Entrevista: Entre o mundo acadêmico e o “mundo beato” – vivências de uma antropóloga sertaneja: Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros

Especiais de Domingo

Maria de Fátima de Morais Pinho e Viviane Prado Bezerra (*)

1. Professora, conte-nos como foi o começo de sua trajetória de pesquisa sobre o sertão, no chamado Sul Maravilha?

Luitgarde Barros: No livro “Patrimônio e Práticas Culturais Perspectivas Transdisciplinares da Patrimonialização e dos Saberes – Fazeres Populares”, publicado pela ESBA e pelo LEMCAE, desenvolvo esta explicação detalhadamente, no primeiro artigo da obra (p. 9-31).

Antes de tudo, como sertaneja transplantada para o Rio de Janeiro em 1963, ingressei no Curso de Fisioterapia da ABBR/ Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação em 1964. Passando no Vestibular da Faculdade Nacional de Filosofia/Universidade do Brasil, hoje UFRJ em 1965, somente nesse momento, na instituição educacional mais politizada do Rio de Janeiro, comecei a perceber o abismo entre as concepções de mundo dos sertões alagoanos onde nascera e fora criada até 1962 com transumâncias em Maceió, e o mundo em que mergulhava, seguidor dos “grandes centros da cultura ocidental – Europa e EUA”, no momento ápice da Guerra Fria, com imposição de saberes, hábitos e costumes que suprimissem, o mais profundamente possível, saberes e vivências das culturas tradicionais dos atuais países - antigas colônias europeias.

1964 me impactou quando assisti da calçada do 420 da Avenida Copacabana, a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”; quando a turma do Curso de pré-vestibular debandou das salas de aula para ver Brigite Bardot, ícone dos “libertários” do período, desfilando na praia de Copacabana com seu “companheiro brasileiro”. Foi uma das maiores manifestações que assistira na vida. Outro choque foi assistir à invasão da UNE (União Nacional dos Estudantes) pelas tropas do exército e da polícia de Lacerda, ali na Praia do Flamengo, o “espetáculo” sendo divulgado pela Globo – Flávio Cavalcante, como a “grande vitória contra o comunismo da juventude brasileira ali aliciada e treinada para entregar o Brasil à Rússia”.

Entrando na Escola da ABBR e sendo eleita “rainha dos calouros”, logo integrei o movimento estudantil, como Diretora Cultural do Diretório Acadêmico Fernando Lemos. Em abril daquele ano foi feita a intervenção na Escola de Reabilitação, por interferência do Catedrático de Anatomia – Batista Neto, participante da Marcha da Família, estabelecendo limites à atuação estudantil, no que dizia respeito ao cotidiano da ABBR e às regras do Curso de Reabilitação. Toda a Diretoria do Centro Estudantil estando ausente naquele dia, a Congregação Docente composta de médicos tentou forçar minha aquiescência assinando, já que era o único membro da Diretoria, presente. Recusando definitivamente este ato, fui posteriormente apoiada pela unanimidade de professores e alunos da Fisioterapia e da Terapia Ocupacional, ficando registradas como INTERVENÇÃO POLÍTICA as novas regras sobre as ações estudantis daquela Escola, quando se iniciavam os debates sobre a qualificação “técnica ou de nível superior” das novas profissões de fisioterapeuta e terapeuta ocupacional.

Aquele foi o início de uma atuação que se desenvolveria na busca de minha autonomia como pessoa e como profissional, uma vez que desejava viver uma nova realidade social, na cidade metrópole para a qual o destino me transferiu. A luta pelo surgimento de duas novas profissões na área de saúde no país, se espalhava por toda a cidade, não só pela atuação de viventes de todos os bairros- da zona sul ao subúrbio, como pela diversidade de alunos e professores que buscavam criar oportunidades de desenvolvimento de camadas pobres do Rio de Janeiro, de diferentes profissões e
hábitos de vida. Das cinco ou seis turmas já formadas e atuando profissionalmente na
ABBR, havia desde o campeão de corrida brasileiro, como teatrólogo, músico da Bateria
da Mangueira, mas, principalmente, Ubirany, fundador - com o irmão Ubiracy e amigos,
do Bloco carnavalesco Cacique de Ramos (naquele tempo ainda sem quadra), e o
Conjunto Fundo de Quintal, sucesso absoluto na noite carioca. Com esses
companheiros conheci o Rio de Janeiro, conquistando ao mesmo tempo autonomia de
vida e liberdade de ação, mas principalmente fazendo amigos nos mais diferentes campos
da vida carioca.

Somente em 1965, com a entrada na FNFI, tive minha formação sertaneja posta à prova pelos desafios da década que sacudiu o mundo.

2. A senhora tem uma formação inicial em fisioterapia, em que momento e por que deixou esta formação para enveredar nas áreas de antropologia e sociologia?

LB: Enveredei nos dois universos ao mesmo tempo porque, desde o Grupo Escolar Experimental também chamado Grupo Modelo (1949 – 1953) e o Instituto de Educação (Colégio Estadual Moreira e Silva (1954 – 1960), ambos em Maceió, sempre gostei muito de disciplinas como História, Português, Geografia, Francês, lendo muita literatura brasileira, russa e francesa.

Naquele tempo em Maceió o ensino hoje conhecido como Médio mais adiantado, era das instituições públicas como os Grupos Escolares (primário), o Instituto de Educação (Ginasial, Científico e Pedagógico, só para mulheres) e o Liceu Alagoano (Ginasial e Científico, só para homens), ambos funcionando no centro da cidade, até 1957, com muitas turmas, porque atendiam toda a população de classe média e pobre, de todos os bairros da capital. Os filhos de ricos dispunham de colégios particulares famosos como Colégio Diocesano, Colégio Guido e Colégio atista (masculinos) e Colégio Sacramento, São José e Imaculada Conceição (femininos). Para crianças e jovens extremamente pobres, havia os Colégios Profissionais e os Orfanatos.

Desde os tempos de Graciliano Ramos, Secretário de Educação de Alagoas na década de 1930, estudantes dos Grupos Escolares de Maceió, todo fim de ano, participavam de importante cerimônia na Secretaria de Educação do Estado, quando os melhores alunos dessas instituições recebiam das autoridades educacionais de Alagoas um prêmio, que ia de copos de plástico, estojo de lápis, até livros como a “História do Mundo Para Crianças”, de Monteiro Lobato. Os nomes desses alunos circulavam na cidade entre professores de todos os níveis, tanto primário quanto ginasial e do curso
científico e pedagógico, repercutindo entre professores de curso superior. Isto é, muitos alunos já eram conhecidos de professores universitários, quando se submetiam ao vestibular. Professores famosos como Dona Dorothéa Carneiro de Mello (francês e português) e Benedito Moraes (matemática) muitas vezes procuraram conhecidos “bons alunos” em Maceió, oferecendo-lhes gratuidade em seus cursos preparatórios para concursos ou vestibulares, por conhecerem as condições econômicas de suas famílias. Na Faculdade de Engenharia professores como Mário Mafra e Fernando Gama - um dos reitores da UFAL, procuravam emprego para alunos que não tinham como se manter como estudantes, pela pobreza da família.

Como minha família queria que eu fizesse medicina e algumas amigas e muitos amigos queriam ser médicas (os), terminei aceitando o que me era designado. Chegando ao Rio de Janeiro, os irmãos me inscreveram num pré-vestibular de medicina, onde tomei conhecimento da existência do curso de Fisioterapia. Interessei-me quando soube que, não havendo quase fisioterapeutas, porque a criação do curso era muito recente, e já desejando autonomia de vida desde que cheguei em Copacabana e vi uma outra sociedade diferente de minha vida controlada pela família, comecei a desejar ser independente. Assim, me inscrevi no vestibular de Fisioterapia e, quando comuniquei à
família, o mundo quase cai em cima de mim, mas enfrentei a oposição e, começando o curso em março de 1964, em maio já ganhava dinheiro como estagiária, numa clínica de Niterói. Fui me espalhando pelo espaço Rio-Niterói, conhecendo gente, até chegar, perto do fim do ano, na frente da Faculdade Nacional de Filosofia, bem ao lado do Consulado da França, quase em frente à Academia Brasileira de Letras. Revivendo sonhos da adolescência, em janeiro fiz o vestibular para Ciências Sociais. Sendo aprovada, enfrentei outra briga séria com a irmandade, mostrei que meu salário mais as refeições quase gratuitas (20, 30 centavos) do restaurante universitário me possibilitariam
sobreviver fora da família com o que ganhava na Associação Fluminense de Reabilitação, em 1965.

Entre estudos da área de saúde e a vida acelerada da estudantada da FNFi como era nominada a Faculdade Nacional de Filosofia, fui vivendo, fazendo amigos, cursos de corte e costura, arte-culinária, crochet, tricô, todo trabalho que me facilitasse ganho ou economia de gasto, até ganhar bolsa de estudo como pesquisadora da Nacional de Filosofia em 1967, já formada em Fisioterapia em 1966, e me tornado supervisora do setor de Fisioterapia da instituição onde entrara em maio de 1964 como estagiária. Acostumada a viver em dois mundos, de manhã vivia a realidade da FNFi e suas propostas revolucionárias para a “nova sociedade”, e à tarde participava dos avanços das tecnologias da saúde, articulando as duas propostas muito mais como associação do que oposições. Sempre pensei: Saúde Humana X Saúde Social. Até hoje meu aprendizado de Fisioterapia me serve tanto quanto a pessoas que encontro na rua e lhes recomendo a procura de fisioterapia, terapia ocupacional ou osteopatia, se faço um diagnóstico do que vejo. São todos esses saberes necessários ao bem viver.

3. A senhora é natural de Alagoas, quando e como foi sua decisão de ir morar no Rio de Janeiro e quais as maiores dificuldades de uma mulher, nordestina, para se inserir no mundo acadêmico e intelectual de um dos grandes centros de cultura do país?

LB: Minha vinda para o Rio de Janeiro não decorreu de decisão minha de morar nesta famosa cidade cuja paisagem esplendorosa, principalmente, o Cristo Redentor e a praia de Copacabana, eram mostradas em todos os cinemas das capitais nordestinas, e acessíveis apenas às pessoas mais ricas que frequentavam a capital mais famosa do país. As voltas que o mundo dá, principalmente, as lutas internas pelo poder, associadas às pressões da Guerra Fria nas décadas de 1950/60, e à decisão externa hegemônica de supressão das estratégias nacionalistas de organização de um Brasil autônomo enquanto economia, com a criação da PETROBRÁS e outros processos de industrialização, transformaram em necessidade urgente, urgentíssima, a entrega do país à governabilidade da União Democrática Nacional / UDN, a partir da morte de Getúlio Vargas, projeto concretizado em 1964. Em janeiro de 1961 toma posse do governo de Alagoas o candidato udenista eleito para o cargo por uma vantagem de 120 votos, instalando-se no Estado um processo de eliminação sumária de opositores, isto é, de lideranças políticas ligadas, por diferentes manifestações, ao governo João Goulart.

Muitas famílias destruídas, a minha com 3 chefes políticos assassinados e os demais membros políticos com as futuras mortes anunciadas na imprensa, foi tomada a decisão de que 3 de meus irmãos se transferissem para o Rio de Janeiro, enquanto meus pais eram internados sob o choque da violência, e eu fui para o sertão tentar salvar algo do patrimônio familiar em todo o ano de 1962, sob pressão ameaçadora até de elementos da Polínter, quando a família decide também pela minha transferência para o Rio de Janeiro, em 1963, “para cuidar dos irmãos”. As dificuldades no Rio foram econômicas inicialmente, mas o Rio de Janeiro nos recebeu de braços abertos! Famílias amigas de Maceió aqui residentes, parentes da família de papai (Cavalcanti) já
estabelecidos foram conselheiros e protetores, tendo eu até hoje, gratidão eterna pelos habitantes desta cidade, que nos ajudaram a secar as lágrimas e construir um mundo de paz e vida intelectual onde nos estabelecemos, graças a Deus!

A formação intelectual iniciada em Maceió nos ajudou muito, a mim e meus irmãos, entre intelectuais de diferentes formações, como artistas, engenheiros, músicos como o Maestro Guerra-Peixe (músico - com domínio de toda a produçãoantropológica do país, que me indicou para criar a disciplina de Etnomusicologia no primeiro Curso de Musicoterapia do Conservatório Brasileiro de Música), cineastas, médicos, fisioterapeutas, poetas e jornalistas. A inserção no mundo acadêmico se deu a partir dos trabalhos de pesquisa, desde estudante na UFRJ e, com os concursos públicos prestados na UFRJ (1977), na UERJ (1983), além de provas de seleção para Mestrado,
Doutorado e Pós-Doutorado, na USP, PUC/SP, UNICAMP e UFRJ. Muito importantes para minha formação foram os meses de pesquisa na UNESCO (1998), copiando a documentação sobre o alagoano Arthur Ramos, primeiro Diretor Efetivo de Ciências Sociais da UNESCO, e primeiro Catedrático de Antropologia da Universidade do Brasil, hoje UFRJ.

Na FNFi vivemos a pressão da Ditadura, desde a primeira greve, em 1965, quando éramos desafiados pela professora catedrática de Sociologia – Wanda Torock, uma das organizadoras da Marcha da Família Com Deus Pela Liberdade que, não querendo dar aula, ocupava todo o horário, com declarações de valentia anticomunista, até que exigimos aula e nos retiramos da sala, na primeira greve do novo regime instalado, mesmo enfrentando a ameaça de reprovação em todas as disciplinas, o que nos manteve na luta por todo o ano, até que a catedrática pediu aposentadoria no im de 1965. Por decisão do Conselho Universitário, continuamos o segundo ano com a sequência de todas as demais disciplinas nas quais tínhamos sido aprovados, fazendo, em 1966, Sociologia I e Sociologia II, ministradas pelo professor Evaristo de Moraes Filho, Catedrático da Faculdade Nacional de Direito e Livre Docente da FNFi. Vivemos a partir de então todas as transformações advindas do fechamento da FNFi, dando surgimento a oito Institutos, entre eles o IFCS – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, o mais castigado pelas cassações do AI5 (1968) e as perseguições políticas até 1981, com o Reingresso dos Professores Cassados. Nesse período vivemos os horrores do fechamento dos restaurantes Calabouço (1968) com o assassinato do estudante Edson Luís, em 1968 e a maior manifestação que a Ditadura viveu – Marcha dos Cem Mil, as Guerrilhas e, posteriormente, a privatização de todos os Restaurantes Universitários.

O universo da Fisioterapia atendeu, não só à necessidade de profissionalização
o mais rápido possível, como ao anseio de autonomia de vida, a coisa mais desejada
desde a infância no sertão, quando eu era a única filha, única sobrinha, neta e bisneta,
porque só nascia homem na família, todos eles me vigiando cada passo, e dizendo como
me vestir, com quem falar, e até o que eu deveria ser na vida. A turma de fisioterapeutas
e terapeutas ocupacionais, nossos mestres ou colegas de estudo, abriram o panorama
do mundo que eu poderia conhecer, tanto da geografia do Rio de Janeiro, quanto das
atividades culturais que encontraria, se ampliasse o mundo em que vivia – a zona sul do
Rio de Janeiro, notadamente Copacabana, Ipanema e Leblon, onde viviam familiares que
nos receberam e ajudaram com muito empenho.

4. Além de uma das maiores intelectuais do Brasil e, grande pesquisadora do mundo religioso nordestino, foi também uma mulher que não ficou presa às teias acadêmicas, militando em sindicatos, com intensa atuação política na defesa da educação pública etc., fale-nos um pouco sobre esta trajetória.

LB: Minha experiência de vida estudantil em Maceió foi muito rica, porque as colegas do Instituto de Educação, desde o exame de admissão (1954), constituímos uma turma muito atenta e atuante, discutindo todas as ocorrências do período, fossem políticas, artísticas ou qualquer problema social que atingia a Maceió de nosso tempo. Moradoras nos mais diferentes bairros da cidade, transformávamos em debates de nosso intitulado “Clube da Tesoura”, qualquer acontecimento trazido pelas estudantes, sempre em reuniões extensas e animadas. Tudo era debatido e todas tínhamos que nos posicionar a favor ou contra e porque, de cada julgamento. Só havia marcação de provas para as parciais de junho, novembro e o exame final em dezembro, para quem não atingia aprovação nessas 3 provas oficiais de meio e fim de ano. Já as provas mensais eram feitas de surpresa, da mesma forma que a presença em sala de aula não era obrigatória, só
importando a soma final de todas as provas. Se alguém fosse reprovada mais de uma vez, era jubilada do Colégio, não tendo uma terceira chance de permanecer na Escola Pública. Partilhávamos todos os acontecimentos da Escola, sendo o Ginasial constituído de várias turmas, até à quarta série, quando a grande maioria escolhia o Curso Pedagógico, porque em 3 anos a aluna estava habilitada a fazer concurso para as escolas primárias do Estado, logo se profissionalizando.

Um pequeno número de concluintes do Ginasial optava pelo Curso Científico, preparatório para o vestibular de faculdades, o que significaria investimento em mais 4, 5 ou 6 anos de estudo, para ter diploma universitário, só possível para quem tivesse família mantendo este sonho profissional de suas filhas. Mas a amizade com as colegas mais pobres continuava pelos seguintes 3 anos de convivência no mesmo edifício onde funcionavam várias turmas do pedagógico, o ginasial e uma pequena turma do científico, partilhando brincadeiras e problemas da juventude amiga desde o exame de admissão.

Em 1957 o Instituto de Educação foi fechado no centro da cidade, transferido
para um novo e muito maior edifício construído no Farol, já perto do Quartel do 20º Batalhão do Exército, numa região muito distante do centro de Maceió, gerando um problema muito sério, logo denunciado pelas colegas mais pobres, residentes em bairros da periferia, tendo suas famílias, de se cotizarem para pagar passagem até o centro da cidade, ida e volta. Com a transferência do Instituto de Educação, não era possível a essas famílias pagarem segundas passagens. Constatando essa realidade, que significava a desistência de serem professoras primárias, dessas companheiras de exame de admissão, iniciamos a luta quando a turma do 1º Científico em 1958 capitaneou uma greve geral, abandonamos todas as salas de aula do Ginasial, Pedagógico e Científico, e descemos a
ladeira do Farol cantando, invadimos a rua do Comércio e a Rádio Progresso de Alagoas, todas nós fardadas de azul e branco, cantando o hino de Alagoas. Espantados, os funcionários da Rádio tiveram de entregar os microfones à turma rebelada. Na mesma hora todos os colégios públicos masculinos e femininos foram convocados a aderirem à greve e invadirmos o Palácio dos Martírios, residência do Governador do Estado, com a população surpresa acompanhando a juventude barulhenta até à chegada ao Palácio. Espantado, o Governador Muniz Falcão inicia o diálogo, ouvindo a reivindicação da juventude: “Meia passagem para todos os estudantes de Escola Pública de Maceió” e “Entrada gratuita em todos os cinemas de Maceió, no DIA DOS ESTUDANTES”! Até hoje a “meia passagem existe para todos os alunos de Escola Pública de Maceió”!

No Rio de Janeiro, a estudantada da FNFi lutava pela manutenção dos restaurantes da Universidade do Brasil, e do Calabouço, para alimentar os secundaristas mais pobres que vinham de todos os Estados do Brasil, para tentarem alcançar, além do secundário, estudos nas Universidades do Rio de Janeiro. A luta pela educação pública e gratuita constituiu, em toda minha vida, uma das principais faces da formação intelectual e moral. Como professora da UFRJ, em 1979 participei da fundação da ADUFRJ, e em 1981, da criação da Associação Nacional de Docentes do Ensino Superior/ANDES tendo sido, já como professora da UERJ em 1988, tesoureira do Congresso Nacional que transformou a ANDES em ANDES-SN, quando ainda setores da sociedade tentavam impedir funcionários públicos de se reunirem em Sindicatos.

5. Na década de 1970, a senhora deu início a sua pesquisa de mestrado sobre o movimento religioso do Juazeiro. Neste período, outro pesquisador, o brasilianista Ralf Della Cava, publicava sua tese de doutorado utilizando um vasto acervo de fontes colhidas no Juazeiro, Crato, Fortaleza. Como foi o seu acesso a estas fontes? Quais as dificuldades em desenvolver sua pesquisa?

LB: Chegando ao Juazeiro em janeiro de 1972 para o primeiro survey, vindo de ônibus de uma primeira viagem ao Norte do país (Serra do Navio – Amapá), Belém do Pará, Maranhão e Piauí, andei pelo Juazeiro, encontrando, bem no centro da cidade, a Tipografia do cordelista José Bernardo da Silva (sua esposa viúva dona Ana), o túmulo do Padre Cícero na Igreja do Socorro, e a densa movimentação de romeiros na visita à casa que pertencera ao Padre Cícero na rua São José, me deslumbrando com o Horto, a estátua do Santo e as cantorias de jovens e crianças cantando benditos com a história do Santo do Nordeste. Em janeiro de 1973 voltei ao Juazeiro, iniciando o conhecimento do Ceará por Fortaleza, aonde fui em busca do Padre Azarias Sobreira, já conhecido no Rio de Janeiro por seu livro “O Patriarca do Juazeiro”, com prefácio de Austregésilo de Athayde – famosíssimo Presidente da Academia Brasileira de Letras e seu companheiro de juventude no Seminário da Prainha.

O Padre Azarias Sobreira me recebeu com a melhor boa vontade, quando lhe falei de seu primo Padre José Sobreira, capelão da Igreja de São Francisco – no Largo de São Francisco, onde se situa o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, centro do Rio de Janeiro, onde trabalhei como pesquisadora e professora de Antropologia, de 1970 a 1995. Padre Azarias me abriu todas as portas de intelectuais e instituições do Ceará, me apresentando, inclusive, ao Bispo que lhe autorizara iniciar a abertura do debate com a Igreja Católica, sobre a santidade do Padre Cícero, Dom José de Medeiros Delgado. Cuidando até de minha hospedagem em Fortaleza e no Juazeiro, me apresentou ao juazeirense Renato Casimiro, recomendando-lhe que me apresentasse a amigos e familiares que me levassem até ao Vigário de Juazeiro, Padre Murilo de Sá Barreto. Este, citando o pesquisador norte-americano Ralph Della Cava e sua obra, me declarou “não haver necessidade de pesquisas sobre o tema”, além de que, pesquisadores brasileiros gostavam mais de fama do que mesmo de aprofundar trabalhos como o desenvolvido no livro Milagre em Joaseiro.

Diante dessa atitude e da recusa dos Salesianos em me dar acesso ao Arquivo do Padre Cícero, totalmente ranqueado ao pesquisador norte-americano, em 1966, recorrendo à minha vida no sertão de Alagoas, escrevi a antigos amigos de minha família – os romeiros do Padre Cícero no município de Santana do Ipanema, como a família Romualdo, que participara ativamente da defesa do Juazeiro no cerco organizado pelo interventor do Ceará, Franco Rabelo. O Beato Romualdo viveu no Horto perto do Padre Cícero, enquanto muitos de seus familiares fugiram para o sertão de Alagoas, quando das perseguições de Floro Bartolomeu a muitos beatos.

No Juazeiro vivia a beata Luzia Romualdo, artesã de malas, morando na rua Padre Cícero, onde se arranchava toda a parentada em diferentes romarias, enquanto ela viveu. Insistindo no direito de ter acesso à documentação existente no Juazeiro, recorri à beata Luzia Romualdo, que me fez mergulhar no âmago do escondido “mundo beato”, desconhecido da juventude com quem convivia naquele período, penetrando em lugares unca alcançados pelos intelectuais de Juazeiro, como o Santo Sepulcro, encravado na catinga, onde o povo beato se reunia para beber a água da Fonte Milagrosa que nunca secara enquanto a cidade se transformava no centro comercial mais importante do sertão do Ceará, pelas romarias ao “Santo do Juazeiro”. Tive muito apoio da intelectual Dona Amália Xavier de Oliveira, de seu Luiz Casimiro e sua esposa, dona Dora, e me aproximei muito da família do poeta José Bernardo (seguidor do Beato Zé Lourenço), através de quem fiz profunda amizade com seu Eleutério, filho do Beato Severino - organizador da defesa do Caldeirão, que permitiu a sobrevivência do Beato, fugido para a Fazenda União, em Pernambuco.

Seu Eleutério me levava para conhecer remanescentes do Caldeirão, além de me suprir com extensos depoimentos sobre as perseguições sofridas por todos os sobreviventes, a começar por ele próprio, que levou cinco anos me pesquisando, até começar a me mostrar o significado de ser BEATO, e o que fora, como me dizia De Jesus, filha de Zé Bernardo: “Aquilo era o céu”, com todo mundo trabalhando, rezando, na maior felicidade, enquanto o Beato ensinava o bom procedimento, e que nada pertencia a ele nem a ninguém, porque esses eram os conselhos do Padre Cícero”.

Estava definida a escolha da prioridade de minhas pesquisas: Entender o imaginário propulsor daquele mundo que me chegara desde a infância no sertão de Alagoas, com uma bisavó que viveu mais de 100 anos, educando todos os seus descendentes, nos “ensinamentos aprendidos do Padre Mestre Ibiapina - seu padrinho, que a crismara quando ela tinha 14 anos, em Pernambuco”. Desde aquele tempo, até hoje pesquiso teorias que melhor expliquem a construção daquele Mundo Beato, tão perseguido pela Igreja e pelo Estado.

Mesmo com acesso a documentos em diferentes momentos e locais deste Brasil, consegui apenas construir um debate teórico sobre concepções de catolicismo, me afastando cada vez mais de interpretações como as clássicas teorias raciais que exploram a mestiçagem como degeneração produtora de fanatismo e banditismo, teorias classificatórias dos seguidores de Ibiapina como “messiânicos”, “teoria da libertação”, buscando entender o papel do “mundo beato” nas práticas de vida de tantos sertanejos, nos últimos dois séculos de História do Brasil.

6. Saindo do campo de pesquisa e falando um pouco sobre o contexto político e social brasileiro, como a senhora analisa o atual momento que estamos vivendo?

LB:
Falta um Ibiapina neste mundo entregue à ganância por riqueza e poder, mesmo que às custas de milhões de seres humanos morrendo de fome, com mulheres e crianças sendo vendidas a Psicopatas que as revendem para a prostituição ou lucro de revenda de órgãos humanos, com a maior capacidade de escravização da humanidade pelo uso “legalizado” de todas as drogas responsáveis pela destruição da psiquê humana. Trabalhei vinte anos com a Dra. Nise Magalhães da Silveira e, após sua morte, por seis anos dirigi a Casa das Palmeiras, instituição filantrópica por ela criada, destinada ao tratamento de portadores de problemas psíquicos, vivendo fora de hospícios, como medida de apoio às famílias desses clientes, na adaptação social.

A grande psiquiatra alagoana, criadora de oficinas de terapia ocupacional e do Museu do Inconsciente no Hospital Pedro II – Engenho de Dentro/Rio de Janeiro, sempre afirmou: “O equilíbrio mais tênue da natureza, é a psiquê humana. Pouquíssimas pessoas resistem ao ataque das drogas”. Por isso, não recomendava sequer comprimidos para tratamento de dor de cabeça ou qualquer outra crise atravessada por seus clientes, sempre atendidos nas oficinas de arte pictórica, musical etc., em busca de elementos catalisadores, como o afeto e a liberdade criativa, sendo considerados importantíssimas as relações humanas com animais de estimação, como gatos e cachorros, para ela coterapeutas na reconstrução do equilíbrio psíquico. Hoje, a farmacologia ocidental é dependente das drogas, num processo viciante envolvendo milhões de pessoas, muitas delas até com crises perigosas, como os enlouquecidos atiradores que disparam contra multidões, sem que seus motivos sejam revelados.


7. A senhora se considera uma intelectual marxista? Fale-nos sobre suas influências intelectuais, de antes e de hoje.

LB:
Nunca me atribuí um rótulo teórico-ideológico em minhas pesquisas ou análises de fenômenos sociais, sempre numa perspectiva etnológica de busca pela concretude do vivido pelos grupos humanos, em busca de explicações sobre as singularidades de suas crenças e ações materiais e imateriais. Tendo vivido um mundo de crenças religiosas como ethos de um povo, antes de ler teóricos como Marx, Weber etc., aprendi uma religião - a dos beatos sertanejos, crença e regras do bem viver pertinentes à própria caracterização do “homem de bem”, filho de Deus, portanto, irmão de quem seguisse as regras inspiradas na bondade divina. Estudei Marx já na Universidade, porque antes minha principal leitura era a literatura, e os livros recomendados nas diferentes disciplinas da formação primária e secundária.

Quando começamos a nos interessar pela política, na adolescência, acompanhava as discussões onde a palavra “comunista” aparecia como vilipêndio ou heroísmo, dependendo de julgamentos feitos “uns contra os outros”, o que sempre me desagradou, porque tinha de ficar pedindo informações sobre acusadores e acusados. Pesquisando a História das Religiões, encontrava tanta contradição em todas elas, que me detive muitos anos, comparando suas assertivas e profundas contradições entre o “dito e o vivido”, sempre buscando o nível de empatia com o sofrimento alheio, a solidariedade, capacidade de trabalho e “desapego” à riqueza e ao poder.

Estudando Marx, Engels, os organizadores das primeiras Associações Mutualistas de Trabalhadores, Anarquistas, Iluministas e Intelectuais de diferentes épocas da humanidade, sentia tanta atração por lguns deles, como por santos como São Francisco de Assis (desprezo pela vaidade das coisas desse mundo) e São Bento (orare labore), os dois principais princípios do mundo beato, segundo as regras das Casas de Caridade criadas pelo Padre Mestre Ibiapina e seus seguidores, a partir de meados do século XIX, pelos sertões do Nordeste. Passando pelo existencialismo e diferentes versões do marxismo, encontrei no maior estudioso de religião do século XX, o católico da Sardenha (Itália) Antônio Gramsci, a concepção de seu povo camponês como os sertanejos de Ibiapina, fundindo a mpatia do cristianismo, representado por São Bento (oração e trabalho), com a situação social da região mais pobre da Itália. Gramsci reproduz de tal forma a religiosidade de seu povo, que sua imagem era guardada nos santuários camponeses, junto com santos como Santo Antão, protetor da mais pobre população do país.

Com a autonomia de sua inteligência e lealdade a seu povo, Gramsci enfrenta todos os debates do partido que ajudara a fundar – Partido Comunista Italiano, nos debates da Internacional Comunista, apontando os erros de construção de um novo regime político, pela interpretação equivocada do sistema Stalinista dominante em seu tempo. Criticava por exemplo, a interpretação do lugar da religião (ideologia - superestrutura), face à superioridade da economia (infraestrutura). Representava com tal fidelidade as crenças de seu povo, que conseguiu, conquistando também a classe operária urbana, construir o maior Partido Comunista da Europa, mostrando ser possível fundir as crenças de um povo, com a luta pela igualdade de direitos para os filhos de Deus, o que determinaria o fim da fome, das guerras e da riqueza de poucos gananciosos, submetendo milhões de seres humanos à criminalidade dos poderosos.

8. Que mensagem deixa aos jovens pesquisadores que estão adentrando nos estudos sobre o universo do sertão?

LB: Desde a década de 70 do século passado, fui informada por um grande cientista do Centro Brasileiro de Pesquisa Física que, já naquele tempo, havia no mundo oito cientistas se especializando na “Física da Antimatéria”, o que significa um avanço da ciência em busca de um conhecimento mais profundo da capacidade humana de chegar aos mistérios da natureza, não mais como busca de enriquecimento, mas como o fim da miséria de parte da humanidade dominada pela ambição de poder e riqueza, pela qual alguns tem destruído até nosso planeta, e já se preparando para, fracassada sua vontade e crença em ser DEUS, fugirem para outras galáxias.

Precisamos de novas gerações de seres possuidores da empatia necessária ao estabelecimento de regras do bem viver, disseminadas nos sertões nordestinos desde meados do século XIX, que devem dar fim à “miséria civilizatória” responsável pela Guerra de Canudos e toda a desgraça mundial em que vivemos, resgatando todo o bem advindo das pregações e atos civilizatórios das 22 Casas de Caridade do mundo beato.

Rio de Janeiro, 2 de fevereiro de 2022

Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros – Antropóloga

As autoras

Maria de Fátima de Morais Pinho
Universidade Regional do Cariri
Viviane Prado Bezerra
Universidade Estadual Vale do Acaraú

Publicado em:
SERTÃO HISTÓRIA – Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos em História Social e Ambiente –
NEHSA, Universidade Regional do Cariri | V.1., N.1., jan.- jun. 2022.
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