O torturador que diz não temer a verdade (Final)

Artigo

por Fernando Soares Campos(*)

Já se havia passado uns cinco dias desde o meu segundo telefonema à viúva do suboficial Damasceno. Eu já sabia que não dava mais para contar com ela.

Podemos até planejar e realizar algum acontecimento que dependa mais da iniciativa de outrem que da nossa vontade; porém, nessas condições, quase sempre nos sentimos inseguros, pois não temos a certeza da realização de nossos projetos. Entretanto, em algumas ocasiões, a sucessão e o encadeamento dos fatos nos surpreendem com acontecimentos inesperados, aquilo que foge às marcas rotineiras e geralmente nos obriga a tomar decisões específicas, exigindo soluções para determinados problemas, com o emprego do nosso poder de criatividade. Essas são as melhores oportunidades para a nossa evolução pessoal, através do exercício e consequente desenvolvimento das habilidades de nossas funções mentais.

Estava eu absorto, viajando por essas veredas filosóficas, quando o telefone chamou. Atendi.

― Eu gostaria de falar com seu Fernando Soares.

― Pois não, está falando com ele.

― Seu Fernando, aqui é o Marcos Damasceno... ― alguns segundos de silêncio; pigarreou. ― Esse nome lhe diz alguma coisa?

― Marcos?

― Sim, Damasceno...

Estava claro que se tratava de alguém da família do suboficial Paulo Damasceno, mas preferi fingir que não associei o sobrenome ao do militar que conheci no Submarino Bahia. Melhor que pensasse que eu não estava intensamente atento e concentrado neles ou em pessoas dos seus círculos de amizade.

― Desculpe, Marcos, mas... não me lembro de você. De onde nos conhecemos?

― Não nos conhecemos, mas o senhor conheceu meu pai, o suboficial Paulo Damasceno... Ou não?

― Ah, meu Deus! Mais uma vez me desculpe. Nem faz tanto tempo que falei com a sua mãe, a dona Marilane... Não é esse o nome dela?

― Sim, isso mesmo. Foi ela quem me falou do senhor.

― Marcos, eu gostaria que você deixasse de lado qualquer formalidade... Pode me chamar de você.

― Seu Fernando, o meu pai me ensinou que essa é a forma correta de tratar os mais velhos, faz parte da educação que ele me deu. Eu não tenho nem jeito de tratar o senhor de outra forma. É uma questão de hábito.

― Como queira, Marcos, foi só uma sugestão, fique à vontade.

― Bem, eu liguei para lhe dizer que conversamos aqui em casa sobre a sua intenção de localizar um sargento do seu tempo na Marinha. Não foi sobre isso que vocês conversaram na semana passada?

― Ah, sim! É verdade, foi disso que tratamos ― continuei fingindo que não estava ligado naquela questão, queria que acreditasse que eu até já havia praticamente esquecido aquilo e que só agora recordava. ― Inclusive, a dona Marilane me colocou em contato com o sargento... quer dizer, o tenente Sousa. Ele me ligou, conversamos, mas a ligação caiu, e ele não retornou. Como não tenho identificador de chamada no meu aparelho, não pude ligar pra ele, fiquei sem contato.

― Tudo isso bate com o que minha mãe me contou, mas também não devo omitir que falei sobre isso com o tenente Sousa, ele é da nossa família, é casado com uma tia minha, irmã da minha mãe.

Lembrei-me de que, na Marinha, era muito comum colegas de farda se casarem com irmãs, ou um se casar com a irmã do outro.

― Falou? E o que ele lhe disse?

― Ele disse que o senhor pretende fazer contato com um suboficial chamado Túlio, que o senhor ainda chama de sargento Túlio.

― É verdade, eu gostaria de localizar o sargento... é... suboficial Túlio. Vocês têm notícia dele?

― Nós aqui em casa, não, mas tio Sousa sabe onde ele mora, até conhece os filhos dele.

― Tudo bem, Marcos, mas, por que o tenente Sousa não me ligou contando isso?

Ligeiro silêncio. Tive a impressão de que meu interlocutor estava recebendo alguma orientação de alguém ao seu lado.

― É que o tio quer saber o que o senhor quer com o suboficial Túlio.

Agora foi minha vez de ficar em silêncio por alguns segundos.

― Alô, seu Fernando, o senhor está me ouvindo?

― Sim, Marcos, estou.

― E então?

― Então... Bem, eu não tenho nada a esconder, vou ser franco como sempre fui. Estou fazendo um trabalho sobre os tempos da ditadura militar e pretendo enfocar, com maiores destaques, os órgãos de informação ― preferi não usar o termo “repressão” ― do regime, saber como operavam, em se tratando das questões de comando, hierarquia, disciplina... coisas assim. Acredito que o sargento... quer dizer, o suboficial Túlio tem como contribuir para esse meu trabalho. É só isso que me interessa.

― O senhor é jornalista?

― Escritor.

― Não faz muita diferença ― fez-se alguns segundos de silêncio e ele retornou perguntando: ― Por que o senhor acha que o suboficial Túlio poderia contribuir para o seu trabalho?

Eu já não tinha dúvida de que havia alguém ao seu lado soprando as perguntas. É muito provável que fosse o tenente Sousa.

― Ele era telegrafista, e os telegrafistas sempre foram muito bem informados, disso eu me lembro bem, mas nem sei mesmo se ele realmente pode, ou se tem alguma informação relevante para me dar, apenas suponho.

Silêncio, eu não ouvia nada, nem mesmo alguns pios de periquitos australianos que ouvi em alguns momentos enquanto falávamos. Isso indicava que ele punha a mão no fone do aparelho, a fim de consultar alguém.

― Vamos fazer o seguinte, seu Fernando, amanhã eu ligo para o senhor informando se vai ser possível ou não o seu encontro com o suboficial Túlio. Está bem assim?

― Sim, claro! E desde já agradeço a sua própria contribuição, independente do que possa acontecer.

Despedimo-nos.

No dia seguinte, aproximadamente no mesmo horário do dia anterior, o telefone chamou. Atendi. Era o Marcos Damasceno. Ele me perguntou se o meu encontro com o suboficial Túlio poderia ser no próximo sábado e se eu estaria disposto a ir até a sua residência, no bairro de Anchieta. Respondi que sim. Ele, então, me disse que eu deveria estar na estação de Costa Barros, linha auxiliar da Central do Brasil, às dez da manhã. “O senhor espera bem próximo à cancela, vai aparecer alguém lhe oferecendo carona até a residência do suboficial Túlio.”

Confirmei, mas quis saber por que marcar naquele local tão estranho, que eu conheço há muitos anos, e como o caronante me reconheceria. “A pessoa que vai lhe dar carona mora naquelas imediações. E não se preocupe, ele vai reconhecer o senhor”, garantiu.

No sábado eu estava saindo no portão do condomínio em que morava, quando um sujeito mal encarado, em pé ao lado de um carro, tendo outro ainda mais feio ao volante, me perguntou: “O senhor é o jornalista Fernando Soares?”. Fernando Soares eu sou, mas, como não sou jornalista, neguei: “Jornalista Fernando Soares?! Ah, meu Deus! vou acabar odiando aquele cara. Já passei por situações difíceis porque me acham parecido com aquele maluco!”. Continuei andando.

Uma hora e meia depois, eu estava em Costa Barros, no local e horário combinados. Já fazia mais de quarenta minutos que eu estava ali, em pé, calor de quarenta graus, quando um carro se aproximou devagar e parou em frente a mim. O passageiro ao lado do motorista abaixou o vidro e falou:

― Seu Fernando, tá indo pra Anchieta? Suba aí ― com o polegar indicou a porta traseira do carro.

Entrei no carro cumprimentando-os como se, igualmente, já os conhecesse:

― Bom dia, vocês vieram me salvar de uma insolação, eu já estava quase torrando embaixo desse sol.

― Bom dia, seu Fernando. É verdade, lá fora tá brabo, sim ― a comparação devia-se ao frescor do ar condicionado no interior do veículo.

No rádio, um locutor falava rápido, tendo uma música gospel de fundo; ele repetia o nome de Jesus ao final de cada frase.

Vendo-me pelo retrovisor, o motorista me perguntou:

― Por que o senhor despistou o pessoal de Rio das Pedras?

― Despistou?! Quem é esse pessoal de Rio das Pedras?! Do que você está falando?! ― nessa eu não estava fingindo, realmente não entendi nada do que ele falou.

― Foi agora há pouco, quando o senhor estava saindo de casa ― respondeu o carona.

― Hã?! Vocês estão se referindo àqueles camaradas que me confundiram com um tal jornalista Fernando Soares?! Eu não sou jornalista. Sou escritor. Ser jornalistas exige muito mais do que colaborar para órgãos de imprensa escrevendo artigos de opinião. E é só isso que, eventualmente, eu faço.

― Pra mim, escreveu em jornal, é jornalista ― falou o motorista.

Pensei em perguntar sobre a relação deles com os indivíduos que me abordaram na saída do condomínio, que fica próximo à comunidade de Rio das Pedras. Quanto a eles terem me reconhecido, certamente viram a foto que há muito eu uso na internet; à época, bem atualizada. Não perguntei sobre isso, mas quis saber como me localizaram.

― Como vocês descobriram meu endereço?

Entreolharam-se. O carona respondeu:

― Seu Fernando, depois do celular, da internet e do GPS, não existe mais esconderijo seguro pra ninguém.

Preferi não alimentar mais esse assunto.

Pegamos uma estrada que mais parecia trecho de uma zona rural. Logo adiante o carro entrou num largo de terra batida e parou em frente ao portão de uma casa assobradada, recuada da pista, isolada entre terrenos baldios, tendo ao fundo um íngreme terreno arborizado.

― Pode vir comigo, seu Fernando ― Disse o carona enquanto abria a porta do carro.

Saímos e caminhamos juntos. Paramos em frente ao portão de pedestre. Ele escolheu uma chave em seu chaveiro de bolso, abriu o portão e entrou. Eu o acompanhei. Ouvi latidos de cães vindo dos fundos da casa. Atravessamos caminho estreito entre uma piscina vazia, à direita, onde se acumulava uma tralha, e, à esquerda, uma estrutura de madeira, coberta com telhas de amianto, onde se abrigava uma velha pick-up Ford F-100.

Chegamos a um pequeno hall externo. Meu guia escolheu outra chave, abriu a porta e entrou seguido por mim.

Naquilo que parecia ser a sala de estar, senti forte cheiro de mofo. Quase tudo ali era muito velho e sebáceo, mas havia um toque de modernidade: numa estante estilosa, um tipo de móvel muito vendido em redes de lojas populares, tinha um televisor de plasma, última geração, contrastando com móveis antigos, sofá coberto de velhas almofadas, cadeiras e poltronas puídas. Entre os quadros nas paredes, destacava-se uma enorme reprodução da pintura de um velho galeão enfrentando forte tempestade e ondas de grande elevação.

O meu falante companheiro de carona se aproximou da base de uma escadaria e gritou para o andar de cima:

― Pai, chegamos! Pai, o senhor está aí?! ― voltando-se para mim, finalmente apresentou-se: ― Seu Fernando, eu sou Leonardo. Sou filho do suboficial Túlio, seu colega submarinista dos velhos tempos de guerra ― sorriu. ― Sente-se, fique à vontade. Quer água?

― Aceito ― respondi enquanto me acomodava numa poltrona.

Leonardo dirigiu-se para onde deve ser a cozinha da casa.

Descendo a escadaria, apareceu o velho Túlio. Esquelético, lento, passo a passo, com visível dificuldade de locomover-se.

Leonardo retornou à sala com uma jarra d’água e um copo, me ofereceu. Tomei água. Ele colocou tudo em cima da mesa.

O suboficial Túlio se aproximou de mim. Leonardo fez as apresentações:

― Pai, esse aí é seu Fernando, escritor. Ele foi seu colega na Marinha, no Submarino Bahia. O senhor se lembra dele?

O velho me fitou por um instante e respondeu:

― Não... num tou lembrado de você, não, Fernando. Você sabe, faz muito tempo, né?

― Eu entendo, seu sub ― essa era a forma reduzida como chamávamos os suboficiais ―, mas o senhor não mudou muito, não, eu o reconheceria em qualquer lugar ― menti ―. Mudou pouco, ainda mantém os traços do jovem sargento Túlio que conheci no final dos anos sessenta e início dos setenta, a bordo do Bahia...

― Fernando, não precisa exagerar... Você não é mais um boy de segunda classe puxando o saco de um velho suboficial. Me disseram que você era do serviço de máquinas, e eu me lembro de um dos suboficiais encarregados das máquinas, o Galdino. Lembra dele?

― Não dá pra esquecer. Era um sujeito bonachão. Diziam que ele só gostava de mulher que tivesse muita celulite, era tarado por celulite...

Leonardo soltou escandalosa gargalhada, que deve ter sido ouvida pelo motorista do carro. O velho Túlio sorriu discretamente e falou:

― Você tem boa memória, era ele mesmo.

Não estranhei quando falou que não se lembrava de mim, pois me lembro bem que ele pouco aparecia na praça de máquinas do submarino, que fica à ré da embarcação, e seu alojamento era anexo ao compartimento “Torpedos à Vante”. A sala de telegrafia (seu ambiente de trabalho) localizava-se a meio-navio, portanto ele raramente circulava pelo meu ambiente de trabalho.

Ele fora informado sobre o meu interesse naquele encontro, o que eu pretendia com aquela entrevista. Falou de sua entrada na Marinha, que ocorreu na mesma escola de aprendiz marinheiro em que passei, a da Bahia.

Em 1964, no momento do golpe militar que destituiu o presidente João Goulart, o Jango, ele era cabo e não participou do movimento liderado por Cabo Anselmo, que não era cabo, mas, sim, marinheiro de primeira classe. Assim sendo, Anselmo usava dupla divisa em um dos braços, conforme as normas de identificação da época, o que confundia os jornalistas, e estes davam notas nos jornais falando dele como sendo cabo, até hoje assim o tratam.

A entrevista rendeu quatro páginas rascunhadas, mas aqui teremos apenas um resumo das duas horas de conversa que ele me permitiu, sem gravação, pude apenas fazer algumas anotações.

Exceto o que transcrevi de ligeiras anotações, quase tudo aqui é reproduzido de memória, cada palavra, cada gesto, o silêncio ou a explosão dos ânimos. E não dá pra esquecer aquele olhar angustiado, ora parecendo suplicar razão, ora vagueando acorrentado a tristes lembranças de um passado nada agradável de evocar.

Ele passou de torturador a torturado pelos inúmeros problemas de saúde: gastrite, pressão alta, desvio de coluna, incontinência urinária, problemas renais, complicações respiratórias e profunda depressão, entre outros, além de enfrentar sérios conflitos com os familiares.

Suboficial Túlio, 78 anos, cinco filhos, mas, conforme me confidenciou, somente um ainda lhe fazia visitas, o Leonardo. Este controlava suas finanças. Creio que era a única pessoa em quem confiava, por falta de opção, mera dependência. Enviuvou duas vezes.

O suboficial Túlio chegou a me dizer que se sentia um fraco, por não ter coragem de consumar o suicídio que lhe “traria paz”, conforme acreditava. Mas garantia não temer a verdade e dizia que arrastaria muita gente consigo, caso viesse a ser indiciado em processo de apuração dos crimes cometidos pelos órgãos de repressão política, entidades que estiveram em atividade nos anos do terror patrocinado pelos gigolôs do capitalismo rentista, extorsivo, desumano, como ainda é praticado por estas bandas.

Aqueles, a quem supostamente ele envolveria como acumpliciados com os seus pares subalternos, não constam das listas dos mais famosos entre os que promoveram, apoiaram ou executaram o terror. Decepcionado com seus antigos superiores hierárquicos, garantiu que, se fosse indiciado por “crime de guerra”, nem mesmo precisaria fazer qualquer acordo do tipo delação premiada: “Entregaria os sujeitos pelo prazer de ver essa gente desmascarada”, assim, literalmente, expressou-se.

O sargento Túlio me falou que, apesar de lotado (na Marinha se diz “embarcado”, mesmo em unidades de terra) no Primeiro Distrito Naval, no Rio de Janeiro, também foi escalado para participar de operações em diversas capitais brasileiras, principalmente em Porto Alegre, Vitória, Salvador, Recife e Belém.

Identifiquei um sopro de ufanismo quando me disse que foi considerado um dos mais operantes e competentes entre os agentes do Cenimar. “Cheguei a ser indicado para treinamento na Escola das Américas, no Panamá”, afirmou. E, imodesto e despudorado, como me pareceu, garante: “Se eu fosse pra lá, ia ensinar, mais do que aprender”.

“Não conheci outro lugar pra ter mais dedo-duro que no Recife! As Ligas Camponesas nasceram e morreram em Pernambuco, pois foi lá que o pessoal sofreu as maiores traições. E com os estudantes do Recife não tinha meio termo: ou o cara se entregava e falava mansinho, ou endurecia e dançava. Muita gente que ainda hoje está aí dando uma de moralista colaborou com a gente, numa boa! Em Salvador também tinha muito caguete.”

Pedi que citasse um, mesmo que já tivesse morrido.

Ele disse que não daria nome aos bois, mas deixaria pistas para quem quisesse identificar os dedos-duros. “Quem cantou para a gente chegar ao Lamarca foi um moleque que hoje quer se passar por respeitável político e jornalista. Deve estar recebendo a indenização que o governo paga a esse tipo de ‘vítima da repressão’, como costumam dizer”, falou num tom de menosprezo.

Perguntei se ele não achava justo que as pessoas que enfrentaram a ditadura e foram submetidas a tratamento degradante, presas em condições subumanas, torturadas, recebessem hoje uma indenização que lhes proporcionasse algum conforto compensador. “Estou me referindo aos que escaparam e aos familiares dos que não tiveram tanta sorte.”

Tão logo acabei de formular a pergunta, ele já estava esbravejando: “Desde quando terrorista tem direito a indenização?!”.

“Desde que o Estado deixou de tratá-los por terrorista e reconhece que são, na verdade, seres humanos que se rebelaram contra um regime despótico, desumano, ilegítimo, usurpador de direitos”, respondi.

Apesar de já ter largado o cigarro há mais de vinte anos, quando o suboficial Túlio se exaltava, era acometido de um violento acesso de tosse.

“E por que criminalizar apenas quem cumpriu ordens?!”

“Ninguém é obrigado a cumprir ordem absurda, manifestamente ilegal”, rebati.

Daí em diante, sem argumentos convincentes, passou a tergiversar, ora proferindo disparates, entrecortados por palavrões, ora balbuciando lamúrias, sempre me olhando como se pretendesse me expulsar daquela casa. “Querem a verdade? Pois que venham! Eu não tenho medo da verdade! Todo mundo sabe que a verdade dói, num dói?! Então...”

Não me parecia tão corajoso e decidido como pretendeu se passar. Notei que apenas tentava me impressionar. Se eu pudesse reproduzir com fidelidade o tom com que falava, seus tiques nervosos, a expressão facial, você, leitor, veria que o suboficial Túlio poderia até confessar seus crimes diante de uma comissão da verdade, ou mesmo entregar os parceiros à Justiça, mas percebi, em vista de algumas de suas insinuações, que tem medo de, antes disso, queimarem um “arquivo vivo”. Por outro lado, fiquei pensando naquela insinuação de que está disposto a suicidar-se para se ver livre dos sofrimentos que padece.

O camarada vivia em permanente conflito com o alter ego. Aquela casa lúgubre em Anchieta, subúrbio do Rio, onde vegetava (ou vegeta, se vivo ainda estiver) há muitos anos, esconde fantasmas até na caixa d’água.

Pode ser que dia desses eu me disponha a escrever tudo que rascunhei quando da entrevista com o velho suboficial Túlio, o torturador que diz não ter medo da verdade, mas que não me convenceu disso.

***

Para quem quiser compreender melhor essa história, aí estão os links para leitura das duas primeiras partes:

Parte 1:
http://www.maltanet.com.br/v2/literatura/2020/05/30/o-torturador-que-diz-nao-temer-a-verdade--parte-1

Parte 2:
http://www.maltanet.com.br/v2/literatura/2020/06/07/o-torturador-que-diz-nao-temer-a-verdade--parte-2

(*)Fernando Soares Campos é escritor, autor de "Saudades do Apocalipse ̶ 8 contos e um esquete", CBJE, Câmara Brasileira de Jovens Escritores, Rio de Janeiro, 2003; e "Fronteiras da Realidade ̶ contos para meditar e rir... ou chorar", Chiado Editora, Portugal, 2018.

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