá? Chove, sim, senhor. Agradeça a mudança na posição dos satélites. Os hormônios de Chinelão deixavam-no, não por conta própria, mas contido. Von Wruund metia a mão no pacote de biscoitos Aliterações. Filho, nós vivemos na era da multiplicação.
Era noite fria e chuvosa. Chinelão estava num bar. Sequer sabia como foi parar ali. Aproximou-se do balcão e comprou um saco de amendoins torrados na casca. Sentou-se numa mesa vazia, próxima ao palco. A exemplo do falecido pai, acendeu um cigarro e deixou a fumaça cobrir-lhe o rosto. Civitatis inchou até perder-se dentro dela mesma. Largas avenidas, ruas e servidões acanhadas na escuridão, alamedas mal iluminadas, praças com árvores velhas. E prédios altos espalharam-se por quilômetros. Penumbra em cada mesa do bar. Música alta, ao vivo. Mulheres com mulheres, homens com homens. Chinelão acompanhou os pares na pista de dança; os dançarinos assanharam-se, iam às mesas e os pares eram formados. Uma dançarina idosa era a mais provocadora com os seus passos de samba, salsa, rumba e lambada numa única dança; e atraía outras ao círculo de seus requebrados. Na manhã seguinte, esta dançarina foi encontrada morta coberta por cascas de amendoins. O medo, a anarquia, a violência, o ódio nada disseram sobre o caso naquele bar. Não era incomum o caos percorrer as veias abertas da cidade que não dormia nunca. Noutra noite fria, Chinelão, com as mãos sepultadas no casaco, cabeça baixa protegida pelo capuz, ia à casa da mãe e elucubrava como convencê-la a deixá-lo dormir lá só por esta noite.
ESTRANHO HÁBITO DA LEITURA
ContosPor Marcello Ricardo Almeida 16/06/2025 - 11h 30min

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