O paradoxal artigo de Hélio Schwartsman

Adriano Nunes

Critico veementemente o artigo "Por que torço para que Bolsonaro morra" bem como uma imagem em que se traduz a ética utilitarista desse desejo e que circula na internet. Desejar a morte de alguém é mesmo um irracionalismo. Torcer para que alguém morra com base em um cálculo utilitário é flertar com o que há de mais grotesco em nós. Se se critica o desprezo de Bolsonaro pelas vidas na pandemia e além-dela, por que se quer ocupar retoricamente esse mesmo espaço discursivo?

A ética utilitarista é falha e abjeta, faz um cálculo que, resumidamente, se traduz na obtenção da máxima felicidade para o maior número de pessoas, isto é, procura justificar o sacrifício da minoria em nome da maioria. Tal ética é incapaz, portanto, de respeitar direitos e garantias individuais. Pois, se for para o "bem" da maioria, qualquer um pode ser exterminado a priori. Essa perspectiva só enxerga o indivíduo dentro do todo e se ele for "necessário" e "útil" para esse todo.

Através dessa ética, Hitler promoveu a esterilização e o extermínio de deficientes físicos e mentais em nome de uma raça "pura" e "perfeita", por exemplo. Se voltarmos mais ainda no tempo, basta lembrar que cristãos eram jogados aos leões, na Roma antiga, para a diversão da maioria, acrítica e sedenta por sangue, que lotava o Coliseu. E grave também: é esta mesma ética que pode servir de justificativa à tortura. A ética utilitarista de Bentham pesa as preferências e as vontades sem as julgar criticamente, parecendo aceitar até mesmo a vingança privada como preceito-guia da sociedade. É como se pudesse quantificar o sofrimento e, assim, poder pagar com e por ele para que outras pessoas possam ser felizes.

Bolsonaro é um péssimo Chefe de Estado. Ideólogo e autoritário. Responsável, de alguma maneira, por essa tragédia. Cabe agir símile com irracionalismos? Vale a pena desprezar a ética e a razão em nome de ideologias e paixões politico-partidárias? O que me espanta é parte da esquerda, agora, se valer dessa "ética" com esse exemplo. É um exemplo perigoso. Quem valida isso, não pode depois reclamar, com o ar de surpreso, quando usarem o mesmo argumento, o da maioria, para suprimirem as minorias vulneráveis.

Barbáries já foram cometidas em nome desse princípio, baseado num cálculo frio e anti-humano. É a ética que justifica as ações totalitárias de Estados, a que suprime as individualidades, a que legitima, de algum modo, violações a direitos e garantias fundamentais, torturas, racismos, eugenias. Como ultimamente parte das esquerdas está perdida, não sabendo como atuar ante a política bolsonarista, está até fazendo uso de táticas éticas perigosas para justificar e legitimar violências. E isso é vergonhoso!


Prolegômenos para uma ética da Razão


Cada um é livre para cultivar e cultuar um tirano dentro de si a bel-prazer. Como também é livre para defender o tirano que quiser. Todavia, não pode escapar à crítica. É tática fascista querer silenciar o inimigo político através da sua morte. Quem critica o fascismo e faz uso da mesma tática se contradiz, vê-se em reflexo.

Quem pratica a política de guerra à la Carl Schmitt, não deveria, depois, lamentar os efeitos colaterais contrários dela. Quem prega a morte para silenciar adversários e inimigos políticos se contradiz ao criticar ditaduras e tiranias. Quem é contra a tortura se contradiz ao defender argumentos utilitaristas para defender a morte de alguém. Quem diz defender a vida alheia se contradiz quando almeja a morte alheia. Quem diz ser a favor do aborto e contra a pena de morte se contradiz e vice-versa. Quem diz ser contra penas severas e deseja a morte de alguém como forma punitiva porque é ideologicamente adversário se contradiz. Quem clama por justiça igualitária e quer a morte de um inimigo político se contradiz. Quem diz defender a humanidade e torce pela morte de um ser humano se contradiz.

Quem procura justificativas éticas e morais para validar a morte de quem quer que seja se contradiz porque usa de meios antiéticos e irracionalismos. Quem diz que é errado que bandido bom é bandido morto mas clama pela morte de seu inimigo político se contradiz. Quem prega a defesa da Constituição Federal (que proíbe a tortura) e usa de argumentos benthamianos para justificar a morte de alguém se contradiz. Há uma miríade de exemplos. Todos levam à contradição e desmascaram a nossa violência diária, a nossa hipocrisia, as paixões político-partidárias.

Estamos na era da anticrítica, dos extremismos, dos radicalismos, dos fanatismos, da falta de abstração, da falta de empatia (seja isto vindo da direita ou da esquerda). Fico seriamente preocupado com essas posições abertas em defesa da morte de alguém, do desejo escancarado de que parece ser melhor torcer que os nossos inimigos ou adversários morram a ser enfrentados com ética e justiça. Isso se chama política de guerra. E é essa política que faz Bolsonaro, bem exposta por Marcos Nobre. Ora, então vamos tomar uma política à la Carl Schmitt como nossa? Nós que somos críticos da necropolítica passaremos a ser como defensores dessa mesma política? Este é o tipo de argumento, por exemplo, que o Weintraub disse na reunião em relação ao STF. É o mesmo tipo de argumento de que se revestem os antipetistas que desejaram e desejam o fuzilamento de Lula. É o argumento de que é melhor viver só com os que pensam iguais. Isso é uma forma abjeta de totalitarismo, ainda que venha disfarçada de ironia ou justificativas morais e humanas.

É válido torcer pela morte de alguém ainda que saibamos que ela cometeu absurdos ou crimes, numa sociedade aparentemente adoecida, polarizada, que despreza, de algum modo, a razão, a crítica, a justiça, que todos os dias vem criando tribunais nas redes sociais e condenando à morte pessoas, que se alegra com linchamentos, que festeja o horror? Com isso a razão não compactua. Quando desprezamos a razão, a ética e a justiça e partimos direto para a vingança privada, para o decreto de morte de nossos adversários e inimigos políticos, estamos abrindo as portas, de forma convidativa, para a barbárie.


Adriano Nunes

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