O torturador que diz não temer a verdade (Parte 1)

Artigo

por Fernando Soares Campos(*)

Em meados de 2012 decidi tentar localizar o sargento Túlio, do meu tempo na Marinha de Guerra, uns 15 anos mais velho que eu. Certamente reformado. Talvez já tivesse morrido, pois me lembro bem de que, quando o conheci a bordo do Submarino Bahia, o S12, unidade em que estive embarcado entre 1969 e 1971, o sargento Túlio era um inveterado tabagista, desses que acendem o cigarro com a brasa daquele que acabara de fumar. “Se não largou o vício, há muito tempo partiu para as profundas”. Entretanto esse pensamento não me tirou o ânimo de procurá-lo, preferi acreditar que estivesse vivo e que seria possível localizá-lo.

Telefonei para ex-colegas da Marinha, alguns com os quais ainda mantinha relacionamento, apesar de raramente fazer contato com eles. Nada. Ninguém tinha notícias do sargento Túlio. Nenhuma pista.

Já estava quase desistindo, quando encontrei o telefone de um velho suboficial. Liguei.

– Alô! – voz de mulher.
– Bom dia. Eu gostaria de falar com o Paulo...
– Com o Paulo?!

A mulher imprimiu um tom de surpresa tão acentuado que logo imaginei que havia errado a ligação.

– Sim, com o Paulo Damasceno, suboficial Damasceno. Não é da casa dele?
– Sim, é... É da casa dele, sim, mas... quem gostaria de falar com ele?
– Meu nome é Fernando, Fernando Soares Campos. Eu servi com o Paulo no Submarino Bahia. Isso já faz muitos anos, claro. Mas nós nos encontramos tempos atrás em Madureira. Foi por acaso, numa fila de banco...
– E o senhor continuou mantendo contato com ele?
– Eu liguei uma vez pra ele... Já faz algum tempo...
– Sim, deve fazer mesmo!

De cara, desconfiei que o Paulo já tivesse batido as botas, mas não quis perguntar. Ela notou meu embaraço.

– É verdade, já faz uns três anos que não tenho notícias dele – arrisquei o período.
– Acho que bem mais!
– É?!
– Sim, bem mais! O Paulo morreu em 2001. Já faz é tempo, né?

“Bota tempo nisso!”

Acontece que só tenho o telefone dele porque costumo guardar agendas antigas. Acho que nos encontramos em 93 ou 94. E a única vez que liguei para ele foi uma semana depois, desejando feliz Natal, boas festas e um novo ano bem abonado. Disso me lembro.

– A senhora não imagina como sou desligado! Às vezes eu penso que certas coisas aconteceram há muito tempo, quando nem faz tanto tempo assim. Outras vezes imagino que certas passagens ocorreram há bem pouco tempo, e na verdade já se passaram décadas...
– Entendo, eu também sou assim. Mas, no caso da morte do marido, a gente não esquece a data ou, pelo menos, o ano. Posso saber o que o senhor queria falar com ele?
– Sim, não há nenhum segredo, eu apenas gostaria de obter uma informação, se ele pudesse me dar, claro. Mas infelizmente o Paulo já não se encontra entre nós.
– Se eu puder ajudar...
– Acho que não... Quer dizer, creio que a senhora não teria a informação que pretendo obter. É sobre o paradeiro de um ex-colega de bordo.
– Conheço alguns deles, os que vinham aqui em casa.

Não custava arriscar.

– A senhora conheceu um sargento chamado Túlio?
– Túlio? Sargento? Huuummm... Não, não... Com esse nome, não. Pode até ser que tenha conhecido, mas com outro nome. Eles costumavam se tratar por apelidos.

Eu já estava agradecendo a atenção e me despedindo, quando ela me perguntou:

– O senhor conhece o tenente Sousa
– Tenente Sousa? Não, não me lembro desse.
– Pois ele era sargento no tempo do Paulo e também serviu no Bahia.

Sargento Sousa! Claro que conheci! A questão é que ela falou tenente, e eu não relacionei a pessoa com a patente.

– Sim! conheci o sargento Sousa. Estatura mediana, moreno claro. Um camarada muito brincalhão, tinha sempre uma boa piada pra contar. Se não me engano, era escriturário.
– É esse mesmo. Ele foi reformado como segundo-tenente.
– A senhora poderia me dar o telefone dele?

Silêncio na linha.

– Alô!
– Ah! O senhor me desculpe, mas eu não tenho autorização de fornecer o telefone dele. O senhor, que também é militar, sabe como são os militares, são todos assim... digamos... desconfiados, não é mesmo?

Não sou militar. Fiquei na Marinha apenas por seis anos. Dei baixa, não me reformei. Mas deixei que ela pensasse que ainda sou um deles, imaginei que isso poderia facilitar as coisas.

– É verdade! Mesmo não tendo nada a temer, nós nos acostumamos a desconfiar de tudo. A doutrina militar deixa a gente assim.
– Então, vamos fazer o seguinte: o senhor me dá seu telefone, eu ligo para o Sousa, explico que o senhor quer falar com ele, e ele liga para o senhor. Tá bem assim?
– Sem problema! Anote aí, por favor, dona...
– Marilane.
– Eu agradeço a sua atenção e disposição em me ajudar a encontrar antigos colegas de farda, dona Marilane.

Ela anotou. Agradeci. Nos despedimos.

No dia seguinte, por volta das três da tarde, o telefone chamou. Atendi. Um sujeito meio rouco perguntou por mim.

– É ele – respondi.
– Seu Fernando, aqui é um amigo do falecido suboficial Damasceno. A viúva dele me falou que o senhor gostaria de falar comigo.
– É o sargento Sousa?
– Tenente Sousa.
– Desculpe, eu me lembrava de você ainda como sargento e esqueci que a dona Marilane me falou que havia se reformado como tenente...
– Não tem problema, eu entendo.
– Tenente Sousa – acentuei a patente com um tom firme, muito apreciado pelos militares –, eu servi com você no Submarino Bahia. Cheguei a bordo em 69 e desembarquei em 71. Eu me lembro que você era o sargenteante, o homem que cuidava de muita coisa, mas principalmente do nosso soldo, acrescentava as horas de mergulho na nossa caderneta e, a partir daí, a gente passava a ganhar um pouco mais. Confere?
– Tem boa memória! Mas eu não me lembro de você. A Marilane me deu seu nome completo. Eu lidava com toda a tripulação, mas você sabe, faz muitos anos, e a gente acaba esquecendo, não dá pra lembrar de todos. Qual era seu posto?
– Eu trabalhava nas máquinas, era marinheiro do serviço de máquinas, sou do tempo do cabo Cleber, do Martins, do Edivan...

Súbito, o tenente Sousa me cortou:

– Peralá! não vá me dizer que você é aquele marinheiro que deu calote numa boate na zona de Santos, no dia da final da Copa de 70!

Eu preferia ser lembrado por alguma coisa mais relevante, ou mais honrosa. Em todo caso, fiquei satisfeito por ter sido lembrado por um feito qualquer, mesmo que nada edificante.

– Você também tem boa memória – com isso, confirmei que era o tal que ele acabara de se lembrar.

O tenente Sousa caiu na risada, gargalhadas dobradas. Tomou fôlego e falou:

– Rapaz, eu já contei essa história pros meus netos – continuava rindo, agora mais moderado –. Você estava na boate, os colegas iam chegando, você convidava pra mesa, mandava servir os drinques. Depois foi dançar com uma das garotas e sumiu – os risos novamente passaram a gargalhadas –. Na hora da dolorosa, o pessoal falou pro garçom: “Nós não temos nada com isso! Foi o marinheiro quem pediu as bebidas, aquele que estava com a loirinha. Cadê ele? Cobre lá dele?!” – e tome gargalhadas.

Eu mesmo contei o final da história. Falei que o garçom acabou me localizando a bordo, queixou-se ao oficial de plantão. Este adiantou o pagamento da conta com dinheiro do caixa de bordo e registrou a queixa no Livro de Contravenções Disciplinares, mais conhecido como Livro de Castigo. E foi ele mesmo, o sargento Sousa, quem me encaminhou para a audiência com o comandante. Fui punido com cinco dias de impedimento, que consiste em não poder ir para terra naquele período. Cumpri dois dias em Santos e três no Rio.

– Mas tem também aquele outro caso que acho que foi com você... – continuou o tenente Sousa.

Pelo visto, ele estava disposto a levantar todas as babaquices que cometi enquanto estive a bordo do Bahia. E não foram poucas. Eu nem perguntei “qual?”, pois poderia suscitar lembranças outras. Preferi dissimular com:

– É, acho que teve outro caso interessante.
– Rapaz! Esse outro caso foi muito engraçado. Foi em Recife. Você levou pra bordo aquelas garotas de um bordel da Rio Branco, apresentou uma delas como sua namorada e as outras como cunhadas, primas, amigas – o filho da mãe explodia de rir.

Só não desliguei o telefone porque precisava de informações sobre o paradeiro do sargento Túlio, e aquele seria, sem dúvida, o mais importante contato para chegar a ele. O cara havia exercido as funções de sargenteante, o homem que lidava com toda a tripulação, conhecia cada um de nós. Unidades maiores têm mais de um sargenteante, mas, num submarino, um só dá conta do serviço.

Continuou com as gozações:

– Dali em diante todo mundo tirava sarro contigo: “E aí, marujo, como é que tá a família da noiva?” “Boy, ontem à noite estive lá na casa da tua sogra” – a sogra era a cafetina... gargalhadas enchendo meu saco.

Foi naquele momento que tive a certeza da existência de Deus! Sim, Deus existe, sim! Quem mais poderia me fazer lembrar de uma passagem muito engraçada na Ilha da Martinica?

“Só pode ter sido um anjo que me soprou essa!”

– Sargento...
– Tenente.
– Ah! desculpe, esqueci. Tenente, você também conta pros seus netos aquele caso do sargento que, na Martinica, pegou uma garota no escurinho, em cima de uma ponte, encostou a vítima na balaustrada, transaram, e, quando ela foi embora, ele saiu assoviando, feliz, pelas ruas de Fort-de-France, sem entender nem ligar pra todos que olhavam pra ele e sorriam ou faziam gestos estranhos?

Silêncio. Pensei que a linha tivesse caído, até que o Sousa tossiu, falou alguma coisa para alguém bem próximo dele, pareceu cochichar. Apesar de eu não ter entendido o que falou, me pareceu que não tinha nada a ver com o que conversávamos.

– Desculpe aí, meu caro Fernando... É Fernando, não é?
– Sim.
– Ah! você se lembra daquele caso na Martinica? Pois é, rapaz, nem eu mesmo me lembrava daquilo – interrompeu e novamente falou alguma coisa com alguém e retomou a nossa conversa informando:
– É o meu filho que está com um problema no carro... Mas, sim, a Marilane me passou o seu telefone, mas não soube dizer o que você está querendo falar comigo.

Claro que o tenente Sousa não estava mais interessado em minhas trapalhadas nos portos. Menos ainda em falar do sargento Sousa, que transou com uma garota no escuro, apenas com o zíper aberto, sem nem mesmo arriar um pouco as calças, e somente quando chegava a bordo notou a mancha de sangue na barguilha daquela calça de uniforme branquinho. A garota estava “naqueles dias”. Até Chiquita Bacana deve ter rido dele naquela noite, distraído pelas ruas da capital da colônia francesa.

Não voltaria a curtir com a minha cara.

– Estou tentando encontrar um sargento do nosso tempo no submarino.
– Sargento é mais fácil de lembrar, pois eu também era sargento. Quem você tá procurando?
– É o sargento Túlio. Acho que ele era telegrafista.

Ficou mudo. Mais alguns segundos e o telefone deu sinal de ligação encerrada.

“O filho da mãe desligou!”

Se a ligação tivesse caído por problemas na linha, o sinal teria sido imediato, mas aquele silêncio que precedeu o sinal de encerramento da conexão indicava que ele pensou um pouco antes de desligar. “Assustou-se?”

Por que achei que ele se assustou? Porque o sargento Túlio era um conhecido agente do Cenimar. Todos a bordo sabiam disso. E, se ele se assustou por isso, então, no meu entender, deu bandeira. Talvez o sargento, agora tenente, Sousa tivesse sido seu parceiro, um dos poucos “secretas” (como eram conhecidos os olheiros) do Cenimar que conseguiam esconder a identidade. Sim, porque a maior parte dos alcaguetas plantados a bordo depois do golpe de 64, vigiando cada gesto e palavra do pessoal subalterno, fazia questão de exibir seus estreitos relacionamentos com o oficialato. Só faltavam vestir camisetas com a inscrição: “Agente Somos do Cenimar”.

Talvez ele apenas não quisesse se envolver falando desse tipo de elemento, principalmente naquele momento, quando a questão dos crimes cometidos nos porões da ditadura estavam sendo questionados, e os torturadores ligaram as antenas, ficaram apreensivos. Mas foi aí que tive certeza de que o sargento Túlio estava vivo. E o tenente Sousa sabia de seu paradeiro. Tudo indicava que este tem algum relacionamento com aquele.

Fui à cozinha tomar um pouco d’água. Voltei para a sala, sentei-me à mesa, onde dispunha de papel e esferográfica. Rascunhei os quatro primeiros parágrafos destes relatos. Fiquei por algum tempo pensando na atitude do tenente Sousa. Estava convicto de que ele bateu o telefone na minha cara. Não foi a linha que caiu.

* * *

O sargento Túlio desembarcou do submarino alguns meses antes de eu ter sido transferido para o CAM – Centro de Armamento da Marinha –, em Niterói, a fim de fazer curso de especialização.

Correu o boato de que ele teria sido transferido para um departamento do Primeiro Distrito Naval, com o propósito de atuar junto aos agentes “mão na massa”. Isso quem me contou foi o cabo Valney.

Certo dia, estávamos ocupados com a manutenção de um dos velhos motores Fairbanks Morse. Eu limpava algumas peças mergulhadas num balde com nafta. O cabo Valney usava uma chave especial para apertar e calibrar válvulas. Sem mais nem menos, Valney me disse: “Túlio foi pra Holllywood”. Nessa eu voei, não entendi patavina. “Tu num sabe o que é isso, não, boy?”

Eu estava pouco interessado em saber da vida dos "secretas", pois minha vida se resumia em pegar o pagamento no final do mês e torrá-lo nos inferninhos da Praça Mauá, Copacabana ou nas zonas portuárias onde atracávamos. Também não perdia os melhores bailes nos clubes suburbanos. Se o anúncio informava que Lafayette estaria animando baile em Irajá, Campo Grande, Ilha do Governador ou em qualquer outro canto da cidade, então, qualquer pessoa já sabia onde poderia me encontrar naquele dia e hora.

Não gostava das festas na Casa do Marinheiro. Só ia lá quando uma namorada insistia muito. Aí, sim, era namorada de verdade, acompanhada das irmãs, primas e amigas. Mas, quando me pediam para conhecer o submarino, eu dava um jeito de sair fora. Dizia que as visitações estavam suspensas, inventava um motivo qualquer, por mais esdrúxulo que fosse: “Deu uma praga de barata a bordo, e o comandante suspendeu a visitação”. Essa era infalível, nunca me perguntaram se as baratas já haviam sido exterminadas. Depois daquela bobeira que aprontei no Recife, eu jamais levaria uma namorada de verdade para conhecer as instalações do submarino.

“Acorda, marujo!”

O cabo Valney notou que eu estava desligado, distante. “Ir pra Hollywood é quando o secreta passa a trabalhar direto nas ações de campo. Virou 007. Sacou?”

Achei a expressão meio boba; mas, já que ele insistia em me esclarecer, tudo bem, falei que entendi. Valney também me contou que havia visto o sargento Túlio e uns fuzileiros escoltando prisioneiros numa lancha que vinha da Ilha das Flores e atracou no cais do Arsenal. Deveriam estar sendo encaminhados para a Auditoria Militar.

* * *

Já passava das seis da tarde. Juntei os rascunhos espalhados sobre a mesa. Eu aproveitava cadernos usados dos meus filhos, arrancava folhas em branco ou meio rabiscadas, fazia uma bagunça com as anotações, de tal forma que só conseguia juntar o quebra-cabeça porque numerava tudo. Coloquei as folhas dentro do caderno e guardei numa gaveta da estante da sala.

Tomei banho, troquei de roupa e fui ao supermercado mais próximo do condomínio em que eu morava. Fiz pequenas compras e voltei apreciando o maciço da Tijuca. Já era noite. O clarão da cidade contrasta com a escuridão da montanha e destaca suas curvas. Com o céu limpo, fica bonito, mas prefiro a paisagem de dia, com uma névoa pairando sobre o pico da montanha.

* * *

Dez da manhã. Como sempre ocorria, eu me acordava quando não tinha mais ninguém em casa. Depois da higiene pessoal, tomava um café puro e saía para pequena caminhada pelas margens da floresta. Se não fosse o barulho de carro, ônibus ou moto que passa de vez em quando, o passeio seria mais interessante, mais prazeroso, ouvindo o canto da passarada e observando os micos atravessarem a pista correndo; vão para os condomínios onde as pessoas costumam deixar algumas frutas nos terraços. Se não deixarem, eles invadem as casas e furtam o que puderem.

Eu também surrupiava alguma coisa, geralmente charutos de despacho. Não preciso disso, pois até que não estava tão mal financeiramente, mas de vez em quando pegava um charuto ao lado de ramalhete flores ou em um alguidar cheio de farofa. Acendia-o e dava umas baforadas. Só evitava fazer isso quando tinha animal sacrificado.

Certa ocasião parei no meio do círculo traçado em volta de um despacho. Fiquei ali sem saber por quê. Tive a estranha sensação de que alguém estava me observando, apesar de que, no ponto em que eu estava, não havia nenhuma residência por perto. Mas estava sendo observado, sim. O olheiro era um gavião pousado num galho da copa de uma árvore. O olhar do rapineiro me deu a impressão de que ele estava censurando a minha invasão do espaço consagrado. Era como se estivesse exigindo que eu saísse dali. Teimei em ficar, encarei o bicho. Não demorou muito, passou um carro e me deu um banho com a água lamacenta empoçada na beira da estrada. Chuá! Olhei pro gavião. Ele ria. Juro!

***

Em casa, depois do banho e do café do meio-dia, me reanimei. Continuei rascunhando este texto, mesmo sem ter certeza de concluí-lo, pois, se não encontrasse o sargento Túlio, não alcançaria meu principal objetivo, que seria tentar arrancar dele algumas informações sobre sua própria atuação no Cenimar, considerado um dos mais eficientes órgãos de informação militar a serviço da “redentora”.

Liguei novamente para dona Marilane. Ela atendeu, mas, ao me identificar, notei certo tom de diferença, comparando-se ao tratamento que me dispensou da primeira vez. Agora demonstrava frieza, indisposição. Contei que quando falava com o tenente Sousa “a ligação caiu e ele não voltou a ligar”. Ela fez muxoxo, deixando claro que aquele assunto já não lhe interessava. Desculpou-se dizendo que estava de saída. Desligou.

Consultei as velhas agendas e constatei que não havia mais a quem recorrer. Estava decidido a ir ao Primeiro Distrito Naval, mesmo sabendo que seria muito difícil obter alguma informação. Precisaria de concretas justificativas para que me informassem o endereço ou mesmo o telefone de um militar reformado. Entendia que, em se tratando de um elemento que supostamente teve participação direta nas atividades do Cenimar durante os anos de chumbo, não me diriam nem mesmo se o sujeito estava vivo ou não. “Melhor desistir. Vou perder tempo e posso até criar maiores dificuldades de chegar a ele.”

Eu acreditava que o sargento Túlio ainda vivia. A atitude do tenente Sousa me fez ter a certeza disso. O tratamento da dona Marilane na segunda ligação também reforçou a minha convicção. Sousa deve tê-la aconselhado a não falar mais nada comigo.

Não sou investigador profissional, não posso sair por aí procurando pessoas desaparecidas. E aquilo poderia esperar, não havia necessidade de apressar as coisas, tudo nos chega no momento certo. Acredito nisso. Além do mais, tenho outros afazeres.

Eu ainda não conseguia esquecer o sargento Túlio, tudo por causa das notícias sobre uma tal crise política gerada pelo Programa Nacional dos Direitos Humanos, o PNDH 3.

Havia quem acreditasse que, se o Programa virasse lei, iríamos assistir aos julgamentos dos figurões que comandaram os centros de tortura. Isso não tinha o menor fundamento. No Brasil só quem vai para a cadeia é pobre (de qualquer cor ou etnia), ou rico que nasceu em manjedoura, enriqueceu ilicitamente (fui redundante?), tentou passar a perna em raposa política e acabou enquadrado em crime que tenha provocado comoção nacional orquestrada pela mídia. Se o sujeito tiver pedigree, não vai.

Se hoje ocorresse um golpe militar no Brasil, implantando-se uma ditadura nos moldes do que aconteceu a partir de 1964, e daqui a 40 anos estivéssemos apurando os crimes da repressão, aí, sim, poderíamos colocar alguns oficiais de alta patente no banco dos réus, porque grande parte dos oficiais de hoje é formada pelos filhos de militares do quadro subalterno, é gente que tem origem na classe média baixa. Esses podem hoje assumir postos de comando, mas seus pais, mesmo que alguns tenham alcançado posto de oficial, não podiam comandar nada, a não ser grupos de recrutas fazendo ordem unida.

Em 64, eram raros os oficiais que não fossem “herdeiros de altas patentes”. Do almirante ao guarda-marinha se podia identificar os laços de sangue do avô ou bisavô ao neto ou bisneto.

No decorrer do período ditatorial, muitos filhos e netos do generalato perderam o estímulo pela carreira militar. Foi aí que os sargentos e oficiais cascas-grossas começaram a preparar seus filhos e os fizeram ingressar nas academias militares. Por isso temos hoje coronéis-aviadores, capitães-de-fragata e outros mais ou menos graduados nascidos e criados nas casinhas mais chinfrins das vilas militares.

***

Semana que vem conto mais.


(*)Fernando Soares Campos é escritor, autor de "Saudades do Apocalipse - 8 contos e um esquete", CBJE, Câmara Brasileira de Jovens Escritores, Rio de Janeiro, 2003; "Fronteiras da Realidade - contos para meditar e rir... ou chorar", Chiado Editora, Portugal, 2018.

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