Lá em casa éramos oito irmãos. Eu o penúltimo. Nossa morada, construída e reformada para as necessidades da família, na rua Cel. Lucena, nº 29, possuía oito quartos. A sala de jantar parecia mais uma quadra de esportes de tão imensa que era. A mesa, igualmente muito grande, ficava ao centro. Cabia toda a família de 10 pessoas: papai, mamãe, Márcio, Assunção, Nena, Múcio, Mindinho, Mardônio, eu, Mário César e ainda sobrava lugar. Antigamente uma mesa era como se estivesse personificada para servir em todos os momentos; o símbolo da união, quando permitia as reuniões familiares (jantares, festas, jogos, brincadeiras). Em todas as refeições, era necessária a presença da família inteira. Papai na cabeceira, mamãe ao seu lado direito e, por ordem de idade, os filhos ao longo daquela mesa. Iniciando-se com um breve ritual de devoção, a nossa refeição diária acontecia em um clima maravilhoso e encantador. Algumas vezes o tom era solene, mas, na maioria, era um cenário descontraído, agradável, hilariante e alegre, onde as brincadeiras entre irmãos aconteciam de praxe, sempre seguidas com o olhar austero de papai, às vezes cúmplice dos desalinhos dos filhos.
Quanta saudade!
Essa mesa de jantar foi palco de “cursos de arte culinária” promovidos por mamãe (excelente no forno e fogão), banquetes com políticos e amigos de papai, mesa de estudos e, também, de muitos episódios engraçados, além de servir para jogar ping-pong, hoje conhecido como tênis de mesa. Ali todos nós aprendíamos e jogávamos esse esporte. Inclusive, mais tarde, minha irmã Mª. Irene, a saudosa Nena, se tornou vice-campeã brasileira universitária de tênis em duas oportunidades: uma em São Paulo e outra em Salvador, fato que hoje poucas pessoas sabem. Lembro-me de alguns amigos de infância freqüentando nossa casa para jogar o ping-pong naquela mesa (que já estava ficando famosa).
Nessa mesma sala e nessa mesma mesa vivemos outras histórias. Uma delas foi uma rápida recepção que papai e mamãe fizeram para muitas pessoas. Os convidados, ao se retirarem da sala de jantar acompanhados pelos anfitriões, deixaram a mesa repleta de docinhos, salgadinhos etc. Naquele momento, meus irmãos mais velhos avançaram em cima dos quitutes, não deixando espaço ou oportunidade para que eu, pequeno e o mais novo, também pudesse degustar as guloseimas. Sabendo que os convidados ainda se encontravam na sala de visita, próxima à sala de jantar, e não vendo como comer nada, abri a boca iniciando um escândalo. Minha intenção era gritar: “Chega, mamãe! tão comendo tudo!” Isso no berro mesmo. Só que quando iniciei “Chega, mamãe......”, o Múcio, irmão mais próximo no momento, prevendo o alvoroço, num gesto ultra-rápido, encheu a mão de docinhos e os empurrou na minha boca e goela a dentro. Pronto! acabou-se o escândalo e eu pude, feliz da vida, também degustar igualmente com os irmãos todas as iguarias.
Um outro fato foi um almoço com várias figuras importantes da capital. Neste, meu pai fez questão de todos os filhos à mesa. Mamãe não queria, pois tinha receio dos transtornos que os filhos menores pudessem causar. Prevendo isso, ela colocou ao seu lado os dois mais novos: eu e Cezinha. Ainda bem não começou a refeição, eu, sem cerimônia, peguei logo com as mãos um pedaço de carne e coloquei no meu prato. Com isso, levei um violento beliscão por baixo da mesa. Doeu mesmo! Então, abri o berreiro a chorar. Mamãe, como se nada tivesse acontecido, pergunta, desejando disfarçar: “O que é que foi, meu filho?” Eu, sem pensar entre o choro e a fome, respondi bem alto: “A senhora que me beliscou!”. Que vexame....
Em uma outra ocasião, eu tinha, na época, perto de cinco anos e não estava ainda indo para a escola. Naquele tempo, mesmo sem freqüentar um colégio, os irmãos mais velhos iniciavam os mais novos nas primeiras palavras. Estava Nena ensinando-me a ler. Antigamente era soletrando que se aprendia a pronúncia de uma palavra. Estávamos sentados na saudosa e prazerosa mesa: “c a cá z a sá”, dizia Nena, e eu respondia: “casa”; “s a sá p a pá t o to” e eu respondia: “sapato” e por aí seguiam os ensinamentos. Só que empaquei no “r a r á p a z paz”. Nena conjugava e pedia para eu repetir. Só que não conseguia, deu branco ou não sabia. Ela, querendo me ajudar, repetia: “r a r á p a z paz”, e eu mudo. Ela: “r a rá p a z paz” e eu mudo. Então, ela perguntou: “O que é que o Múcio é?”. “Eita! Ficou fácil”- pensei. “Agora sei”, disse-lhe olhando nos seus olhos. Mais uma vez, ela repetiu: “r a rá p a z paz” e eu, imediatamente, convicto da minha “certeza”, afirmei: “homem!”
Uma de Mindinho - Lá pelos seus 10 anos, ele colocou uma visita e mamãe em apuros. Há muitos anos se tinha o hábito de as pessoas se visitarem. Era uma demonstração de amizade e cordialidade. Inclusive, se “pagava” a visita. Pois bem: uma amiga da família chegou lá em casa para “pagar” uma visita. Conversaram bastante e, no meio da conversa, mamãe ofereceu-lhe uma sobremesa. A visitante rejeitou, mamãe insistiu, a visitante rejeitou. Ficou aquele oferece-recusa até a senhora aceitar a oferta, afirmando, ainda, que não queria. Assim sendo, o Mindinho, com sua inocência de 10 anos e vendo a visita raspar literalmente o prato com a colher, não se conteve e, se aproximando daquela mesa, baixinho que era, colocou os dois cotovelos sobre a mesma, fitou os olhos da visitante e falou sério: “Oxente, D. fulana, a senhora disse que não queria, não queria, mas barreuuuuuu o prato!”. Contam que houve aquele silêncio... Alguns instantes depois, as duas deram uma sonora gargalhada.
Ah! se aquela mesa falasse... tantas outras histórias iria contar...
Que saudade daqueles tempos!...
Esta crônica eu dedico ao meu Pai e minha Mãe, meus legítimos e maiores heróis, pelas suas grandezas, magnanimidade e sabedoria ao repassarem valores aos filhos e, muitos, naquela mesa...
Maceió-AL, 06/06/06
Cônica publicada em 11/06/06
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