O NATAL DO FILHO DE UM FUNCIONÁRIO PÚBLICO

Contos

Maria do Socorro Farias Ricardo

Aquela pequena cidade onde as pessoas são todas da mesma família, não impede o orgulho e o preconceito. Um rico fazendeiro querendo ser mais do que outro; um político mais do que outro. A cidade dividida.

João, filho de um funcionário público, em uma noite após um dia de trabalho cansativo. Chega em casa sem se conter de alegria. Certo de que aquela noite será noite de festas. Na companhia de sua garota que tanto ama.

Final de ano. Festejos natalinos no centro da cidade. Carrosséis espalhados defronte a igreja matriz: alegria da criançada; jogos de azar, a juventude apostando na sorte. O padre se prepara à celebração da missa à meia-noite. Os fiéis começam a se organizar na porta da igreja. A banda de música toca no coreto da praça. Os casais de namorados sonham ao som da mais linda canção. Mais adiante, um prédio iluminado, repleto de jovens da sociedade que providenciam o baile; próximo a dar início a grande festa ao som de mais uma banda.

Selecionam, o organizador do baile na porta do prédio, os participantes. João, cheio de ilusões, promete ser sua melhor noite. O período de nove dias de festa estava só iniciando. Ao lado de sua namorada, João caminha em direção ao baile.

Aproxima-se do porteiro. Sem exitar, entretanto, o porteiro barra sua entrada: "Você não pode entrar aqui, João. Este baile é para ricos". No entra não entra, a namorada desiste, João, impertinente, discute, argumenta, mostra seus motivos naquela noite de festa na cidade. Humilhado. Sentindo-se o último ser humano da Terra, sai cabisbaixo, sem conter as lágrimas. Sentindo-se um trapo. Com vergonha de sua namorada. Soluça como uma criança. Esquece que está acompanhado. Quando lhe faltam as forças, senta-se na primeira calçada, em lágrimas, lamenta a vida, a sorte e a pobreza.

João está na infância. O carinho dos pais. As brincadeiras com seus amigos de escola. Um filme em suas lembranças. Seu pai, ao chegar em casa, com aquela boina na cabeça, de funcionário dos Correios. As pessoas da cidade, todos os seus conhecidos, vizinhos, parentes.

Indignada, a parceira de João se despede. Deixa-o sozinho. Ia João com seu olhar embaçado a acompanhar a namorada até onde o escuro lhe consome a imagem. Ela desaparece... João, sem forças, quer passar a noite na calçada. Vê pessoas indo à festa. Escuta o som da música. O baile está começando. O paletó de João amarrotado. A gravata na mão é o lenço que apaga o choro.

Levanta-se da calçada. João se posiciona de autoridade e começou um discurso solitário: "Funcionário público não é gente! É uma vergonha seu salário. Não adianta vocês quererem me convencer. O porteiro do baile tem razão. Eu sou mesmo um trapo. Filho de um funcionário dos Correios, que recebe por mês um salário de fome". Caminha bêbado com suas palavras. Avista uma placa luminosa com o nome FARMÁCIA. Dirige-se à drogaria. O farmacêutico, sem entender o que estava se passando, quando João, aos gritos, perguntou: "O senhor tem veneno pra vender?" O farmacêutico: "Veneno?!"

Sim. Veneno. O senhor não conhece veneno?

Conheço.

Eu quero o maior veneno que o senhor tenha na sua farmácia. O mais poderoso. Traga o seu veneno. Diga quanto é.

Que veneno?

Eu tenho dinheiro pra pagar. Olhe a cor de meu dinheiro! Por que o senhor está me olhando desse jeito? Eu sou filho do seu primo. Não me reconhece?

Claro que eu conheço. Não é o filho do carteiro?

O senhor tem ou não tem veneno pra me vender?

Assustado, o farmacêutico foi à prateleira. Apanhou um. O mais forte de sua farmácia. Tarja preta... Entregou-lhe. Mostrou-lhe a tarja. Garantiu-lhe ser o veneno mais poderoso da indústria farmacêutica.

Aparentemente, João estava mais calmo. Convencido que, no dia seguinte, estaria morto.

João deixou a farmácia suando frio. Amanhã, há esta hora, João estará morto. E nunca mais passará vergonha igual a que passou. E nunca mais será tangido daquela porta de baile igual a um cão vira-lata.

Sentimento de tristeza. Revolta. O carinho dos pais. A conversa dos vizinhos, dos parentes, dos amigos de escola. A vida por um fio. Estava vivo agora e, em seguida, não mais estaria. A namorada que a viu a última vez pelas costas, sendo consumida pelo escuro. O pai chegando dos Correios, suado, cansado, sem dinheiro e sem-vergonha. Estava decidido. Mais tempo do que vida? Não teria mais tempo e nem vida. A decisão era final.

Cego de raiva, não leu a bula do remédio. Queria bebê-lo de uma sentada. Em casa, preparou uma dose cavalar. Feito um rato faminto, entrou no quarto. Bebeu o "veneno" com toda a certeza de pôr um fim na própria vida. A reação da hiperdose foi cair em sono profundo.

De manhã. Acordado. Fez-se a pergunta: "Onde estou? No céu ou no inferno?" Olhou as paredes do quarto. Reconheceu algo familiar. Não se conformou com o que estava acontecendo. Saiu do quarto com uma crise, aos gritos: "Eu mato. Vou matar aquele ladrão! Farmacêutico ladrão".

Saíra de porta afora aos berros: LADRÃO! LADRÃO!

LADRÃO! LADRÃO!

LADRÃO! LADRÃO!

LADRÃO! LADRÃO!

LADRÃO! LADRÃO!

LADRÃO! LADRÃO!

LADRÃO! LADRÃO!

LADRÃO! LADRÃO!

LADRÃO! LADRÃO!

LADRÃO! LADRÃO!

LADRÃO! LADRÃO!

LADRÃO! LADRÃO!

LADRÃO! LADRÃO!

LADRÃO! LADRÃO!

LADRÃO! LADRÃO!

LADRÃO! LADRÃO!

LADRÃO! LADRÃO!


LADRÃO! LADRÃO!

LADRÃO! LADRÃO! Gritava pelas ruas da cidade. Corria. O povo assustado sem entender se era "pega ladrão!" ou "ali vai um ladrão" ou ainda "quem viu o ladrão?" e, de grito em grito, ele ia chegando próximo à farmácia. Gritou até à porta do farmacêutico. Na farmácia, abriu a boca a chorar. Ficou em soluços e atirou o "veneno" aos pés do farmacêutico..

Conto publicado em 01/01/07

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