MARIA BAU

Crônicas

Lúcia Nobre

“Não existe nenhuma cultura
tão arraigadamente tradicional
quanto a cultura popular” (Alfredo Bosi)


Mulher negra, magra, falava pelos cotovelos. Morava ali naquela região. Todos das Lagoas do João Gomes, do Batatal e das regiões vizinhas a conheciam ou dela ouviam falar. Lembro muito bem de sua voz de matraca e mais ainda da imitação que minha avó fazia dela. Minha avó gostava de imitar as pessoas e Maria Bau era uma delas. Seu Manuel Bau sempre a acompanhava em suas andanças. Às vezes vinham de Santana e sempre traziam novidades. Onde estávamos ouvíamos sua voz. Minha avó ou adultos que nos acompanhavam nas estradas, sempre repetiam: Maria Bau está ali, ouçam sua voz. Minha avó nem percebia que aquela voz era o passado histórico de um povo. Vozes, costumes e tradições que vinham de longe e amalgamavam-se aos costumes dos que já estavam aqui. Maria Baú, representante desse passado, repetia frases ou provérbios aprendidos em sua terra, transmitia sua cultura, que agora não era mais sua, outros povos aprenderam, como também, ela, outras culturas assimilou.

Quando vinham de Santana traziam novidades. Compravam com o dinheiro dos produtos da roça, que juntos plantavam e colhiam. Às vezes era uma calça de casimira para Manuel Bau, outras, uma saia rodada e florida para Maria Bau especialmente para vestir nas Santas Missões em Santana. Ou simplesmente um biscoito novo que aparecia na padaria. Valia a pena gastar aquele dinheiro. Tudo era motivo para mostrarem as novidades aos vizinhos.

Enquanto a mulher mostrava e contava as novidades, o marido a esperava com paciência. Como não era de falar, a esperava no alpendre, observando os bichos que passavam ou os pássaros que voavam. Dando baforadas para bem longe em seu cigarro de palha, como se levassem seus pensamentos para bem longe, para um tempo bem distante. Tempo em que ele não guardou lembranças, mas intimamente tem muitas saudades. Povo que veio de longe para terra de outros, uns como Manuel Bau jogavam na fumaça seus pensamentos, outros como sua mulher, falavam, falavam... Quem sabe desafogavam a dor de ter de deixar suas raízes.

Riam de Maria Bau e não a entendiam. Mesmo aqueles que a achavam engraçada, sempre repetiam suas palavras quase sempre sábias. Muitas vezes olhando para o tempo dizia: “Sapo na seca coaxando, chuva beirando”, e pensando bem, tinha um fundo de verdade. Depois do provérbio acrescentava: ninguém vá a Santana porque vai chover. Não se sabia, na época, que tudo que esses negros diziam ou faziam, serviu de alicerce para que fosse construída uma cultura. Eles já traziam a sua e pouco a pouco iam deixando para os que aqui estavam. Assimilaram a cultura de outros e assim, foram construindo raízes. Tanto que, se tornaram religiosos das santas missões. Somos hoje o resultado dessa cultura entrelaçada. Como diz Riobaldo, “Religião, seu moço, bebo de todas” ou “Eu agora bebo de todos os rios”.

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