Julgar: entre a política e o ideal de justiça

Adriano Nunes

Não precisamos ser petistas e nem esquerdistas, centristas ou direitistas para compreender os limites racionais entre posições político-partidárias que adotamos e questões de justiça. Devemos enxergar e compreender a política além de dicotomias, polarizações, militâncias e fanatismos. Mesmo sabendo que tais características podem estar presentes na arena política e serem legítimas. Ou melhor: não nos devemos reduzir a esse tipo de pensar e agir. Devemos, sim, defender a razão, a justiça e a dignidade de todo e qualquer ser humano.

Hoje, deparo-me com essa notícia: a Justiça de SP decidiu que a Marisa, esposa falecida de Lula, realmente tinha desistido de comprar o triplex. Após ter pago algumas parcelas, ela solicitou a desistência e pediu a devolução das que já havia pago. Isso, ao que parece, com provas inafastáveis nos autos. Se tal fato, agora, ao judiciário pareceu óbvio, é vergonhosa a morosidade do sistema jurídico brasileiro para validar juridicamente essa constatação fática. A cada dia, um novo absurdo nos esfacela! Por que demoraram tanto tempo para verificar isso? Digo "isso" no sentido de culpa ou inocência.

Parece mesmo que ninguém lê os autos, não se interessa pelo núcleo material de um processo. Como tudo vem ocorrendo, evidenciamos, de alguma maneira, que os processos passaram a ter uma balança política, midiática ou popular. A força mais relevante e potente influencia a decisão, possivelmente. Injustiças podem acontecer com qualquer um de nós, saibamos. Por isso, defender um sistema jurídico justo, humano, racional, respeitando os princípios constitucionais e penais e as formalidades processuais, é um grande passo para que o ideal de Justiça engendre efeitos na esfera social. Essa senhora chegou a sofrer vexames públicos, agressões, humilhações e terminou falecendo (talvez, até por agravar algo que já tivesse!) com a certeza, talvez, de que a justiça era falha e tarda.

Devemos abraçar e cultivar a razão. A Justiça não pode ser um ideal realizável somente para os detentores de poder da vez. Como os sonhos, deve ser acessível a todos e todas, sem distinções. Assim, afirmou em seu voto, a desembargadora Mônica de Carvalho, relatora do processo: "não há prova nos autos de que, em algum momento, a autora tivesse recebido a posse do imóvel ou de que ele tivesse sido disponibilizado em seu favor". Poder-se-ia contra-argumentar: "professor, não sejamos ingênuos, é evidente que se trata de um tipo de favorecimento!". Respondo: não sou ingênuo e espero que não seja ninguém. A questão é mais profunda e é dessa profundidade que me encarrego aqui: mesmo que tenha sido um favorecimento, tenho ou não tenho que ter uma prova acerca disso? Ao questionarmos esse procedimento não se está peremptoriamente afirmando que não há fatos ou evidências que poderiam legitimar a culpa. Está-se reafirmando que para condenar ou inocentar o sistema jurídico deve fundamentar as decisões com provas. Ou, nesse caso, posso, a partir de já e desde sempre, condenar qualquer pessoa sem uma prova real sequer ou devo condenar apenas por evidências? O direito penal ou qualquer direito permitem tal postura?

Essa é uma questão pragmática que põe em questão os procedimentos da justiça. Não estou, aqui, julgando a inocência ou a culpa, até porque não tenho e nem devemos ter interesses políticos em uma ou outra. Esse é o ponto-chave: os julgamentos de Lula estão tomados por interesses políticos de ambos os lados, esquerda e direita. Nem parte da esquerda quer aceitar quaisquer tipos de culpa de Lula (mesmo que ele tenha) e nem a direita quer aceitar a sua inocência (mesmo que ele inocente seja). Se é para sermos céticos ante inocência e culpa, devemos então nos perguntar por que queremos ele inocente ou culpado e analisar se os nossos reais interesses têm a ver com justiça ou com predileções políticas. Façam isso com vocês.

Adriano Nunes

Comentários