O CAIXÃO DO PADRE

Djalma Carvalho

Djalma de Melo Carvalho
Membro da Academia Santanense de Letras, Ciências e Artes.

Acredito que pouca gente de minha cidade saiba que a família do padre José Bulhões tenha recebido duas urnas funerárias para o sepultamento desse antigo e querido pároco de Santana do Ipanema, falecido em 17 de outubro de 1952.
Com certeza, fato curioso confirmado por Luís Maurício Bulhões, sobrinho do falecido e fonte fidedigna de consulta, que me contou essa história, como se verá ao final desta conversa.
Ainda considerado menino, acompanhei o cortejo fúnebre do padre desde sua residência até o cemitério Santa Sofia. Era um sábado ensolarado. Alunos do Ginásio Santana, formados em fila a partir da balaustrada da ponte do riacho Camoxinga, acompanharam o enterro ao lado de professores, autoridades civis e eclesiásticas e da sentida e silenciosa multidão de santanenses, prestando a última homenagem ao pranteado sacerdote.
Adiantei-me, com outros meninos, entrando no cemitério antes do cortejo. Mas, distraidamente retornando ao largo portão, não mais nos permitiram entrar no cemitério. Ontem, o curioso menino – hoje, o calejado cronista – não soube se o caixão baixara à sepultura ou se fora colocado em especial mausoléu. Também não soube se algum orador fizera discurso fúnebre e se foram rezadas orações próprias dessas cerimônias.
Padre José Bulhões era homem santo, religioso sempre ouvido nos momentos de crise política, de ameaça de violência, de segurança na cidade. Espécie de poder moderador. Foi um dos fundadores do Ginásio Santana. Costumava receber em sua residência autoridades e pessoas de destaque na vida social e política de Alagoas. Conhecido por sua hospitalidade.
Pois bem. Em crônica recente, intitulada Por Um Triz, tratei de fato pitoresco, histórico, de Ângelo Bulhões, irmão de Demóstenes, sobrinhos do falecido padre. Quanto a Demóstenes, fiquei de tratar de suas travessuras, também em crônica, tão logo tivesse em mão matéria ainda inédita, conforme prometera ao conterrâneo Luís Maurício.
Filhos do Sr. Antônio Bulhões, já falecido, os dois foram criados na casa vizinha à da residência do padre José Bulhões (1886-1952), personagem este sempre lembrado na história da cidade de Santana do Ipanema, da qual fora pároco a partir de 1919, ao substituir o padre político Manoel Capitolino de Carvalho (1872-1942).
Disse o senador Teotônio Vilela (1917-1983): “Todo jovem é um feixe de ânsias em disponibilidade criativa.”
Na verdade, esses dois meninos eram travessos e criativos – e bote criatividade neles! Com um padre em casa, família religiosa, educada, de obediência aos ensinamentos cristãos, aí era formado um núcleo familiar de muito respeito, de muita paz. O Sr. Antônio Bulhões, por seu turno, era homem sério, religioso, sempre calado. Então, esses dois meninos danados teriam puxado a quem dessa família?
Ângelo e Demóstenes estão hoje aposentados e residem no Rio de Janeiro.
Em seu livro de crônicas, intitulado Meninos Danados, Levados, José de Melo Carvalho conta-nos o seguinte episódio. Nas missas dominicais, padre Luís Cirilo Silva (1915-1982), sucessor do padre Bulhões na paróquia, permitia que esses meninos danados, entre os quais Demóstenes, ficassem sentados nos degraus do altar-mor, a fim de que sobrassem espaços para adultos nas bancas da igreja matriz. Exigia deles, porém, o devido silêncio. Acontece que, dali, Demóstenes se levantava, de mansinho, e se dirigia ao espaço que existia entre o altar-mor e a parede de fundo da igreja. Ali se postava para ser visto somente pelos indóceis meninos. Ninguém mais. No solene momento da missa, Demóstenes baixava as calças para que, assim, fosse visto. Diante da inusitada cena, todos os irrequietos meninos – coitados – desabavam em incontidas risadas, para desespero do padre celebrante.
Voltando à conversa inicial, diga-se que o caixão do padre fora adquirido em funerária de Santana do Ipanema. Mas a Ordem dos Franciscanos Seculares (?) mandara de Maceió, com a mesma finalidade, outro caixão, mais elaborado. Recebido e aceito pela família do falecido, fez-se a imediata troca.
O caixão que sobrara, então, foi guardado no armazém no fundo do quintal da casa do padre, arrumado por sobre madeiras e outros imprestáveis utensílios, bem perto do telhado.
Daí, finalmente, toda reclamação de traquinagens praticadas por Demóstenes, seu pai procurava-o, para “as devidas lapadas”, por toda parte da casa, indo encontrá-lo deitado, tranquilamente, dentro desse caixão do padre.
Julgava-se, ali, bem guardado e protegido...

Maceió, setembro de 2018.


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