TRAPIAZEIRO

Marcas do Passado

Lúcia Nobre

Era uma vez um grande e belo trapiazeiro de flores amarelas que sombreavam com carinho a bela casa das lagoas. Trapiazeiro que parodiava o sol e encandeava a lua com sua beleza. Que maravilha poder ficar ali saboreando minha família. Meu avô, minha avó, minhas tias, meus tios, minhas primas e meus primos, brincavam de ler. Cada um era leitor e também ouvinte, pois, todos participavam da brincadeira.
Ali, naquela sombra tranquila, curtíamos belos momentos de felicidade. E parece que adivinhávamos que tudo aquilo não era para sempre. Ou melhor, nem pensávamos isso. Tudo se vivia de maneira natural e o tempo era tão pouco, pois só acontecia nos domingos. Morávamos cada um em seu lugar e só nos encontrávamos nesse dia. Nossos avós sabiam que domingo era o dia da visita de todos. Vindos de Santana do Ipanema, do Batatal, do Alto Bonito, do Olho D’água do Amaro. Com a alegria do reencontro seríamos recebidos com carinho por nossos avós.
Quem chegava atrasado já encontrava todos sentados em baixo do trapiazeiro, lendo e comentando a Bíblia ou outros livros. As crianças brincavam, mas antes passavam por lá para também contribuir com sua parcela de leitura. Vovô Pedrinho, vovó Angelina sábios em amor para dar. Jamais esquecerei seus ensinamentos que marcaram minha existência. Tenho certeza que toda felicidade que sinto em minha alma é o resultado do amor que deles recebi.
Alguém pode achar que pais e avós devem educar severamente, senão, não dar certo. Tenho a prova do contrário. Nossos avós amorosamente tratavam todos. O que muito me chamava a atenção, era a maneira dos tios conversarem com os sobrinhos. Havia um respeito recíproco. Uma admiração mútua. Lembro de tia Júlia gostava de me consultar sobre alguma música, pedir para olhar alguma palavra desconhecida no dicionário. Assim, como recebia com bom grado os ensinamentos de minha avó. Ela não aconselhava, contava casos com mensagens para cada situação. Eu entendia e amava.
Benildo, meu primo, conta que os adultos gostavam de sua leitura e era sempre um leitor constante nas reuniões da família, quase sempre no trapiazeiro, em domingos de sol, lá nas Lagoas. Saudades, muitas saudades, saudavelmente, claro, pois de tudo isso, só temos que agradecer os nossos felizes momentos que nos marcaram positivamente para sempre.
Benedito, anjo querido, foi cedo e deixou muita ternura em meu coração. Costumo lembrar você como o bendito que veio em nome da paz e do amor. Então, trapiazeiro, por que foi nos abandonar? Por que foi nos deixar partir para nunca mais voltar?
As crianças amavam os fins de semana que estavam junto com a família das Lagoas do João Gomes. Vovô aparentava ser um senhor sisudo e severo. Na verdade, em sua época, os senhores avôs, em sua maioria causavam até temor. Bigodes longos, vestidos seriamente, fala firme, autoritária. Ali nas Lagoas, entre avós, tios e primos, tínhamos a liberdade de sermos felizes. Está certo que fazíamos fila para sermos abençoados. Depois da bênção, livres e soltos.
Hoje, entre ruínas e recordações, bailam as lembranças do trapiazeiro abandonado. Esse que ofereceu sua sombra, o conforto da família reunida. O remorso inflama nossa alma, ao sentir que o abandonamos quando ainda estava viçoso. Partimos para mundos distantes, enquanto, ele morria pouco a pouco do mal da saudade. O seu consolo era saber que fora amado pelos familiares que o viram nascer, crescer e viver por muitos anos. Os iniciadores da família que cresceu, evoluiu e valorizou uma vida harmônica, vieram de Pernambuco, logo que se uniram em nome do amor. Pedro Pacífico e Angelina Amélia, jovens, ainda, resolveram construir suas vidas juntos. E o lugar escolhido foi Alagoas. A região campestre do estado recebia afetuosamente aqueles que desejavam construir uma nova vida.
Assim aconteceu. Pedro descendia de uma família de agricultores, lidava muito bem no trato com a lavoura. Desde cedo adquiriu experiências e levou na bagagem, de mãos dadas com sonhos e ideais. Embora jovem, passava o aprendizado que assimilara dos antepassados. Quando acontecia a falta d’água e consequentemente a seca, encontravam saídas práticas. Em épocas de chuvas, acumulavam água em açudes que construíam. A lavoura colhida, armazenavam depois de separada para o consumo e para o comércio. Se acontecesse a falta de chuva não havia problemas para as famílias do sítio e para as que chegavam pedindo ajuda.
Tanto Pedro, como Angelina, construíram sonhos idealizados. Ele na agricultura e ela com sua escola. Professora, muito bem exerceu essa profissão. A principio, a família da noiva fora contra o casamento dos dois. Ele um agricultor, homem da roça, um trabalhador enfrentando grandes dificuldades em um sertão árido e sem nenhuma estrutura. Ela, uma professora que estudou na cidade, poderia sonhar uma vida mais amena. O pai, um fazendeiro, a mãe, dona de casa, desejava à filha uma existência menos agressiva. Angelina poderia continuar os estudos na cidade. Nenhum argumento fez a jovem desistir de seu propósito. Tinha se formado em professora e sua vontade poderia se concretizar.
Nas Lagoas do João Gomes faltava uma escola para as crianças ali residentes. Com ajuda do irmão de Pedro e esposa, foi construída uma escola para as crianças da região. Mesmo em terras íngremes, trabalhava-se com planejamento e tudo se multiplicava. Depois da escola instalada ao lado da residência que construíram, não faltaram crianças das regiões vizinhas. Angelina tornou-se uma professora querida. Ainda hoje em 2009, alguns alunos que sobreviveram ao tempo, falam com carinho da professora. Os irmãos Pedro Pacifico e João Clímaco formaram uma comunidade. Em conjunto, realizavam interesses em comum. A escola de Angelina contribuiu para que as crianças dali fossem alicerçadas e continuar seus estudos em Santana.
Pedro e Angelina enraizaram-se em terras campestres alagoanas. Um dos filhos, Sebastião Pacifico, depois de emancipar-se economicamente da família, resolveu unir-se a bela Helena. O jovem das Lagoas enamora-se da menina do Batatal, e em comum acordo decidem construir residência na cidade de Santana. O casal que veio do sítio em direção à cidade, trabalhou duro para confirmar o sustento dos dez descendentes. Dificuldades normais para as famílias. O casal dedicava-se à família e priorizava a educação dos filhos. Ofereceu condições de estudo a todos. Trabalhavam em companhia dos filhos. Um amor que deu certo. União que se transformou na grande família que é hoje. Torna-se até difícil contar entre netos e bisnetos.
Com mania de revolução, não aceitava as normas do ensino vigente. Insistia em não decorar as lições. Nem pensar, daí as reprovações no ginasial. Enquanto colegas decoravam grandes textos de geografia e história, pensava, pensava e não estudava a lição. Meu interesse se concentrava em português, matemática, francês... Os livros da Biblioteca Municipal da cidade não eram suficientes. Lia todos e queria outras leituras. Os emprestados pelos amigos, completavam minha leitura. O professor Ernande Brandão foi o principal fornecedor de bons títulos. Sim, mas por que não estudava as tarefas da escola? Foi assim até entender o significado de um diploma para continuar os estudos. As palavras do conterrâneo Siloé Tavares contribuíram para mais uma alerta: “vai ficar a vida inteira vendendo cafezinho?”.
Como filha mais velha, procurei conduzir meus irmãos a lugares que os levassem ao amor, à compreensão, sobretudo à dignidade. Todos trabalhavam com papai em horário diferente do colégio. Acordávamos bem cedo como era de costume. Cada um tomava o rumo que lhe era destinado. Já que não admitia o sistema escolar do ginasial, optei em trabalhar com a família tempo integral. Nosso trabalho exigia-nos tempo. Preferia liberar meus irmãos para o estudo, enquanto ficaria trabalhando em nosso bar (restaurante).
Motivo de satisfação para os pais, presenciar o crescimento e realização dos filhos como pessoas. Da união do casal, uma menina inquieta, queria modificar o mundo. Só não sabia como. Refletia sobre as palavras e desejava entender o seu sentido. Gostava de meditar, de ler, de cantar, de escrever e fazer versos imitando os clássicos. Ao ler versos de Camões, dedicou-se mais ao estudo da poesia. Meu pai, apaixonado por leitura, reunia em um fiteiro, livros de religião, sobre a vida dos Santos, e alguns títulos que lhe interessavam. Lendo-os, adquiri o bom gosto da leitura. Entre seus livros, assinava revistas da Editora Vozes de Petrópolis/RJ. Comunicava-me com a editora das revistas, e por algum tempo participei como colaboradora da coluna de jovens.
Chega uma gráfica em Santana, com euforia dirigi-me a esta com alguns cadernos lotados de poesias. Decepcionada sai dali, o proprietário falou claro que não fazia aquele tipo de serviço. Mesmo pedindo que fizesse o orçamento, tirou-me de tempo e com indelicadeza repetiu o não. A ignorância do dono da gráfica não matou meus sonhos, atiçou mais o incentivo para sair de Santana a procura de realizá-los. Não, que minha querida terra tivesse culpa da ignorância de alguém. Se nos ausentamos, será para mais tarde contribuirmos com nossa parcela de ajuda cultural como fazemos agora, alguns santanenses. Estamos ausentes fisicamente, mas, ligados em todos os acontecimentos que engrandecem nosso povo, nossa cidade.
Santana, cidade pacata, não havia diversões, o que havia diariamente era o cinema, mesmo assim, sempre reprisava. O que fazer? Namorar? Nem isso! Trabalhar e nas horas vagas, ler, ler... Nunca gostei de carnaval, esse tempo era muito bom para ficar só. Enquanto todos saíam, a leitura ficava mais agradável.
Não quer dizer que negligenciava os amigos. Sempre soube cultiva-los e por que não dizer cativá-los. Tendo meditado o “Pequeno Príncipe” na adolescência, acreditava que o amigo devia ser cativado. E que o essencial é invisível aos olhos e que só se vê bem com o coração. Ajudou-me a compreender os vários temperamentos do ser humano. Olhando com o coração, não os julgando pela aparência. Saí de minha terra para cursar universidade. De primeira, passei no vestibular de filosofia na UFAL. Deixei a família e os amigos e parti para novas conquistas. Ao inscrever-me para o vestibular nem observei que não tinha onde morar em Maceió, mesmo assim, não podia desistir. Consegui vaga na residência universitária e passei no concurso para professora. Assim, sem grandes sacrifícios, obtive titulo universitário.
Os comerciantes de Santana sempre promoviam oportunidades para os jovens que desejavam trabalhar. Como o Ginásio funcionava, também a noite, podiam cumprir horários de trabalho durante o dia. Meninos da cidade e até dos sítios vizinhos, procuravam papai na busca de uma vaga de emprego. Muitas vezes, ficavam conosco, adquiriam senso de responsabilidade e com isso, eram chamados para trabalhar em lojas, padarias, bancos da cidade. Assim aconteceu com vários garotos, uns até saíram da cidade capazes de assumir responsabilidades maiores.
José Alves, menino ainda, fora levado pelo pai para conosco trabalhar. Na época, não havia lei que proibisse, no entanto, tínhamos consciência que se tratava de um menor que precisava de ajuda. José cumpria sua função de aprendiz, assim como a de estudante que se preparava para a vida e ajudava a família, como desejava o pai. Na idade de trabalhar nas lojas da cidade, exerceu sua tarefa, até criar condições de construir o seu próprio negócio. José Alves, um piruá, como a pipoca que pula, que se desenvolve, já dera mostras de alguém que cresce, que tem iniciativa, que procura crescer, enfim, não se acomoda. Ele e o irmão que se iniciaram em sua terra, partiram e se realizaram em cidades maiores. Sempre nos visitam em férias e agradecem os tempos que com nossa família conviveram.
Todas as tardes a casa da professora acolhia alguns jovens amantes da música. Riacho Camoxinga, sua ponte separa um bairro do outro. A belíssima residência de Dona Maroquita Bulhões, irmã do Padre Bulhões, fica no alto da ponte do Riacho Camoxinga e do Rio Ipanema, que se abraçam, talvez conformados por viverem a maior parte de suas vidas esperando receber o líquido precioso em seus leitos quase sempre vazios.
O casarão destaca-se por sua beleza e por sua arquitetura antiga. Grandes salas, quartos, alpendres, varandas, jardins, capela, cozinha vastíssima. A mais bela sala é a do piano, piso todo coberto de tapete vermelho, belíssimos quadros nas paredes. E não é a sala em que os alunos soltam suas vozes, eufóricos durante os ensaios. As aulas acontecem ao som do harmônio em outro ambiente; os coristas, cada um em sua especialidade. Na primeira, segunda, terceira e até quarta voz, são manifestadas as vozes desses jovens que são o orgulho da maestrina. Recebem noção de música, de canto, sobretudo de senso de responsabilidade. O coral só se apresenta em dias festivos, geralmente, é convidado a se apresentar.
Aquele casarão era um mistério para todos. Quem não queria conhecê-lo? Os alunos timidamente só ficavam no lugar destinado aos ensaios, até que um dia, a professora pede ao sobrinho Demóstenes ou Crisóstenes? Que mostre os lugares mais bonitos da casa aos alunos. Dona Maroquita tem fama de austera, mas é a meiguice em pessoa, quando os recebe. No fim da tarde, após os ensaios, são servidos gostosos malcasados preparados por Bernadete, sobrinha da professora.
Por baixo da ponte chegam ao casarão. É muito mais interessante atravessar o riacho que, como o rio, muito tempo passa sem uma forte correnteza. A água que passeia levemente molha os pés dos jovens, dando-lhes sensação de liberdade. E que liberdade! Jovens, felizes, cantores... “Quem canta seus males espanta”. Futuros cidadãos conscientes e responsáveis. Aprenderam desde cedo a unir o útil ao agradável. Cantavam e cumpriam horários, compromissos. Sabiam também, romper tabus, desprezavam a ponte, molhavam os pés nas águas mansas e frias do riacho.
Os jovens eram selecionados por Dona Maroquita que dizia a todos: para fazer parte do grupo, terão de ser responsáveis, pontuais e assíduos, principalmente. Outros jovens até que tentaram participar do grupo, mas, pouco a pouco se afastaram e os que continuaram, conquistaram a confiança da maestrina: João Neto, seresteiro nas noites de Santana, Madge, Renilde Silva, Lourdinha Azevedo, Lúcia Nobre. Frequentadores assíduos, porque nas férias sempre apareciam os que estudavam fora de Santana e participavam do nosso coral.
Santana do Ipanema de agora está tentando se realizar por meio de filhos conscientes, o essencial para que seu povo caminhe dignamente e seus jovens adquiram o necessário para uma realização profissional. Por exemplo, O ideal será que os estudantes da época atual, não tenham que se deslocar para outra cidade a procura de um grau a mais em sua vida escolar. Os Santanenses unidos não negligenciam na conquista desse objetivo. Não é de agora que afastam as pedras que tentam impedir conquistas e realizações. Acredita-se que, cada um oferecendo sua contribuição no que concerne seu poder, tudo será cumprido.
Entre os santanenses surgiram poetas e mais sertanejos poetas para confirmar as palavras do Escritor Mineiro João Guimarães Rosa que diz: “para ser um bom poeta é preciso provir do sertão”. E dizia ainda mais: “Goethe é um sertanejo, entende a alma humana”. Aqui entre nós, em nosso querido torrão, o que nos encanta é a nossa Santana dos nossos amores, onde nos deleitamos À sombra do umbuzeiro, com nossos casos e loas, contados e cantados por nossos poetas. O importante é que cada um tem o seu pé de serra para poetizar.
Cada um tem sua história para contar e até chorar. Todos têm suas veredas: caminhos e riachinhos; ribeiras e ribeirinhas para deles recordar. Lembrando que, em nosso sertão, veredas são caminhos. No sertão de Minas, veredas são riachinhos. Mas, se tudo é sertão, todos os caminhos nos levam ao amor à terra querida e ao nosso povo.
Os poetas, os escritores santanenses valorizam recordar os fatos acontecidos no passado, sejam engraçados ou não. É o perpetuar da cultura. Mais uma contribuição para nosso patrimônio cultural, o poetizar dos fatos guardados na memória do santanense.

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