O MENINO E A SANFONA

Marcas do Passado

Remi Bastos

... Ele herdara do pai o gosto pela música e tão cedo conheceu as teclas da sanfona. Nunca havia freqüentado uma escola de música, o seu único professor foi o seu velho pai Júlio que logo cedo despertou no seu único filho José Francisco o gosto pela arte de tocar sanfona. Em sua humilde residência situada na Avenida Nossa Senhora de Fátima, ali vizinho à antiga Empresa de Luz onde atualmente funciona a Câmara de Vereadores de Santana do Ipanema, aquele menino foi crescendo encantando a todos que o viam tocar. Lembro-me que existia um espaço, talvez um beco ou corredor limitado pela velha Empresa de Luz e a sua casa, onde passávamos horas inteiras jogando chimbra na companhia de outros amigos das mesmas idades.

Zé Francisco se destacava dos demais pela sua estatura e orelhas e mãos avantajadas, tinha uma gargalhada própria e prolongada que se ouvia à distância. Vivemos parte das nossas vidas envolvidos pelas brincadeiras da época, tais como, jogo de pião, chimbra, jogo de castanhas e de notas de cigarro, as brincadeiras de “ouribusca”, peladas nas ruas ainda desnudas de calçamento, banhos no “Panema”, como alunos da escolinha de Dona Flora, e desfrutando a beleza que a natureza nos proporcionava longe das drogas e das bebidas, éramos felizes num mundo também feliz. O tempo foi passando, aquele menino trocou a calça curta pela comprida e a medida em que o tempo ia passando mergulhava com sua sanfona nos bailes da vida.

Logo cedo perdeu o seu velho pai, herdando aí um sentimento profundo que levou consigo até os seus últimos momentos. Zé Francisco tornou-se um sanfoneiro conhecido na região, não lhe faltavam às festas e farras para animar, sempre estava disposto a dar o seu recado através dos acordes deslumbrantes que extraia de sua concertina. Foi um exímio freqüentador do Bar Bafo da Onça juntamente com seus maiores amigos: Moreninho, Dema Soldado, Zé Nobre, Miguel e Zé Chagas, Zezinho Bodega, Sílvio Bulhões, Zé Ioiô, Zé malta e Tôta do DNER.

Em 1964 fui estudar em Palmeira dos índios no Colégio Estadual Humberto Mendes, foi aí, meses depois que me encontrei com o amigo Zé Francisco animando as noites fervorosas em um luxuoso cabaré daquela cidade. O seu toque na sanfona estava cada vez mais apurado, se exibia como gente grande, não subiu ao palco porque preferia a singeleza do seu humilde público, assim como o era.

Para minha surpresa, logo que percebeu a minha presença no recinto em uma mesa degustando uma cerveja nas companhias de um amigo e duas rameiras qualificadas, teve a consideração de mudar o repertório e executar a sanfona a valsa Saudade de Matão, valsa esta que sempre tocava para mim quando ainda em Santana. Após a execução da tão linda valsa fui cumprimentá-lo com um abraço aclamado pelas lágrimas da emoção. Zé Francisco já aparentava um semblante desbotado pelas noites repetidas das orgias. O óculos de “Rayban” que ostentava em sua face ocultava um pouco o desgaste físico sofrido. Não me demorei ali, também não me despedi do amigo. Anos depois quando já estudava em Recife, estive em Santana e soube do seu falecimento em plena flor da vida, aos 37 anos.

Sempre que passo em frente a sua casa não deixo de lançar um olhar, até sinto a sua presença sentada em um sofá executando com toda maestria na sanfona que por muito tempo a fez sorrir em seus braços, a valsa “Saudade de Matão”. Saudades de você meu amigo José Francisco.

Aracaju, 14/06/2009

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