INVENÇÂO DE ORFEU DE JORGE DE LIMA

Outras Peças Literárias

Lúcia Nobre

Nenhum homem é uma ilha,
Fechada sobre si; todos são
Parte de um continente,
Uma parcela da terra principal
(Jung)


Jorge de Lima nasceu em União dos Palmares/AL (1893) e morreu no Rio de Janeiro/RJ (1953). Formado em Medicina, exerceu atividades políticas e o magistério superior. Também incursionou pelas artes plásticas, publicando um álbum de fotomontagens em 1943. Fundador da Sociedade Carioca de Escritores (primeiro presidente provisório e eleito). “A poesia de Jorge de Lima em sua mais ambiciosa produção, onde o poeta, por vezes claramente nordestino, sugere a nossa formação étnica e social, em que se misturam vultos da literatura, religiosidade e musicalidade” (Manuel Cavalcante Proença).
Em Invenção de Orfeu, encontramos as características citadas por Proença: vultos da literatura, religiosidade e musicalidade. Tentaremos passear em alguns dos itens citados. Jorge de Lima encontra-se inserido no Contexto Universal da poesia. Não poderemos entender sua poesia se não conhecemos a raiz do povo brasileiro. Conhecendo a origem do povo brasileiro, compreendemos perfeitamente “Invenção de Orfeu”. O autor busca no passado histórico, mítico, religioso e literário motivos para sua inspiração. Faz-nos entender que a poesia volta dialeticamente aos seus começos que terão sido os próprios começos da linguagem.
Até o século VI antes de Cristo, predominavam as crenças mitológicas, isto é, os mitos através de narrativas explicavam a realidade humana sem questionamentos, atribuindo aos deuses todas as causas e acontecimentos. Desde o modernismo, que se iniciou em 1922, que a arte busca a tradição e a atualiza de acordo com as necessidades da época. Jorge de Lima busca a tradição mitológica e traz fábulas carregadas de conhecimento do passado e do presente.
A influência que recebemos do passado histórico e mitológico nos faz sentir como somos herdeiros desse passado e Jorge de Lima, poeticamente, coloca toda a problemática de um povo nativo que, sem esperar, viu seu território invadido.
Fala dos nativos com sua beleza nua, desprovida de preocupação; da riqueza
Natural; da invasão; da cobiça dos estrangeiros; dos colonizadores; das fugas; da exploração dos escravos; das doenças; das revoltas e até mesmo das reclamações desses primeiros habitantes quando, nas cidades grandes, sentem-se perdidos e sem rumo. Isto, porque, perderam o direito de viver livremente em terras ou lugares que habitavam livremente. O poeta é sensível ao desespero dos habitantes que perderam tudo. Faz-nos conhecer esse passado histórico por meio de sua poesia:

Inda meninos, íamos com febre
Comer juntos o barro dessa encosta.
Será talvez por isso, que o homem goze
Ser a seu modo tão visionário e ébrios que o cevam

E ainda goste de ter em si a terra
Com seu talude estanque e sua rosa,
E esse incesto contínuo, e infância anosa,
E céu chorando as vísceras
(Invenção de Orfeu, p. 34).

Sendo a literatura uma continuidade, marca sua presença na tradição. Pela força da literatura, a tradição é sempre renovada. Jorge de Lima, como Luís Vaz de Camões, poeta português (1524-1580), pretende dar aos seus versos toda sua ansiedade de poeta que deseja denunciar seus sentimentos sejam eles de amor ao próximo, sejam de cunho social. Segundo Jung, o ser humano possui muitas coisas que nunca adquiriu por si mesmo, mas que herdou de seus ancestrais. No caso de Invenção de Orfeu, o poeta reinventa uma épica moderna. Atualiza assim a tradição. Busca em “Os Lusíadas” de Camões e em “Orfeu” da mitologia grega, eco de vozes, que, transmudadas ao poema, transformam-se em harmoniosa melodia.
Época de colonização do Brasil. Atividade cultural com a chegada dos jesuítas, carta de Caminha informando com documentos, notícias e relatos de viagem, literatura dos jesuítas, catequese dos índios, enquanto o negro era ignorado. O índio, até então livre, ao ver-se completamente deslocado em um mundo que não é mais seu.

Vivo entrando em Lisboas babeladas
Entre chins e japões pelas ruelas,
Os domínios distantes me afogando,
Cotovelado pelo Rei das quinas,
Resgatado com fardos e tonéis,
Descoberto de trajes e de galas.
(Invenção de Orfeu, p.36).

É aí que a poesia de Jorge de Lima interfere e em nome do índio, poetiza sua revolta. O primeiro habitante do Brasil sente-se excluído com a presença daquele homem branco que quer dominá-lo, domesticá-lo, estudá-lo e descrevê-lo para os outros de terras desconhecidas. O homem desconhecido, dono de um costume diferente, quer fazer o nativo de escravo.
O poema de Jorge de Lima fala da chegada das caravelas em terras habitadas por belas índias nuas que causavam admiração aos estrangeiros, como se lê na carta de Pero Vaz de Caninha que descreve a nova terra como um território paradisíaco, incomparavelmente belo.

(...) Descobrimos nas ondas essas algas,
Essas índias tão nuas, esses ventos,
Essas admirações em São Brandão!
(Invenção de Orfeu, p,32).

Invenção de Orfeu não só se inspira na tradição, exalta a mulher, a mãe, compara-a a rocha. Ressalta a influência da índia como mais um motivo de atração para os invasores. Eles são convidados para participar das belezas da terra descoberta. Ao tempo que são alertados para problemas que poderão encontrar, como doenças, tragédias, revoltas. Canto XXVIII de Invenção de Orfeu da p. 32:

E depois escrevemos uma carta
Contando tuas graças, nessas praias,
Sobre os giolhos das moças, nas vergonhas.

No entanto ali estão as outras faces.
Ah! As praias e as tragédias e as ineses,
Eos presságios bilingues, multiligues
E as visões tão fatais, tão desabridas (...)

Os invasores letrados escreviam para contar como era a vida desses selvagens que, como bichos, teriam de ser amansados, sendo, para isso, necessário paciência. As
terras eram valiosas. O selvagem nem se considerava dono de nada. O ouro seria deles. “Eu sem ouros, com apenas maracás”. De dança em dança e com presentes de maracás, eles seriam conquistados. O índio diferente, por isso, mau selvagem.




E eu menino pequeno, todo penas,
Com essas flechas sem leis e esses colares
Prefaciando viagens, aventuras,
Narradores de petas européias,
Eu sem ouros, com apenas maracás,
Eu índio diferente, mau selvagem,
(Invenção de Orfeu, p.35).

Aos poetas é inerente a capacidade de compreender o mundo. Jorge de Lima Inventa como Orfeu, formas de nos seduzir, nos levando por caminhos antes vividos por nossos primeiros habitantes. Coloca palavras que podem ser os pensamentos daqueles que não têm como dialogar, reivindicar, eles não foram preparados para isso. Ou se calam ou se revoltam. A arte do poeta está aí. Talvez nos faça refletir um pouco sobre o passado dos nossos ancestrais.

E eu palavreando com esses papagaios
Completamente apócrifo no mundo,
Cosmogonia nua, áspero clima
Sem moeda e comércio, muito bem,
Liberdade social, perfeitamente
Com tacapes ferindo mas sem guerras.

Sobretudo eu escravo do homem branco
Ó cunhas, inocências e pobrezas,
Curiosidades sobre meus amores,
Visões de missionários, flor de peles,
Narrativas de naus e manuscritos,
Madeiras de Colombos e Espanhas.
(Invenção de Orfeu, p.36.)

Para Jorge de Lima, todos têm direito ao seu pedaço de continente. Não só o espaço físico, também, poder usufruir dos bens necessários para
Uma vida digna.
Sem desejar as terras dos vizinhos,
Banhando-nos nas chuvas de janeiro,
Sem desgastes no juízo memoriado,
Sem preparos de flechas e de chumbos (...)
(Invenção de Orfeu, p. 40)

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