Fim da estação.
Formigas-carregadeiras:
Folhas bêbadas.
Santana é movida pela fruição de ouvir e de contar? É. Cleobulina, disse, entre o sono e a vigília. Se fossem histórias verossímeis ou inverossímeis, isto não quer dizer; o que quer dizer é a astúcia da aranha e a esperteza das folhas, ambas engenhosas sem saberem. Era o mistério entre a fome de se ouvir contar histórias e o alimento ávido por ser devorado por quem lia.
Cleobulina e Avó, sentadas, cada qual com a sua terrina cheia de pipoca, acompanhavam o vaivém dos passantes e divertiam-se. E nas noites enluaradas e limpas, Avó e ela sentavam-se a contarem histórias uma à outra; era uma festa o amor da amizade.
Apressado e ancho feito jovem, o professor Almeida, já velho, comentava que o amor era o filho do Recurso e da Pobreza. Sentado em sua cadeira, via a rua que se balançava. Professor Almeida, bisneto de D. Orminda Almeida, foi um dos alunos do incensado matemático Pabulagem Monótono, professor de Wittgenstein e de Bakhtin. O matemático, professor Pabulagem Monótono, fugiu da primeira guerra e veio esconder-se em Maceió. Vivia entre a Lagoa Manguaba e a Lagoa Mundaú.
O mundo ainda parecia atraído pelas divindades antigas, que justificavam a existência do amor, desde o tempo de magister dixit do professor Almeida. Ninguém jamais negaria que o professor não tivesse uma prosódia engraçada. Sons em suas falas, fossem na escola ou fora dela, cheios de acentos, entonações complementares desnecessárias, Nem tudo, pessoal, era assunto de prova, nem tudo era verificável ou observável nem testável, mas, pelo sim e pelo não, podia se comprovar se o falso era mesmo falso ou se o verdadeiro talvez não fosse tão verdadeiro assim. A dicotomia, na opinião do professor, era cínica, senão ingênua, porque o conhecimento sempre demonstrava haver mais do que dois resultados, às vezes três. O que o professor queria dizer com três? Não o número sete, que dizia o velho Pitágoras, falava o professor, mas o número três. E disse 33. Quem dizia que o padrão era binário, nunca aprendeu sequer a tabuada, afirmava o professor; tabulada era o abecê da matemática, quem desconhecia a tabuada era analfabeto em matemática. Quanto mais se falava em coisas imutáveis, mais transmutável se tornava a realidade. Todas as lembranças e os sonhos, que por acaso fossem sonhados durante o sono, assim eram. Amor à escola, à educação, amor à matemática, aos cálculos, às equações, às fórmulas, pois as ciências acompanhavam o professor Almeida aonde ele fosse. Naquele dia, o sol pintava a Lagoa Mundaú, na imagem que ele tinha na parede da sua casa. Almeida envelheceu. O tempo passou e ele não viu enquanto caminhava nas escolas da capital alagoana em sua trajetória de caminhante com giz em lugar de apagador, guarda-pó, quadro, aula, recreio, férias, temas, metodologia e didática peculiar.
Mexeu-se. Esticou os braços, as pernas. Cleobulina teve a impressão de que estava acordada. Dormia? Que horas eram estas, meu Deus! Não consigo dormir mais como antes.
Ultimamente, o sono era uma imagem longínqua. Cleobulina, fechou os olhos, e não sabia se estava acordada ou se dormia. Era ralo o cabelo, o rosto seco, chupando, o pente na cabeça dele lhe arrancava tufos deste tamanho, a boca larga, o nariz cheio, os botões dos olhos viam a vida diferente. O homem arriado é um, já paisano é outro. Vi. Ele tinha aparência de papai. Eram irmãos. Lá em casa, falava do enigma de Angico. Lá, o problema foi a mistura de cachaça com pólvora. Eles eram jogadores da mesma mesa, disse o tio Camundongo. O tio conhecia a conversa deles pelo avesso. O filho do tio se guiou pelo caminho do pai dele. Camundongo, lá em casa, disse que, na verdade, os cangaceiros queriam derrubar a república e impor o absolutismo de todos os seus caprichos infantis. Papai disse: Camundongo, seu mentiroso descarado, lave a boca com creolina. E o tio ficou cheio de arrodeios e covardia. Oxente, mano! O tio olhou desconfiado. Vixe! Deixa esta vida de arenga, mano. Ele não deixou.
Caiu o sono na poeira do telhado, outra vez, quando os morcegos saíram entre os buracos nas telhas afastadas pelo vento. Nesta hora, Cleobulina viu as naus portuguesas, no Porto de Jaraguá, repletas do povo galego. Este povo quer achar abrigo em Maceió, e param na frente da arruda.
Ó povo cheio de arrodeio!
Primeiro, ela viu diante da sua presença a figura esguia e reluzente, que a atraía com o seu brilho, parecia o próprio ouro em carne e osso. A figura fixou-se aos olhos de Cleobulina. Depois, já não sabia se foi algum alimento na véspera o responsável ou se alguma conversa que lhe fez mal. Pôs a mão direita aberta sob o peito direito à procura do fígado e, com a mão esquerda, bateu com a ponta dos dedos médio e indicador sobre o dorso da mão espalmada; demorou a ouvir o som, sem diagnóstico preciso, parou. Em seguida, ouviu vozes; como se fossem conversas dos vizinhos:
Todo este barulho por nada.
O que é todo?
Todo é sujeito.
Não! protestou. Todo, corrigiu, é pronome indefinido.
O mentiroso bem está quando bem acaba.
Não me chame de mentiroso.
Calma! desculpou-se. Vamos conversar.
Todo, é até adjetivo.
E quando, todo, se encontra no lugar do substantivo?
É outra conversa no quadro da classificação.
Então, então! aliviou-se. É pronome indefinido. E quando todo é visto ao lado do artigo definido, também.
Não vamos polemizar.
Até como sujeito, todo pode ser classificado. Meu amigo, nem vou entrar no mérito se, todo, caracteriza um substantivo ou não.
Neste ponto, Cleobulina abriu os olhos e viu que estava acordada. Logo, ela os fechou em busca de alguma madorna que perambulava ali àquelas horas. Ei-la, era a figura esguia e reluzente, que não era uma, eram duas. Cleobulina jura. Havia na presença daquelas figuras a relação de dependência entre o termo regente e o regido; um complementava o outro. E sempre foi assim, Cleobulina, disse, ora o verbo regia, ora regia o nome.
As noites de Cleobulina cheias de locuções adverbiais. As palavras numa festa dionisíaca. No Bar Advérbio na Oração, as palavras governavam o lugar, o modo e o tempo. Todas dançam tango e samba, dançam salsa e merengue, dança polka e dança blues, dançam valsa e bolero. Os principais gozos das locuções são notáveis nas modificações de adjetivos, de verbos e até dos próprios advérbios. Ufa! As locuções adverbiais presentes na negação e na afirmação.
Cleobulina enterra as mãos espalmadas entre as coxas. Vê o sujeito oculto. Já viu um, sabe como ele é, consegue reconhecê-lo? Cleobulina muda a posição. Fica inquieta. No sono intranquilo, ela testemunha o sujeito elíptico que se disfarça de sujeito desinencial. Ah! geme Cleobulina. Toque... tique-taque... toque-toque! Há alguém lá fora. O sujeito indeterminado está em sua porta. Ela sabe que o sujeito oculto não aparece claramente na oração. Cleobulina dorme com o terço entre os dedos das mãos e o rosário enlinha-se ao pescoço. A saliva lhe escorre clara, lenta, demorada, ela molha o travesseiro. As pernas estão à mostra, as coxas à mostra, outras partes à mostra grátis. Cleobulina sonha com o contexto, na oração, sonha com a Conjunção Verbal com quem esteve no sábado passado, na Rua da Lama. Cleobulina está no mar, ver a praia, na Avenida Saraiva. O vento bagunça o cabelo. Cleobulina, com as mãos, protege os olhos do sol de ouro de Maceió.
Se há uma divindade das divindades, na Língua, é a Gramática Normativa. Capaz de dizimar classes inteiras. O seu templo sagrado é a escola. Os seus profetas estão em toda a parte. Os seus adoradores devem-lhe veneração extrema. Ai de quem duvidar dos seus conceitos! Ai de quem não honrar os seus princípios! Espera o fogo da geena, após o julgamento no tribunal inquisitorial, os seus detratores. A deusa Gramática não tolera incongruência. Há quem disse ter visto a Gramática metamorfoseada em escaravelho a chafurdar onde se costuma vê-lo fazer e levar a sua bola feita com a resposta dos intestinos como troféu. A Gramática, segundo a mitologia desta divindade, com os seus truques, engana, confunde, distrai, debocha, ridiculariza, humilha, oprime severamente como forma de castigo, devora a todos. Na tessitura deste mito, ninguém sai impune. Nem por isto deixa de ser venerada em todos os cultos.
As figuras antropomorfas, diante de Cleobulina, se aproximavam cada vez mais. Elas adornavam-se com coloridos fios cujas contas brilhavam com o poder de cem lanternas num beco escuro de paredes, teto e chão de piche.
Inicialmente, as duas figuras conversavam:
A- + luno! disse como se estivesse irritado.
Não é a- + luno, retrucou, é alumnus!
Fico horrorizado ao ouvir esta classificação. Soa como se ele não tivesse luz. Coisa horrível de se ouvir.
Não alere isso, professor, por favor, é um horror. Não me faça sentir pavor, em nome do amor que nutro por minhas escolhas de vida.
Tudo no universo é esférico; nada que é assimétrico sobrevive. Os olhos de Cleobulina, percebia-se pelas pálpebras nervosas, giravam na rapidez da Terra.
A discussão prometia consumir todo o colegiado, na escola primária. Diferentes massas de ar se formaram no conselho daquele dia. O vento soprou forte e surgiram nuvens de tempestade. Naquele minúsculo ponto, nascia uma rotação horizontal que prometia se fortalecer, subir o tom, formar uma coluna cujo ar nem Sansão e Hércules, juntos, poderiam contê-la; e a coluna iria girar e o giro acabaria com a reunião bimestral. Esta seria a sanção aos que participam da desordem, disse.
Raras eram as noites nas quais Cleobulina deitava-se e dormia. Antes, dizia-se boa de cama: era só se deitar e dormir. Na idade na qual se encontrava, o sono não lhe favorecia como costumava favorecer. Uma época, Cleobulina cochilava até no trabalho. As raras vezes em que se encontrava com o sono, ele costumava mostrar-lhe coisas que ela testemunhou na escola primária, na Rua Boa Vista, onde tinham se perdido no tempo. Naquela noite atordoada, ela ainda trabalhava na escola primária, na Rua Boa Vista, onde era comum ouvir a voz anasalada dos professores durante os conselhos de classe. Os conselheiros em longos debates sobre a etimologia do substantivo comum aluno.
Ele classifica, disse, um gênero masculino que recebe educação.
Vem de alumnus, disse outro, nascido da árvore latina. Possui textura de discípulo, formato que promete se fortalecer, cor variável, às vezes sem sabor, e gosto azedo.
Como o senhor classifica os seus alunos, professor?
Ora! respondeu com ares de nobreza. Certamente, asseguro a todos os senhores, classifico-os de estudantes. Este substantivo comum de dois gêneros, não é melhor do que aluno?
Ah! disse, como se estivesse debaixo de temporal sob forte chuva, vento e frio. Senhores, senhores, se tomarmos este caminho iremos assassinar a tiros de metralhadora a linguística histórica. Não poderemos repetir o que houve na assembleia.
Sim! exclamou, como se declamasse Camões. E digo mais, senhores. As armas, as armas, guardem as armas, por favor, guardem as armas e os barões assinalados, senhores, que, da ocidental Praia do Pontal à Praia da Barra, tudo é praia lusitana, senhores. Tudo. Todos nós conhecemos estes mares nos quais sempre navegamos.
Bem! temperou a garganta, antes de puxar outra boa quantidade daquele fumo no cachimbo curvo trazido na última viagem a Inglaterra. To be or not to be, cavalheiros, to be or not to be.
Vamos lá! disse, como se estivesse no púlpito. Os senhores sabiam que eu li nos jornais, há uma semana, sobre seis mil alunos entre os quais apenas 1961 diferenciam o período simples do composto? Ilustres cavalheiros sabem que estamos no dia 29 de setembro, próximos a outro Natal.
Pois bem! temperou a garganta, e agiu semelhante a um constituído em defesa do seu constituinte, no tribunal do júri. Eu classifico os alunos entre os que dominam o conceito de referência deítica, o conceito de referência catafórica e o conceito de referência anafórica, e os alunos que não sabem o que querem dizer estes conceitos.
Nunca quis pensar nisso, disse, se fosse pensar por este ângulo, mestre, não teria chegado a uma locução adverbial.
E o que vêm a ser, perguntou o professor de matemática, estes conceitos, professor, ou seja, como é mesmo, mermo, memo?
Referências anafórica, catafórica e dêitica! disse, enrolado na fumaça do cachimbo. E pareceu o pescador que perdeu o cachimbo numa tempestade em alto mar; saltou da canoa, que ficou sozinha, agitada pelo vento que formava ondas gigantes, mergulhou, encontrou um tubarão que baforava o seu cachimbo; lutou com a fera, escreveu em seu dorso com brasa, que não deixaria ali o seu cachimbo; nadou, subiu, tomou a canoa das garras do vento e remou de volta ao lar. Referência deítica é um fenômeno em nossa língua, senhores.
Dêixis!
Não, insistiu, agora irei até o talo.
Senhores...!
Tudo depende do enunciado.
Compreendo.
Veja o caso dos pronomes.
Compreendo.
Um pronome é pessoal, outro é demonstrativo.
Compreendo.
Depois, professor, encontramos um advérbio de tempo...
Não é o de lugar?
Agora seja! Tudo desaba na pragmática da questão, professor. E, afinal, como o cantor pode encontrar a palavra certa no labirinto da comunicação de seus versos? Assim.
Compreendo.
Se anafórica é o que foi dito antes, catafórica dir-se-á em breve.
Compreendo, professor. Dirce não é a senhora que nos traz o cafezinho atrás da bandeja? Prossiga, ilustre colega, prossiga.
Excelente lembrança. É hora do nosso café de cada dia.
Não pelo preço que se acha, desde que Vargas provocou a volumosa queimada e perfumou os solos argilosos.
Rapidamente, em tumulto de cadeiras, os professores ergueram-se das suas pesadas cátedras nas quais estiveram sentados por horas. Cleobulina e a piaçava entraram. A sala coberta de restos de charutos e resíduos de tabaco, papéis no chão, livros espalhados, folhas entre grossas capas de couro.
Nos corredores agora, ouvia-se:
Por que os alunos não aprendem?
Eles aprendem, professor.
Não vejo! disse.
Porque a aprendizagem é lenta e gradual.
O problema do ensino é a aprendizagem ou a ensinagem? foi a pergunta de outro professor, que seguia o grupo.
Se ao menos os alunos se comportassem em salas de aula como eles costumam ser vistos na catedral!
Impossível, mestre, impossível!
Eles agitam-se nas aulas como se estivessem nos bailes de Carnaval.
Uns destabocados, professor, uns destabocados!
E a solenidade da escola ia perder a sua seriedade mais cedo do que tarde, meu prezado.
I-f-e-l-i-z-m-e-n-t-e!
Aprovas o sabor deste café?
Prefiro quando estou em Londres!
A erudição está em crise.
A erudição está em casa.
A erudição está em crase.
A erudição está em dó menor.
A erudição está em acento grave.
É grave, professor, é grave!
É tudo culpa da gula, dileto amigo.
É tudo culpa da gula.
Este pecado delicioso.
Como todos são.
Sobre a comunidade das formigas, criou-se a lenda de que o fim das formigas ameaça o equilíbrio da Terra e acelera o fim de tudo.
Sério?
Como se a Terra, da noite ao dia, fosse destruída por um vácuo silencioso e uma sombra cobrisse tudo com uma noite eterna. Era o fim da luz com a morte do Sol?
Que coisa infantil, Anacleto!
Neste silêncio não se escuta nem a própria voz.
Não exagera, Anacleto!
Quantas vezes o sapo gosmento lançou a língua avara sobre todos nós?
Anacleto, Anacleto, com isso não se brinca, Anacleto.
Ouça. É o ronco do rio gordo. Os braços e as pernas deste rio, sobre o qual passamos nesta ponte, ocuparam todas aquelas palafitas nas margens da Lagoa Mundaú. Tínhamos que apelar ao divino.
Eles desafiam até Deus, Anacleto.
Seria por causa de sua barba branca?
Que blasfêmia, Anacleto!
Não blasfemei, Policarpo.
O ateu nasce na gramática ou na semântica?
Cleobulina acordou daquele pesadelo e procurou em seus guardados quem poderia ser este Anacleto e quem seria este Policarpo. Os sonhos eram cheios de truques com as suas narrativas estranhas. Horas sem dormir, horas vagavam as suas memórias. Ora em Santana, pra em Maceió. Andava na velha Rua da Cadeia, onde era menina, corria na Rua da Lama, onde foi mulher. Da vida tudo se podia esperar.
Caminhava nas calçadas irregulares de Maceió o professor Almeida, nas ruas inchadas da capital, saindo de mais um inverno úmido, caminhava no clima seco, indo a Santana, cidade de relevo declivoso e pedregosidade superficial.
Almeida acabara de sair de bares encantados na Lagoa Mundaú, e avançava com longos passos as ruas esburacadas, o chão batido e mascavo. Lá se foi Almeida atravessando os bairros lascivos de Maceió.
Ia deixar o litoral e voltar ao sertão de onde saíra há quase meio século. Vindo à capital trabalhar e estudar. Ficaria Almeida um tempo, um ano, dois, três; foi ficando... ficando. Ficou por mais de quatro décadas nos bairros lascivos de Maceió. Mas estava de volta à terra maternal.
Nos bolsos do professor, velhas fotografias de filmes que não existiam mais. Filmes em cartaz no São Luiz que só existiam em suas lembranças, Cine Rex, no bairro Pajuçara. Como em um sonho, caminhou Almeida no Vergel do Lago em direção à Levada e passou na calçada do Cine Lux, que não existia mais; na Levada, Cine Ideal, que também não existia mais, adiante a Feira do Passarinho. Na calçada do ex-Cine Ideal, ele avistou a linha férrea, aos fundos do Teatro Deodoro. Adiante, a praça do monumento ao marechal montado num cavalo de ferro, no centro da praça, defronte ao teatro, à frente da mesma calçada e da mesma Academia Alagoana de Letras.
Significante isolado nada era senão um barulhento sopro de voz ocupando a feira livre. Adiante, estava o professor Almeida, na Feira do Passarinho. Os espaços urbanísticos atropelados. Passou a récua transportando farinha de milho e feijão. Nas ruas, somente o significado dava contexto ao som naquela reca de vozes que representavam o significado dos produtos vindos da Ásia e usando pregões árabes.
O homem incompleto metia a peia na mulher e a mulher retribuía às crianças lhes metendo a peia, e as crianças por sua vez distribuía a peia aos gatos e cães. A feira era a palavra, e a feira só existia quando havia significado em sua existência.
Atrás da cortina de gente, carros, barulho do povo, carroças, feirantes, linha de ferro, os barões e os viscondes, que não existiam como antes com os seus títulos nobiliários, pés, pernas altas e pernas baixas e gordas e outras finas, braços desocupados, alguns com fardos imensos, olhares imensos, cabeças imensas calculando contas imensas em papéis de embrulho, bocas, gente vendendo pipoca, água de coco da baía, rosários de coquinhos ouricuris, roletes de cana-de-açúcar plantada em velhos engenhos que não existiam mais porque foram os engenhos substituídos pelas usinas, bagos de jaca em sacolas, jacas vindas dos tabuleiros, ruas cheias de laranjas, fatias de manga, amendoins torrados, cachos de banana, jabuticabas, sapoti, sandálias de couro e sapatos, chinelos, luvas e relhos dependurados, ximbras em potes de vidro sobre o balcão dos comércios, roupas, chaveiros, cartões-postais das praias em Maceió, sorrisos, óculos, chapéus de palha, e uma jovem e bela vendedora de veneno oferecia o produto com efusiva propaganda.
Aproxime-se! disse a um público invisível. Aproximasse, mas sem tumulto. A jovem e bela vendedora oferecia pacotinhos usando rica e efusiva propaganda. Quem quisesse veneno, antes entraria na fila; hoje, ninguém receberia veneno fora da fila, só receberia veneno quem estivesse na fila. Veneno dentro da validade. Calma, aí, povo, calma! Veneno! falava ao povo longe dela, falava ao povo preso aos seus afazeres, chamava-lhe a atenção inutilmente. Veneno aqui; últimas unidades; aproveitasse; viesse comprar o seu antes que terminasse. Gente, gente, não brigasse, gente; tínhamos veneno. Mas, antes de entrar na fila, senhora; por favor, senhor, respeite a fila. Só ia entregar o saco de veneno a quem estivesse na fila. Respeitasse a fila. Ninguém ia brigar por veneno; não precisava de tanta agressão; havia veneno pra todas e todos. Ei! aos gritos. Calma, pessoal, veneno aqui, aqui tinha. Quantos pacotes? Senhores, respeitem a fila. Senhor, o senhor tinha dinheiro trocado? Aceitava moedas. Seriam quantos pacotes de veneno? Não brigasse senhor, nem promovesse desordem.
Na feira, que ocupava todos os espaços, no centro da cidade, os apertos entre toldas, perfumes baratos, bigodes, bocas pintadas, gaiolas, passarinhos, vendilhões de bugigangas, espelhos, pombos em caixas de madeira, pintos, galos e galinhas, cãeschorros nas ruas, gatos em armazéns, caixotes de farinha, feijão, arroz, milho. Nas prateleiras, garrafas; na linha, rápida, a cobra de ferro se aproximava no ritmo do blues. Durante os seus sessenta anos, o professor Almeida dedilhava num velho violão comprado em suas primeiras férias no Delta do Mississipi.
A lua cheia de cor à noite e agora a lua pálida. A vendedora de bolsas e sapatos mostrava a lua apontando com o braço fino, Chegaram à Lua os primeiros cosmonautas e astronautas constituíram famílias e, hoje, meio século depois, o satélite encontrava-se habitado por colonizadores dos dois lados do hemisfério terrestre e os seus descendentes nascidos na Lua, os lunáticos. Mentira! Mentira? Mentira, porque Ninguém foi à Lua. Não? Não. Não sabia. Não sabia que Ninguém era o Rei de Ítaca? Olhasse estas fotografias. O que tinham elas? Observasse a sombra. E o que tinha ela? A resposta está na sombra. Não entendi. Não quis que entendesse. Se a fábula da vendedora foi verdadeira, isto era de somenos importância, importante era que a fabulista fabulava e as suas fábulas atraíam o público e o lucro era gordo, na lua cheia.
Os vagões dançavam em seu ritmo no trilho, atravessava a feira. Almeida entrou num boteco, comprou caldo de cana; o caldo verde enchia o copo gordo e pesado, e, no prato, um pastel de vento.
Naquele copo de caldo de cana navegava o professor Almeida. Passou uma avó com um neto pela mão em meio às toldas apertadas, juntinhas umas às outras, num corredor escuro e coberto por lonas de plástico, as toldas cheias de novidades. O neto ancho. A avó era a pessoa mais infeliz do mundo. Os dois na Feira do Passarinho. A avó demonstrava o seu amor levando o neto pela mão entre os corredores cheios de gente, cheios de bolsas penduradas, artigos baratos; seguiu em frente, sempre em frente ao mercado de sururu sob a sombra da lona que emendava as toldas. Um carrinho prateado na mão do neto. A avó rápida no meio do povo. Espremia-se entre o povo, o neto acompanhava a avó. Na feira de rua onde tantos pássaros presos em viveiros eram vendidos aos donos de gaiolas que chegavam de longe e, ali, eles apontavam o dedo, Esse. Quanto custava aquele? Queria esse. O neto e a avó, pequenos, conquistando o mercado; ele desbravando o povo feito astronauta numa nave imaginária; ela, a estrela que lhe guiava o caminho. O neto de capa e espada, avançava em sapatos rocinantes cavalo-de-aço ao lado da avó escudeira, no espaço entre o povo feito navegante, no Rio Mississipi, um Tom Serrador marcando dois pontos em sua aventura de conquistar o mundo das toldas. Mas alguma luz da realidade logo trouxe o professor Almeida ao caldo de cana-de-açúcar. O barulho de peças de damas, de cartas, de dados. Na rua, as mulheres redondas passavam vendendo mussunins, siris em carrinhos de mão. A fome no prato de cuscuz com leite e sururus. Em barracas de madeira, na rua ao lado da linha do trem, vendedores de caldinho de feijão, caldinho de sururu e cachaça; o cheiro doce da cachaça andava de um lado a outro. Armazéns com paredes de azulejos vendiam carne-de-sol. Na rua, mulheres secas de toucas e braços ágeis vendiam tapiocas em pedra quente. Almeida conversava com os seus ex-alunos que, envelhecidos, trabalhavam atrás do balcão vendo tudo o que envelhecia em Maceió. Os filhos dos donos de botecos serviam as mesas e lavavam copos na pia improvisada, atrás do balcão. Com olhar de distância, o professor Almeida acendia outro cigarro. Gemia a janela esquálida. Com olhar de distância à espera do sol que se escondia em nuvens de chuva (rios voadores). O sol entretido entre pesadas nuvens. Não choveria em Maceió? O sol, entre janelas, atravessava a eternidade das formigas no chão do boteco. As mesas plácidas, indiferentes, e pressionadas pelas cadeiras, as mesas tímidas entre as toalhas, as louças, os pastéis de vento, os copos gordos e gelados com caldo de cana-de-açúcar. Tudo se reunia nas mesas do boteco; os jogadores inveterados, as crianças pedintes, os vendilhões de veneno e trabalhadores famintos, aqueles hábeis e inábeis, os velhos sem fé, as velhas alegres e pias. Nessa hora, em Maceió, o apito do trem preenchia a feira. Santana, polígono da seca, ficava a mais de 200 km. Xepixapi passava o trem, na Feira do Passarinho. Há pouco, a lua sensual, lânguida em seu vaivém – desaparecia, reaparecia – em lençóis de nuvens moleculares; estavam de viagem nuvens e sem nenhum destino. Andrômeda próxima a se chocar com a Via Láctea. O som da gaita chorava blues no atrito zangado do trem nos trilhos. Por que não era forró ou xaxado, baião? Andrômeda cada vez mais próxima da Via Láctea. Logo se iam às férias, iam-se a vida e o dia. Como a vida demorava a rir. Na linha de cores passava a cidade: batia sola o sapateiro com as suas alpercatas; apalazava o alfaiate, caseava vida alheia; sarrafava o carpinteiro o salário, as contas do mês. O grito demorado do trem esquadrinhou os curiosos. Pontiavam os ferreiros, que forjavam o mundo. Adiante, rebocaram os pedreiros, retelhavam e rejuntavam. Maceió movimentada. O grito seguia o seu curso. Alagados de cortiços, prostíbulos. Mendigos, açougueiros vendiam chuchos, toicinhos, paisagens mateúdas com a chã-de-fora e outras recatadas eram as chãs-de-dentro. O trem ia picando-fumo, acochambrante, aloprado. E o Jornal de Alagoas, filho do Jornal do Comércio, mostrava barrigas, expunha os seus furos, e, na retranca, metia a cara no calhau. Na Feira do Passarinho, os vendilhões anônimos recuperaram os trilhos, quando passava o barulho da centopeia de aço. A escola matara Cassiopéa e assassinou Órion. Passou o trem, voltaram bancas de frutas, de frutos do mar. A paisagem vista pelas janelas do trem, e o mar distante e distante as praias. O professor Almeida observava o apito que feria os ouvidos do povo, rogava passagem, seguia a sua viagem ao Recife, no sábado de manhã. Após o estridente apito, o povo voltava às ondas gigantes na velha estrada de ferro, na Feira do Passarinho. E se foi o trem de mar e céu a sacolejar. Lento, seguia o trem em viagem a Atalaia. Almeida vivia nos cálculos e nas equações, no polígono da sua geometria do tempo; e pulava do trem, e embarcava no ônibus. No espaço sobejo de escuros, o ônibus rápido em goles onde se encontrava o professor de matemática no carro que estava prenhe de gente, e se foi no rumo da venta. Acendeu-se o letreiro, o carro logo se encheu de luz onde estava escrito Santana. Pinga na venda em copo de vidro grosso. Triunfou o motor. E, de buraco em buraco, bu-bu-bu-bu-bu-ra-co-co-co o ônibus ganhou ruas. Temporal. Casas bancárias. Esmoleres. Espalhafatos. Os seres de olhos pequenos acendiam os seus cigarros de palha e sonhavam com as naves espaciais e as plantas que cresciam nas paredes das casas. Padres giróvagos, que comiam contas num rosário, rogavam perdões dos seus pecados; no balanço do carro, adormecem e acordam no céu, numa festa de São João. Semáforos. Abalroamento. Bu-ra-ra-cos. Caminhões. Crianças de peito gritavam impacientes diante de mães sérias e terríveis que lhes entretinham com olhares ameaçadores. Estudantes presos a pontos de interrogação planejavam governar o mundo com miçangas. Buzinas. Camelôs passavam rápidos pelas janelas, no ônibus que tomava a rodagem em direção ao sertão, em direção a Santana. Vum e vrum! Mercados. Igrejas. Buracos. Malas pesadas de novidades extraterrestres ameaçaram cair nas cabeças adormecidas, malas presas que fizeram anoitecer o ônibus. Fogo-fátuo. Cemitérios. Os lobisomens migravam na vegetação da caatinga. Brandões. Fogo-apagou. Ficou atrás a poeira, distante ficou Maceió, distantes ficaram os casebres, a cana-de-açúcar, o canavial, canavial, canavial, canavial, canavial, canavial, canavial, canavial, canavial, canavial, canavial, canavial, canavial, canavial, canavial. Luarento céu. Estrelas. Prostitutas diante de espelhos enfeitados com fitas do Senhor do Bonfim. Fazendas. Sítios, sítios, sítios. Porteiras. Cercas, cercas, outras cercas. A rodagem banguela. Escuridão. Archotes. E as mulheres bonitas de boca do tamanho da lua cheia, olhos da noite na intensidade do sol, pernas arranha-céus. Mulheres bonitas, lábios macios de queijo, lagoas Mundaú e Manguaba há muito devoradas pela escuridão. Casas. Candeeiros. Ruas. Lanternas. Crianças. Sandálias. Pés no chão. Mãos enormes, unhas enormes enlutadas. Olhos claros onde se viam mar caetés de caravelas em tiras de jornal e o Bispo Sardinha. Mucamas, jangadas e tristes pescadores que pescavam em redes pênseis. Lábios repetindo orações. Olhos enxergavam na noite os bacuraus que se refugiavam em torres de igreja abandonadas. O dia nunca mais voltava? Muralhas de pedras. Porteiras, porteiras, porteiras. Estrada. Caminhos. Estrelas. Levantava-se o dia rápido dentro de um buraco. Estiagem. Outra vez, sertão depois de muito tempo. Veredas. Serrotes. Procissão de homens com pedra enorme, levando-a na cabeça, subindo morros enormes. Gado. Meninos. Vaqueiros. Mulheres levando crianças pela mão. Carros. Lua. Mugidos. Mamoeiros, goiabeiras. Mandacarus. Matuto indo, matutos voltando de Andrômeda. Xiquexiques. Pedregulhos. Macambiras. Olho d’água. Canto de jia. Sapo-boi. Arrulho de ave perdida no mato denso. Penhascos. Mortes à míngua. Pás. Enxadas. Cercanias. Chibancas. Cruzes na estrada. Silêncio. Tocaias. Cruzetas. Forquilhas. Mulheres grávidas com pote d’água na cabeça. Armas brancas, de fogo. Poeira. Fantasmas de cangaceiros e as cabeças cortadas nos degraus da igrejinha. Romeiros viajando em caminhões ao mais distante planeta. Estradas. Rio seco. Bêbados. Carcarás. Silêncio. Horizontes. Panema. Santana. Todo sábado, Santana era sábado de feira. O professor Almeida procurou as disputas ibéricas e encontrou os seus molambos. Santana de outra língua, tripas de ruas entupidas. Santana iluminada pelo sol. Buscou o professor Almeida as matemáticas em tabuadas, as mangas trazidas da Serra do Almeida. A tapioca de Amarlida, as piadas impuras de Amorfati, as lutas trabalhistas e o anarquismo dos paralelepípedos. Montesquieu, Voltaire e Rousseau estavam de cócoras comendo cajus do Gugy. No açougue, vendiam-se discos-voadores e pinturas de Degas, esculturas de Rodin. Triunfou o ônibus que trazia o professor Almeida de Maceió. Triunfou o coletivo intermunicipal, contornou a rodoviária. Ladeiras. O lotação resfolegava os motores. Santana é uma cidade com diferentes clarões. Santana, as suas terras, as suas ruas, as suas igrejas e cartórios, no fórum, nas escadarias da matriz longa-metragem A Volta Pela Estrada da Violência. Caras taciturnas, violentas, gente e malas ufanas. O povo rumou pelas ruas esquálidas, outros seguiram outra viagem. Mais paralelepípedos. Praça. Passa. Praça. Veio a mata branca. Vieram os aboios dos vaqueiros. Os repentes foram ouvidos. As poesias de cordel. Os seresteiros afinavam os seus violões. A força nunca se cansava de ir atrás do cangaço. O batalhão de polícia. A ameaça de Lampião invadir Santana. O pai de Lampião assassinado. As regras não eram cumpridas. O cangaço em Santana. Ameaças. Caiçara. Mortes. Primeiros raios de sol. Tenente Albuquerque. Alagoas. Pernambuco. Inimizades. Mata Grande. Sertão. Fogo na beneficiadora de algodão. Agonia. Machado. Xiquexique. Lampião ia a Santana, prefeito Benedito; fechasse rápido, fechasse logo, senhor Benedito, as portas da loja de tecido e de perfume. Fizeram todos, todos fizeram barricadas. Os coiteiros corriam apavorados na ponta de uma rua. Gritos. Pânico. Chamasse o magistrado. Dedos debulhavam as contas no rosário. Delegacia de Polícia. Gente na rua ignorando aonde ir. Rua do Sebo. Comércio. Chamasse o tiro de guerra. Reunissem as reiunas, armasse o povo, Santana. Lampião chegava com os seus cabras. Silêncio. Chamasse os velhos que rezavam. Na janela de duas folhas, janela do tamanho de uma porta, a professora Hermenêutica conversava, sem saber o que acontecia em Santana, conversava com a amiga, a professora Cognição. Neste crepúsculo a golpes de martelo, cangaceiros que ameaçavam tomar a cidade de assalto desconheciam que o criminoso era alguém forte que adoeceu. As professoras conversavam uma na janela, outra na calçada. A tipologia que gerava cangaceiros, em condições extremas, levava-os à ruína, à enfermidade. Não era incomum viver numa condição de natureza como se fosse a única forma de vida a ser vivida, mesmo perigosa, esta era a sua arma com a qual se mantinha lutando; a proximidade ao precipício fazia se tornar também precipício. Um cinturão de serras circundava Santana. A cidade no polígono das secas, cidade entre morros, entre capelas, entre cruzeiros, entre cruzes. No Monumento, nossa Senhora da Conceição ocupava o nicho de Nossa Senhora da Assunção. Em torno ao obelisco foi erguida a memória sobre as cabeças degoladas de dez cangaceiros. A sombra do povo ocupava a praça, o obelisco, as cabeças degoladas, os comentários sobre a violência e o medo, os seres depravados que antes violavam as famílias nos sítios, os olhares perdidos, a boca do povo, os chapéus, a curiosidade e o espanto. A tropa de cangaceiros que invadiram o Capim em 1926, cem homens a cavalo em sua estética do cangaço que marchavam levando ao povo a imagem que figuraria em breve nos livros de História, na poesia de cordel, no cinema, na música, nas fotografias, nas reportagens... Em 1938, as cabeças deformadas, degoladas e exibidas em torno ao obelisco. Os pés, as mãos, o povo que se aproximava pelas grandes pedras que pavimentam Santana. Monumento de erres guturais de quem nunca deixou Santana, tampouco o velho sotaque português. Camoxinga de erres retroflexos de quem morou longe batendo asas num demorado voo, finda com erre palatal da época velha de outros brasis. Ônibus na Serra do Almeida; na Serra do Poço morreu o calor. Nascente de doces águas que surgiam nas pedras distantes; seguia no lombo do asno o som lento na travessia do deserto: oásis. Feliz Deserto; viagem ao Egito. Nunca sacrifiquem crianças, não sacrifiquem, Himnon sepultou Moloque, nem caravelas de volta às águas do Panema. Aquele era o povoado da Síria, aquele era o povoado da Mesopotâmia. Ontem, D. Pedro II passou aqui. Água no azeite, senhora avó; e, rápido, apagou-se a Geena. Murros. Surras. Zurros. Nas ruas de Santana, o professor disse que apenas a matemática explicava o universo circular. O tempo tocou a serra com a ponta dos dedos e era bem cedo e logo era o pingo do meio-dia, e a luz sobre tudo antes do sol aquecer e, depois que esfriou, não estava longe a boquinha da noite. Nas rodagens, em torno da cidade, os movimentos diaspóricos de Ethos indo e voltando, os movimentos de Logos, os movimentos de Pathos, que se assanharam com a sua sanha que se soltava da saudade querendo voltar à casa dos pais no bairro Anaxágoras, próximo ao Empédocles, onde se acreditava que tudo era gestado no fogo, na água, na terra e no ar. Na circularidade temporal, o professor Almeida experimentava o fim do tempo linear. E múltiplos círculos de variados tamanhos, como era a força cósmica, tomaram as rodagens. Na cidade, as algarobeiras acordam passarinhos nos galhos; o galo-de-campina acordava a coleirinha; era o açoite do canto que acordava casas em Santana, e canários-da-terra presos em gaiolas; acordava o azulão e, na serra, surgia outra vez o som do sol. As ruas povoadas de pés, assim, bocas homenageavam canções, estas tomavam nas ruas ladeiras de Santana. A matemática lamentava a prisão do canário-da-terra em gaiolas, outros de galho em galho; algarobeiras caladas em cada canto. E, assim, espalhava-se o canto das aves. À mesa, tudo se reunia em torno. A comemoração da volta do professor Almeida à sua cidade maternal em efusivas gargalhadas. Todos ainda se lembravam da partida. Silenciosa a cidade, quando os primeiros raios da manhã atravessavam as ruas. Atravessava casas a matemática do professor Almeida, penetrava soleira, na fresta debaixo das portas, nos espaços nas portas de duas folhas, a fechadura cedia à tranca e, uma mão que abria a porta, cumprimentava o professor. Cada dia era um abrir de cortinas. A maçaneta abriu a porta ao jardim na manhã de Santana. Os grilos e as formigas comemoravam o novo dia que abria os seus braços sobre a cidade, os braços do professor Almeida. Ele trazia à cidade os espaços calculados por números e letras. No café daquela manhã, em Santana, o sabor. Era a química na alquimia das mãos. Em cada canto da casa, com a volta do professor, repousava a ciência. Em uma parte da casa, o oratório protegia a metafísica; em outra parte, o armário escondia as louças e os talheres, seres agnósticos. O céu não prometia chuva, e havia nuvens d’água no céu. Aos poucos, o relógio na sala de estar retomava os seus tique-taques como se a engrenagem do universo se alimenta de tique-taques. Após o café da manhã, na cadeira de balanço na área externa da casa, o professor Almeida cumprimentava os passantes que o reconheciam no balanço; já velho, o capucho de algodão em lugar do cabelo; o professor Almeida no vaivém da cadeira olhava, atrás das lentes, o movimento na rua. Apressado e ancho feito jovem, o professor Almeida, já velho, comentava que o amor era filho do Recurso e da Pobreza. Sentado em sua cadeira, vendo a rua que se balançava. Na cadeira de balanço, o velho professor viajava num cochilo durante o silêncio na rua e a despedida dos amigos de juventude. Ele viu Pragmática, ele viu Cleobulina. Os chuviscos nas ladeiras de Santana, e sonhou no horizonte de chuva. Pingos, ora jorros. E nuvens escuras cercaram os bairros santanenses em completo desaforo. Derramou-se água como se fosse criança que chorava e soluçava e voltava a chorar e outra vez parava o choro retomava e seguia chorando. Choveu o mês inteiro em Santana. A terra de relevo declivoso e pedregosidade superficial cedeu. As ruas abriram crateras nas quais poderiam sucumbir casas inteiras, ruas, bairros completos. Santana apavorou-se com a chuva; um mês inteiro de chuva ininterrupta. O professor acordou. O mormaço ocupava, àquela hora, as casas e as áreas externas nas casas, às calçadas, às sombras das algarobeiras. Antes, acordasse o professor Almeida nos braços de Afrodite, nos braços de Jaci, a Tupi-Guarani, nos braços da asteca Xochiquetzol, nos braços de Oxum, na língua iorubá, na Nigéria, e vagasse nos desertos do Egito nos braços da egípcia Ísis, nas muralhas de Roma, nos braços da romana Vênus, nos braços da albanesa Prende, nos braços da marroquina Qandisa, nos braços da babilônica Isthar, nos braços da irlandesa Aine, ou nos braços da celta Arianrhod, ou nos braços da galesa Branwen, nos braços da nórdica Freya ou, talvez, nos braços da suméria Inanna. A vida possui três vértices, ao acordar, disse o professor. Embora o cotidiano fosse acostumado ao que era dual, pois um elemento conhecido ligava-se a outro elemento igualmente conhecido quanto à reciprocidade correspondente. Desde cedo se acostumou a conviver com dois elementos conhecidos: noite e dia, quanto a reciprocidades correspondentes, embora noite e dia fossem díspares por serem parecidos e diferentes ao mesmo tempo. Em vértices sustentava-se a vida. A vida não era geometria plana, não se sustentava em figuras bidimensionais. Matematicamente, disse o professor, noite e dia não possuíam profundidade; possuíam apenas largura e comprimento infinitos, porque sempre noite haveria e sempre haveria dia. Dentro do cosmo, a cidade possuía menos importância se comparada ao menor grão de areia no deserto, embora esse grão minúsculo ainda incomodasse e irritasse o olho humano. Os poderes cósmicos em ondas ainda eram completamente ignorados e, da mesma forma, a cidade menos importante ainda era também ignorada na geopolítica desenhada pelas cidades. Esses poderes cósmicos existindo em sucessivas ondas, sem interesse ao que podia estar acontecendo nas menores cidades existentes no mundo, possuíam as suas regras harmônicas, que eram denominadas caóticas por quem não conseguia compreendê-las, disse. Sistema cósmico ordenado em sua desordem, o princípio da inércia e o princípio da ação e reação não traduziam exatamente o que eram, tampouco como funcionavam os poderes. Não havia corpo em repouso. Sobre a morte sempre se perguntou muitas vezes o que era, e as respostas foram muitas, disse o professor. Nada do que se conhecia na cidade sumia ou mesmo deixaria de existir, só ficava encantado, recebia nova influência cósmica. Na biodiversidade ou ecossistema, os seres e ambientes sobreviviam se interrelacionando química ou fisicamente, disse. A influência cósmica não obedecia ao que se aprendeu sobre o universo. Polígono, na avaliação do professor Almeida, assim como a vida, era uma figura fechada com muitos lados. Os vértices eram pontos, Almeida demonstrava que se encontravam entre os lados de qualquer polígono. Para Almeida, a vida era um polígono de três lados. A realidade era um dos lados, na vida, o outro lado eram as lembranças e o terceiro lado eram os sonhos. Assim como matemática para Almeida era a geometria, o cálculo e álgebra. Vida era a realidade, lembranças e sonhos. O cálculo cuidava da matemática dos movimentos e das variações, como a realidade na vida humana; a geometria era as formas, assim como as lembranças que davam formas à realidade; álgebra era a manipulação formal das equações, ou seja, os sonhos. Não eram acaso os sonhos que manipulam as equações da vida? E o professor Almeida estava certo ao afirmar que sem matemática seria impossível viver no mundo. O mundo era matemático em todos os aspectos. O amigo Tales fosse me desculpar, disse o professor, o universo não era água, o universo era a matemática. A fonte da vida era a matemática; sem a matemática tudo morria. Matemática era o princípio de todas as coisas. Uma vida humana podia ser avaliada tão-somente pela geometria espacial na qual -r queria dizer raio do círculo da base da vida humana quando -h queria dizer a altura à qual se podia alcançar na vida. Matematicamente demonstrado, tudo era possível ser demonstrado geometricamente por figuras. O universo paralelo era alcançado matematicamente, disse o professor. E havia multiversos, realidades paralelas co-habitando num só espaço e ao mesmo tempo existindo como única. A experiência de multimundos em uma mesma época, disse, e provaria isto ser possível. E a probabilidade demonstrava que as versões desses mundos em um só espaço era possível, co-habitando como se os mundos fossem únicos, existindo independentes, simultâneos. Cada mundo independente e simultaneamente era a versão do mesmo numa resposta infinita às perguntas de onde foi que eu vim e aonde eu ia agora e, finalmente, o que era que eu estava fazendo aqui neste mundo. Haveria vida após a morte? Como vida eterna, o mundo era versão do próprio mundo sendo replicado matematicamente. Em Santana, versões eram demonstradas, geometricamente, num salto de década em década como cópias numa equação de partículas elementares dos átomos que se reconectavam. Na geometria, as partículas elementares dos átomos eram responsáveis porque permitiam o acesso de épocas diferentes conectando mundos vividos no mesmo espaço e ao mesmo tempo em épocas diferentes. Não havia interrupção de tempo nas dualidades que ocupavam simultaneamente o mesmo espaço. O tempo era fluido e, porque o tempo era, era possível a conexão dos mundos. Viu o professor sendo alfabetizado na escola onde se matriculou; e reconheceu, não porque guardou a lembrança. Atravessava o tempo diacrônico em um atravessar de cortinas, podia-se avançar e retroceder como também era possível à memória muscular. Anoiteceu na viagem em martelo agalopado. O sol, quando voltou na manhã seguinte, levantou-se sobre as serras. E o povo outra vez ouvia a música do sábado em Santana, à espera do domingo de orações. O chapéu colhendo o sol. O professor Almeida disse, ao se despedir, que a vida só poderia ser vivida se fosse iluminada pelo sol do sertão.
Cleobulina acorda assustada, suada, sem saber o que viu, o que viveu e por onde andou. Ainda estava escuro, na noite de Maceió. Abriu e fechou os olhos, como se buscasse alguma poeira de cochilo. Talvez, Cleobulina dormisse, àquela hora, por causa do sonho recorrente com a tumultuada biografia do primo Esopo Fedro, que fazia cinema na Micro-Ondas.
Esopo Fedro foi, praticamente, criado na casa do S. Virgílio e, depois, com o S. Horácio, os dois poetas mais lidos em Santana. Mais tarde, Esopo foi jogado nas ruas. Apesar do mau tempo e da brutalidade que habitavam as sombras, ela não sabia como Esopo sobreviveu tanto tempo. Foi Esopo, quando menino, o professor de moral quando envelheceu. Eu mesma conheci Esopo quando velho, disse Cleobulina; e a amiga de infância, Pragmática, estava com ela ao lado da sua cama. Eu não cheguei a conhecê-lo quando jovem. Em épocas festivas, na colheita do milho e feijão-de-corda, Esopo cantava na praça. O povo reunia-se em torno de Esopo e o ouvia cantar que GH nasceu no vale do Itajaí-Açúcar, numa cidade da Barriguda. GH nasceu na Rua do Amor, 29, onde o gafanhoto se apaixonou pelas vastíssimas plantações, e o passarinho se apaixonou pelo ninho da passarinha. Os seus olhos foram abertos e Cleobulina viu o Panema com água, viu as lavadeiras anchas, viu a lavadeira apaixonada pelo sabão e o beija-flor apaixonado pela flor, e viu vira-lata apaixonado pela lata, viu o pirilampo apaixonado pela lâmpada.
Naquela noite confusa, quando novamente Cleobulina vagava entre o sono e a vigília, ela encontrou-se com o Se e o Si. Este pronome pessoal oblíquo tônico num bate-papo com a partícula Se. Isto despertou em Cleobulina alguma coisa de curiosidade. A versatilidade de Si surpreendia sempre Se. Mesmo Se sendo às vezes um pronome reflexivo, às vezes um pronome apassivador, às vezes uma conjunção condicional, às vezes uma partícula de indeterminação do sujeito, às vezes uma partícula de realce.
Como és vaidoso Se.
Vaidoso és tu, gajo!
Nos becos escuros de Maceió, escuros e sujos, sujos e esburacados, esburacados e perigosos, perigosos e tentadores, tentadores e abundantes, abundantes e inesperados, os marinheiros que chegavam à cidade em navios mercantes tomavam as ruas, perdiam-se entre os becos de Maceió. Se conquistou uma espécie de segurança diante de Si. Se enfático disse-se ser o reforço necessário à frase.
Que frase? disse Si.
Cada frase em nosso bate-papo.
Em um beco de Maceió, Cleobulina topou-se com o Se numa oração subordinada substantiva objetiva indireta. Que faz aqui, Cleobulina? Perdida! disse ao Se. Os becos de Maceió, Cleobulina, são complexos. Evite-os. Tropecei, ultimamente, Se, em vários abortos espontâneos. Desconfiei, Cleobulina, desconfiei em seus olhos e em suas conversas arrevesadas. Alguns verbos, minha amiguinha, costumam ser conjugados comigo. Consigo? disse. Sim, senhora. Agora, dá licença, que eu tenho pressa. Se não correr, perderei o próximo navio para Portugal, onde reino absoluto.
Há uma semana, Cleobulina, naquele beco, feriu um homem na cabeça com uma pedra desse tamanho. A vítima ficou caída. E o povo: Ladrão, ladrão! O homem de cabeça lavada em sangue estirado na terra, naquele chão imundo, nos braços da morte. E o povo: Polícia, alguém chame a polícia! Fugiu o agressor; entrou em um beco, saiu em outro, sumiu. Agora, eu irei. Não atrapalhe a viagem, não quero perder o trem ao Recife, onde tenho armazéns de couro de bode à vontade.
FABULE POR SER TÃO. SANTANA, VAMOS FABULAR
ContosPor Marcello Ricardo Almeida 20/05/2025 - 22h 37min

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