Carta aberta a Xuxa Meneghel

Adriano Nunes

Prazer, sou um defensor da vida, sob os ditames da razão. Dizer isso significa, por uma obviedade lógica e ética, que sou peremptoriamente contra a pena de morte. E ser contra a pena de morte, ainda que não haja uma correlação lógica a priori entre esses fatos, significa, lato sensu, que também sou contra torturas, eugenismos, racismos, preconceitos, discriminações, violências: um humanista moderno par excellence. Apesar dessa necessária apresentação, prefiro a resposta de Odisseu a Polifemo: Οὖτις (ninguém). Não digo isso sob a influência de Métis. Nem busco, sob os portentos da filha de Gaia, a ambígua Fama, popularidade e sucesso. As minhas redes sociais são privadas. Meu alcance é pequeno, e satisfaço-me com isso, pois há muito aprendi com o dito virgiliano "quid non mortalia pectora cogis,/auri sacra fames".

Pois bem. Você, então, deve estar-se perguntando por que esta pequena carta? Respondo: porque, parece-me justo e honestamente intelectual apontar um erro grave em sua posição apresentada em uma live. Você disse afirmativamente que "pessoas para experimento, acho que eles serviriam para alguma coisa antes de morrer" referindo-se a presos. Esta frase me basta, pois traz à tona duas vertentes de pensamento que pretendo criticar, aqui, em seu discurso: 1. Seres humanos como experimento 2. Seres humanos como algo utilitário.

Veja, Xuxa, quão perigosas são as suas afirmações, principalmente em um momento grave como este em que o mundo vive agora. Primeiro, porque querer transformar pessoas em cobaias, em objetos, porque elas são o que são ou fizeram o que fizeram, não tem quaisquer suportes constitucionais ou infralegais em nosso ordenamento jurídico. E, ainda que tivesse, seria desumano e cruel.

Esse tipo de pensamento que você evoca já teve forte influência no passado. Ele já serviu, por exemplo, para fundamentar e legalizar o racismo nos Estados Unidos, com a promulgação de leis que promoviam esterilidade, impediam casamento de pretos e brancos, legalizavam a segregação, o apartheid. Linchamentos chegaram a ser legalizados. Até 1969, em alguns estados dos Estados Unidos, o casamento entre pretos e brancos era ainda proibido. Em 1902, o Parlamento australiano - pasme, se possível! - discutia se os nativos aborígenes eram mesmo seres humanos. Os exemplos, neste sentido, são muitos. Não me alongarei. O mais terrível deles, talvez, tenha acontecido a partir de 1933, na Alemanha, quando Hitler assumiu o poder germânico. Leis foram feitas (com base até mesmo nas leis racistas estadunidenses Jim Crow) para promover aniquilação de deficientes, esterilizações, promover experimentos entre humanos, usando corpos vivos de judeus, ciganos, homossexuais, pretos, comunistas, etc. Tudo em nome da sociedade alemã, em nome da ciência e da tecnologia, da utilidade, do fanatismo, do ódio.

Como brilhantemente Umberto Eco disse "talora per ragioni utilitaristiche adottiamo come se fosse vera una idea che sappiamo essere falsa" (às vezes, por razões utilitárias, adotamos como se fosse verdadeira uma ideia que sabemos ser falsa). Sim, essa ideia que você tenta usar como algo plausivelmente racional é totalmente falsa e desumana. Não é a mera questão de direitos humanos que você debochadamente repudiou. Falsa porque você a justifica para combater o uso de animais em pesquisas. Você parece ter esquecido, como defensora de animais, que o ser humano também é um animal. Ora, nenhuma forma de tortura animal ou de experimentação científica deve ser legitimada. É contraditória então a sua defesa.

Daqui a pouco, com base em seu discurso, porque você é uma influenciadora pública, as pessoas poderão enxergar criminosos e presos ainda mais como coisas (e faziam isso antes do seu discurso), reificando-os. E, tomando-os como coisas, poderão descartá-los a bel-prazer, assassinando-os, por exemplo. Ou forçando-os a trabalhar como escravos. Ou torturando-os. Ou linchando-os. Você esquece, ainda, que muitos presos podem ter sido condenados erradamente, sendo, portanto, inocentes. Há inúmeros relatos de presos condenados à prisão perpétua ou pena de morte, nos EUA, que, depois, com mais investigações, descobriu-se que eram verdadeiramente inocentes.

Se você quer racionalmente defender os animais, procure enxergar presos como seres humanos e não como meros objetos a serviço de um empreendimento utilitário. Você parece ainda que desconhece a realidade do sistema carcerário brasileiro em que a vasta maioria dos presidiários é preta e pobre, que o sistema penal é mesmo seletivo. E mais: parece pôr radicalmente uma culpa ad aeternum em quem comete crimes graves. Se as pessoas cometem crimes, sim, elas são culpadas individualmente por isso. E, somente pelo crime que cometeram, devem ser julgadas, não por outros ou serem submetidas aos interesses do Estado ou da sociedade.

Também precisamos ter consciência de que se pessoas cometem crimes em uma sociedade, significa, de algum modo, que também temos falhado como pessoas, como cidadãos, temos fracassado ante a ilusão pragmática de um processo civilizatório. Por fim, lembre-se dos médicos nazistas, entre eles Josef Mengele. Ele promoveu as suas ações funestas, em nome da medicina, no campo de concentração de Auschwitz, onde realizou experimentos cruéis e letais em prisioneiros, e foi membro da equipe de médicos que selecionou vítimas para serem mortas nas câmaras de gás, sendo, inclusive, um dos médicos que administrou o gás fatal para exterminar os judeus. Os médicos nazistas e seus assistentes forçaram os prisioneiros a participar de experimentos torturantes e desumanos in totum; Normalmente, os experimentos eram realizados sem anestesia e resultavam em morte, e, quando não, deixavam severos traumas, desfiguração ou invalidez permanentes. O humano foi desumanizado em essência.

Pensar criticamente, Xuxa Meneghel, não é trocar seis por meia dúzia. Também não é acreditar que a sua moral moralizadora deve ser aplicada às demais pessoas. Umberto Eco nos faz recordar que "salvo stati estatici, noi siamo obbligati a parlaree a dire che cosa il nostro intellecto riflette". Que esta carta a ajude a refletir. Um diálogo pode ser aberto. Estamos na esfera humana. Somos passíveis de erros. Podemos reconhecê-los e tentar corrigi-los. A perfeição que fique para os deuses. Adendo: lembro-lhe que a sua argumentação é ainda anticristã. O amor, o perdão, a compaixão têm tornado o mundo melhor, para humanos e bichinhos. Immanuel Kant, sob preceitos racionais e cristãos, constatou que a humanidade é um fim em si mesmo, isto é, temos dignidade, pois valor têm as coisas. Não devemos tratar as pessoas como meios, não devemos usá-las como instrumentos para atender às nossas vontades, aos nossos desejos. Paz e luz, para você.

Adriano Nunes

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