Alzheimer: o mais profundo dos recalques 

Artigo

Por Fernando Soares Campos

Aldous Huxley, em “As Portas da Percepção”, de 1954 (citado por Richard Bandler e John Grinder em “A Estrutura da Magia”), explica que “A função do cérebro, do sistema nervoso e dos órgãos dos sentidos é principalmente eliminativa e não produtiva”. (Curso de Formação em Psicanálise Clínica, Mód. VII) 

Aldous Huxley, escritor inglês, viveu os últimos anos de sua existência em Los Angeles, aonde chegou na condição de romancista consagrado pelo sucesso de seu mais famoso romance: “Admirável Mundo Novo”. Huxley, que foi sete vezes indicado para o Prêmio Nobel de Literatura, demonstrava profundo interesse por misticismo filosófico e orientava-se ideologicamente pautando-se nos princípios de uma filosofia universalista, tendo se tornado incansável defensor da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Em “As Portas da Percepção” (1954), uma autobiografia, ele revela opinião baseada em suas percepções empíricas e busca ao transcendente, aquilo que está além da realidade material, o que extrapola os limites convencionais do âmbito da memória. Foi, provavelmente, daí que Huxley concluiu que “a função do cérebro, do sistema nervoso e dos órgãos dos sentidos é principalmente eliminativa e não produtiva”. Assim sendo, podemos crer que esse fator predominantemente destrutivo venha a gerar uma prática sistemática, mas inconsciente, que leve o elemento a submeter grande parte de suas memórias aos mais profundos recalques. 
 
Em Psicanálise, o recalque representa uma inconsciente defesa contra a memorização daquilo que pode angustiar o agente de determinado desejo, ação ou sentimento considerado repulsivo. 
 
Segundo Freud, “a neurose representa uma defesa contra ideias insuportáveis”, tão martirizantes que podem causar ansiedade, apatia, isolamento social, podendo até mesmo acarretar transtorno de personalidade paranoide, entre outros distúrbios mentais. 

Motivações para o esquecimento

As possíveis frustrações de uma pessoa idosa por não ter realizado seus mais ambiciosos projetos podem levar tal sujeito ao autoisolamento social em estado depressivo, de forma que tal depressão se manifeste de modo que aqueles que ainda se encontram próximos de si enxerguem seu comportamento apático como sendo simplesmente a legítima maneira de expressão da sua personalidade. Seu próprio sentimento de culpa pode ser deslocado (transferido) quando o sujeito se negar a admitir sua responsabilidade na derrocada dos seus planos, atribuindo os supostos fracassos de, por exemplo, sua carreira profissional à inveja e possível conspiração de alguém que estaria tramando contra seus objetivos. 

Alzheimer: um mal responsável por cerca de 55% dos casos de demência


Observando o comportamento de uma pessoa acometida de Alzheimer em avançado estado de demência, podemos facilmente perceber que este já não tem condições de ser submetido a análise psicanalítica, visto que, nesse estado, o diálogo ou mesmo o atendimento a determinados procedimentos, como, por exemplo, ser orientado a proceder de forma livre, falando o que lhe venha à mente, a fim de que o analista possa exercer o método da “associação livre”, torna-se impraticável. Isto em função de que, mesmo que o paciente compreenda como deve proceder, tudo o que ele possa expressar terá sido o que ainda se encontra no entorno do seu “Consciente”, ou seja, aquilo que ainda possa estar disponível ao Ego (o “eu” nosso de cada indivíduo), os poucos elementos prontos para possível exposição consciente. Os demais registros do seu passado estarão para além do próprio inconsciente. Provavelmente, tudo já terá sido excluído da possibilidade de vir a ser revelado, exceto pontuais relações familiares desenvolvidas na infância ou mesmo na fase adulta. 

Seria o Alzheimer uma doença psicossomática?

Ninguém pode viver sem um passado, também não se vive sem um futuro; entretanto, no caso da própria condição de “idoso”, esta, por si mesma, se encarrega de lhe negar o futuro, pois a sua expectativa de vida passa a ser a da morte iminente. 
 
Se uma pessoa idosa acredita que não terá mais tempo de realizar determinado projeto de vida, só lhe restará o presente e o passado. No entanto, aquele passado nem sempre é tão saudoso quanto os idosos costumam a ele se referir, pois determinadas ações do seu passado ocasionalmente não são “apropriadas” para serem rememoradas, muito menos externadas. 
 
Podemos acreditar que o Alzheimer pode ocorrer sob um processo psicossomático, quando o paciente teria decidido empreender uma verdadeira negação de si próprio: morrer em vida, ou seja, tornar-se um morto-vivo. Tal processo caracterizar-se-ia como uma defesa ainda mais profunda contra lembranças dolorosas, angustiantes, por tratar-se de ideias, sentimentos, emoções e atos considerados censuráveis, condenáveis e, no caso de pessoas religiosas, estas acreditam que seus cometimentos exigiriam expiações do seu espírito após a morte física. 
 
Tratamento psicanalítico com alguém nessas condições não faria sentido, pois, em estado avançado da doença, conforme a conhecemos, o paciente não mais se conecta a uma versão razoável da realidade, o que inviabiliza a identificação dos agentes etiológicos. 
 
Quando o esquecimento em forma de ligeiros apagões torna-se frequente, de maneira que a pessoa se esquece daquilo que há poucos instantes se propunha a fazer, é hora de ligar o “pisca-alerta” da memória.  Se, além das falhas de memória, estiver nos ocorrendo falta de atenção, comportamento impulsivo e intolerância aos erros alheios, com explícita instabilidade do humor, além de constante ansiedade, nesse caso, provavelmente, tais incômodos poderão ser identificados como sendo oriundos de certos eventos “recalcados”, tão impactantes que possam ser capazes de perturbar o organismo somático, provocando distorções mentais e deformações cerebrais. Resta, nesse caso, buscar as causas psíquicas que estariam gerando tais sintomas. 

Alzheimer e o efeito cascata da perda de memória

Havendo profundo sofrimento de origem estritamente psicológico, caso de extrema gravidade, em que possa ocorrer insuportáveis manifestações neuróticas, atribuídas a constantes supressões (recalcamento) de lembranças indesejáveis, o sujeito pode desencadear, em si próprio, processos de micro necroses cerebrais, até alcançar a maior parte da massa encefálica e, com isso, causar a sua morte.  

Efeito dominó da  desmemorização

A questão é que a nossa memória parece funcionar por associação de ideias, palavras, imagens e tantas outras oportunidades. Assim sendo, se alguém recalca a lembrança de um ato por ele considerado vergonhoso, humilhante, constrangedor ou desonroso, logo precisará recalcar elementos de sua memória que estimulem a lembrança daquele ato recalcado. Dessa mesma forma, muito em breve tal indivíduo precisará recalcar lembranças que se relacionem àquelas últimas. Tais recalques, por sua vez, exigirão novos recalques. 
 
Aqui eu apenas especulo, acreditando que, à medida que os recalques se tornam frequentes, incontroláveis, principalmente os que estejam relacionados à vergonha, humilhação, desonra e constrangimento, provavelmente tal comportamento desencadeará processo de esclerose (endurecimento patológico de um tecido do organismo), nesse caso, o organismo cerebral. Daí, o consequente mergulho nas trevas do esquecimento.  

Fernando Soares Campos é escritor, autor, em parceria com o seu irmão Sérgio Soares de Campos, de obra biográfica, retratando a vida de “Adeildo Nepomuceno Marques: um carismático líder sertanejo”; atualmente, aos 74 anos, cursando Psicanálise Clínica (via modalidade EaD em ambiente virtual), pelo - IBPC - Instituto Brasileiro de Psicanálise Clínica - Campinas (SP). 

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