O LEGADO DAS FREIRAS HOLANDESAS

Djalma Carvalho

Acabo de ler no capítulo “A Janela”, do livro Ninho de Cobras (Imprensa Oficial Graciliano Ramos, Maceió, 2015), de autoria de Lêdo Ivo, genial escritor alagoano, o seguinte: “No Hospital São Vicente, uma janela se abriu e a freira que sofria de insônia recebeu no rosto a aragem da madrugada. A brisa vinda do mar refrescou-lhe o rosto – um rosto sem idade, que as rugas não franziam. Era como uma sombra entre sombras, no silêncio da antemanhã.”
Livro ambientado em Maceió do final da década de 1930 e início da década de 1940, durante a ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas.
Noite adentro, anônima e insone, ali na janela estava a freira depois de concluída a sofrida tarefa diária de ver diante de si pessoas doentes, moribundas, que entravam no hospital “trazendo no rosto a marca do finamento próximo”, no dizer do romancista.
São várias páginas desse capítulo da análise reflexiva que fez o autor da vida da religiosa, esposa de Cristo, dedicada, permanentemente, à prática da caridade, caminho indicado sem escolha por seus familiares. Missionária de vida de solidão, de interrogações não confessadas. Mas pessoa dócil, frágil, tendo como companheiros para reflexão as contas do seu rosário e o escapulário pendurado no pescoço, crente na eterna doçura de Deus.
Com insônia, a freira debruçava-se na janela, à sombra do quarto, sem ser vista pelos que passavam na rua em frente varando noites e madrugadas de Maceió. Figuras da sociedade local, de vida boêmia carregadas de vícios e pecados.
Sem nenhuma semelhança com a freira do romance, o especial capítulo do livro fez-me lembrar de duas bondosas freiras holandesas – Irmã Leôncia e Irmã Letícia – que, em meados da década de 1960, foram levadas a Santana do Ipanema por D. Otávio Aguiar, bispo diocesano de Palmeira dos Índios. Essas missionárias foram muito bem acolhidas pela sociedade santanense e pela paróquia de Senhora Santana, então dirigida pelo saudoso padre Luís Cirilo Silva.
Com seu histórico de povo católico desde 1787, ano em que o padre Francisco Correia levantou a capela com a invocação de Santa Ana, padroeira da cidade, diria que Santana do Ipanema pouco contribuiu para o surgimento de vocações de jovens interessadas em se tornarem freiras. Apenas quatro jovens santanenses, salvo engano, ingressaram e permaneceram em convento, como missionárias, oriundas de igual número de conhecidas famílias da cidade (Agostinho, Cristino, Fontes e Cirilo). Diferentemente das vocações sacerdotais bastante estimuladas, que alcançaram o número recente de 24 padres ordenados.
Retornando à conversa inicial, as duas irmãs holandesas, já falecidas, prestaram relevantes serviços a Santana do Ipanema, nas áreas de educação e saúde.
Irmã Leôncia, por exemplo, dedicou-se à saúde e à assistência social, cuidando de gestantes, razão pela qual, como gratidão, o povo santanense resolveu homenageá-la com a fundação do Clube de Mães Irmã Leôncia.
Por sua vez, Irmã Letícia, também muito querida, dedicou-se à educação de crianças, notadamente do ensino fundamental, deixando em Santana do Ipanema o Instituto Sagrada Família, do qual fora fundadora e diretora. Tributo ao seu especial legado, a Câmara de Vereadores, em 30 de março de 1984, concedeu-lhe o título de Cidadã Honorária de Santana do Ipanema.
Boas lembranças têm, afinal, os santanenses dessas duas saudosas irmãs holandesas que residiam no Posto de Puericultura da cidade. Irmã Leôncia dirigia veículo tipo jipe para seus deslocamentos na cidade e ao interior do município para assistência a gestantes. Irmã Letícia pedalava sua bicicleta (hábito trazido do seu país), indo ao Instituto Sagrada Família e dali retornando ao final do seu trabalho diário.
O portal Maltanet, em edição de 22 de dezembro passado, publicou a sentida notícia: “Morreu na tarde deste domingo em Asten/Holanda aos 89 anos a religiosa Leatitia Van Fulpen (Irmã Letícia).” Com essa triste notícia, encerrou-se o ciclo histórico da passagem dessas duas bondosas religiosas por Santana do Ipanema, lugar muito distante do seu país natal, a Holanda.

Maceió, março de 2020.

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