A capacidade racional de enxergar e compreender as verdades fatuais

Adriano Nunes

Em 1939, logo no início da Segunda Guerra Mundial, Heinrich Blücher, então marido de Hannah Arendt, detido num campo francês de trabalhos forçados, por ser alemão refugiado, escreve para a filósofa em 28 de novembro: "é o tempo mais perigoso da história da civilização humana". Anos antes, Hannah tinha percebido, como outros(as) alemães, o perigo advindo da ascensão do nazismo em 1933. Ela tinha ficado desapontada e assombrada com o fato de seus amigos da Organização Mundial Sionista minimizarem o que estava acontecendo, ainda que leis e perseguições antissemitas estivessem impregnando o mundo social alemão.

Em 2018, boa parte da população brasileira tinha noção do que poderia vir adiante. A polarização era um artifício retórico mal-intencionado. As informações que estavam disponíveis eram suficientes para não se querer comprar uma derrocada democrática. A ascensão da extrema direita no mundo era outro fator para que estivessem todos atentos. Os discursos anticorrupção e antiesquerda passaram a valer muito mais do que os discursos pró-vida, pró-liberdades, democráticos. Muitos que se diziam conservadores e muitos que se proclamavam liberais compraram essa falácia como se fosse possível pôr em qualquer político o epítome de "salvador da pátria" ou de um "messias" redentor, em nome de Deus, da pátria e da família. De partida, a própria civilização, tão diversa, múltipla e complexa, era reduzida a uma prototeocivitas, a um nacionalismo deturpado, a uma defesa da família com base inconstitucional de exclusão e discriminação. Tudo isso foi posto no cerne da moralidade política. O Brasil se rendia a uma verdadeira religião política. Se fosse mero fanatismo ideológico ad hoc, se fosse mero descontentamento com a política tradicional, se fosse uma simples revalorização de valores tradicionais, talvez a nossa consciência ética do jogo político pudesse estar menos tensa e preocupada com o rolar dos dados. Todavia, havia e há algo mais intenso e inescrupulosamente perigoso. Alguns poucos perceberam o grande perigo que estava prestes a emergir dessa mistura de pseudoconservadorismo, política evangélica intolerante e militarismo.

Os atuais escândalos sobre as compras de vacinas é algo nefasto, tanto do ponto de vista ético quanto do ponto de vista político, mas, principalmente, do ponto de vista humanitário. Querer ganhar dinheiro, à socapa, cobrando propina por dose de vacina, em um momento em que a vida dos cidadãos e cidadãos está sob grande risco de adoecer gravemente e até morrer, é tão bárbaro e cruel que nos levanta sérias suspeitas de monstruosidade, da banalidade do mal.

Se as denúncias de corrupção e prevaricação forem comprovadas, os fatos revelar-nos-ão quão monstruoso e antivida tem sido esse governo de ideólogos autoritários. O que mais nos assusta e nos deixa perplexos, de algum modo, pela sua terrível realidade, é o fato de que os fiéis apoiadores dessa empreitada antidemocrática, os seguidores de Bolsonaro, sequer submetem tais suspeitas e denúncias ao crivo da razão crítica, sequer submetem tais acusações à possibilidade da certeza de culpa ou da dúvida de sua inocência. Para eles, essas revelações não passam de uma tentativa, engendrada pela oposição, de desestruturar e desestabilizar o governo bolsonarista. Ou, quando muito, num instante de reflexão sub-reptícia, relativizam a corrupção alegada como sendo "menor" do que a cometida pelos petistas. Percebemos aí que a vida em si não é só quantificada monetariamente, ela é desvalorizada, ou melhor, é-lhe retirada a sua dignidade, ao ponto de ser reificada, ser tratada como uma coisa, um objeto manipulável, e que pode ser desprezada a bel-prazer. Além disso, a indiferença aos mortos e seus familiares e os atentados discursivos de Bolsonaro à democracia, à Constituição, às instituições, não parecem apenas configurar crimes, evidenciam também o status quo de uma prototeocracia militarizada pronta para o tudo ou nada. A democracia nunca precisou tanto dos democratas, dos moderados, dos que amam e defendem as liberdades.


Adriano Nunes

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