TORNA-TE QUEM TU ÉS NO DAIMON QUE HÁ EM TI

Contos

Por Marcello Ricardo Almeida

Uma moeda foi arremessada. Então, disse Santo Antão, o mês de junho chegou outra vez a Santana. O São João em breve começará. Na feira, o cheiro do bolo de fubá, havia o marrom dourado no acarajé vindo lá de iorubá, o dendê e o caruru, a canjica é mungunzá. As ruas enfeitam-se com desenhos de Volpi. E para além dos dogmas se foi a festa cantada rua afora:
Vou vestir meu abadá, 
Vou comer meu abará 
Com café e acarajé. 
Vou dançar só afoxé, 
Vou tocar só agogô, 
Vou beber todo aluá, 
Viajar lá pra Angola. 
Vou fazer o meu angu. 
Axé a todos vocês. 
Azoeira vai começar; 
A bagunça já começou. 
Balança os balangandãs
No canto do bamberê.
Deixa o banzo de banda,
Deixa o banzé ao batuque
Sob a sombra do baobá. 
Ouça o drinlim do berimbau. 
Sai pra lá, borocoxô!
Conta os búzios na caçamba. 
É hora de cafua,
É hora do cafundó, 
É hora do cafuné. 
Deita na rede a calunga.
Cheia de catimba a catita.
Batem os tambores caxumba 
No ritmo de caxangá, 
E espanta cazumbi
Com caxixi, com caxixi.
O sol chegou à cubata.
Rói a cuíca na lata.
Orixá aceite ebó.
Eparrei, Iansã, eparrei!
Eparrei, Erê, eparrei!
Se fulo não faz fubá,
Peça paz à Ialorixá, 
Peça alegria à Ibejis,
Adivinhação à Ifá.
Tá na hora de lelê.
Deixe um pouco pra lelé.
Liberte-se desse lubambo.
Venha ao lundu, maculelê.
Saia desse mafuá. 
Toque forte a marimba.
Respeite mojubá.
Nanã vem lhe buscar.
Peça intervenção a Obatalá.
Não havia mais nenhum filtro; o pano caiu; a cortina, no teatro, foi aberta. Era mundo quântico, este microscópico lugar em cujas ruas a festa de Santana tomava as casas movimentadas por vento e as madeiras pintadas, bandeirolas nos cordéis. Asioteia e Píndaro estavam procurando sentido para as suas vidas.
Vamos misturar as estações? ela lhe sugeriu.
Vamos! ele concordou com um maligno riso no rosto marcado de sol.
E o que era opaco tornou-se transparente. Como se o mundo entortasse a ponto de quebrar, fosse até o limite de alcançar o ponto binário. E, da noite ao dia, mergulhasse entre o frio e o calor, o gelo e o fogo permanentes. Não mais se divisava nenhuma faixa doutra cor, tudo cinza, como se fosse possível tudo o que se conhece ser desconhecido.
A cosmologia sofreu mudanças ou mostrava sinais de alcançar finalmente o ponto estacionário? ele lhe perguntou. Vou marcar mais um fracasso em minha lista; só não sei se ainda há espaço.
Às vezes, ela disse e ele prestou atenção às suas palavras, a Terra esfria e perde as cores do balaio de colheres coloridas, e resfria, quase adoece, tosse, cansa, demonstra exaustão, ameaça. A milhões de quilômetros, a Terra vive do Sol; casados, dormem em quartos separados; só se aproximam na procriação. 
Oxigênio e CO2 gestaram ânime, ele disse, nesta terra de Santana.
Segue o mundo em sua elíptica trajetória. Ora a Terra distancia-se, ora se aproxima do Sol. Tudo é indiferente, no universo! insistiu Asioteia a Píndaro com o sorriso fluorescente. 
Píndaro adaptou-se rapidamente à cultura de Santana; o ser sertanejo lhe falou aos olhos, falou em versos decassílabos, tamborilou em tamborete as notas do baião, com o ritmo frenético da embolada. Com o fenômeno afélio, desafiou o destino com emboladas, disse um repente ou dois, jogou na poeira o gibão, a perneira e o facão, tirou o chapéu de couro de jumento com reverência diante da imagem de Frei Damião.
Asioteia, filha de Temistocleia e de pai desconhecido, neta de D. Xântipe, nascida e criada em Santana, no sertão, foi morar em Maceió. Temistocleia, mãe de Asioteia, fugiu da cidade com um homem casado, o padeiro Eufemismo, que se tornou empresário e coronel ao chegar à capital alagoana. O mesmo destino não socorreu a irmã de Temistocleia, Cleobulina, que perdeu todo o daimon com o qual veio ao mundo e desaprendeu a tornar-se ela mesma.
Temistocleia e o Cel. Eufemismo, grudaram os caminhos, foram morrer na Europa. Asioteia retornou a Santana, casada com Píndaro, que o conheceu em um país estrangeiro. Falou de Santana, da poesia santanense, do lirismo de suas pedras, terras secas, espinhos-de-rosetas, e Píndaro ficou mais apaixonado por Santana se comparada a paixão que nutria por Asioteia, como se fosse possível Romeu ser menos apaixonado por Julieta, e ambos acabaram de mala e cuia, como dizia a avó de Asioteia, a feirante D. Xântipe, na cidade do seminário das terras dos marechais cujo lema sintetizava à época que quem não selava era selado e, uma vez selado, por todos cavalgados.
Asioteia viu e gostou. Santana não era mais a mesma do tempo de sua avó. As estradas asfaltadas, as ruas asfaltadas, as fazendas asfaltadas, Santana mais quente, um lugar bom para o turismo do calor. O seu tio, irmão de sua mãe, o Cel. Bé do Algodão, foi prefeito, foi prefeito o seu filho, o seu neto também foi, a bisneta agora era e já era preparada a tetraneta. Asioteia estava em casa outra vez. Píndaro fez poemas a Santana, canta as suas ruas, o povo e os festejos, amizades na região, impôs respeito no Estado com empréstimos estrangeiros, criou gado, fazendas, construiu hotéis com Asioteia, atraiu visitantes à cidade.
Santana fez aeroporto internacional, grandes avenidas, cresceu, superou Maceió, Salvador e Recife juntas. As casas de Santana rapidamente alcançaram os Dois Riachos e os Carneiros, chegaram às barbas de Major Isidoro, e viram de perto Olho D’Água das Flores, foram à Olivença, Senador Rui Palmeira, Poço das Trincheiras. Inflacionaram as escolas, mais universidades, mais laboratórios, mais indústria, mineração, invenções. Se antes havia inventos com arame, papelão e pólvora, falava-se em aventuras no espaço. Os empregos tantos que, ultimamente, se recepcionava os visitantes com propostas de trabalho. As águas do São Francisco, navegáveis, cortavam a cidade com a velocidade dos trens elétricos. Os produtos do mundo exótico vendidos nas feiras. Falavam-se muitas línguas, na cidade. O turismo do calor como a moeda mais cobiçada aos hotéis e aos guias.
O comércio inchou, atrofiou as vias aéreas. Vieram de terras distantes as amadas e os amantes. A cidade não dormia, as fábricas só trabalhavam. Igrejas expandiram-se com um fermento de potência invejável com a promoção das promessas de satisfações inesperáveis após a vida nesta terra, desde que os fiéis não desacatassem as petições dos líderes da fé. 
Os aviões tornaram-se comuns. Os sotaques misturaram-se; não se sabia quem de fato era do lugar. Já informatizados os povos, as cirurgias e o mercado, as juras de amor e os sepultamentos, que não era incomum comunicar-se por imagens holográficas. As guerras findas, mesmo com o amor amordaçado numa janela só postigo. 
Os sítios, em Santana, loteados. As serras aplainadas, os serrotes não mais existiam. As pedreiras exploradas até o sabugo.
Rapidamente, na classificação imobiliária, o município de Santana passou a figurar na categoria do metro mais caro. Os matutos tornaram-se ricos e foram viver nas paisagens de Maragogi de águas translúcidas e orla que se perdia na imensidão colorida sob o sol de ouro, onde abriram resorts de 1000 quartos. 
Não tinha um ano completo de vida, quando Asioteia foi beijada na boca pelas três irmãs cegas do Beco da Morte. Ela andava no braço do tio, que tentava deixá-la em pé nos gradis das velhas que falavam com os mortos. O trio veio voando na aparência de mariposas azuis e pousaram nas bochechas rosadas de Asioteia. D. Xântipe, avó de Asioteia, ao ouvir da boca de seu filho, Bé, sobre os ósculos furtados por Clóvis, Astrópis e Láquesis dos lábios da netinha, D. Xântipe pediu ao filho manter este segredo da filha Temistocleia, a ciumenta mãe de Asioteia, pois se ela soubesse arrancaria a língua das moradoras do Beco da Morte. D. Xântipe conhecia a profecia de que, como o espírito do tempo decidia os malefícios e os benefícios, crianças de meses beijadas pelas cegas do destino recebiam o selo da sorte.
Dia a dia, em Santana, Asioteia amontoa fortuna com turistas que chegam de todas as partes. Ela explora a seca e o calor, a terra semiárida, as pedras e os espinhos-de-roseta. Vende roupas típicas sertanejas, mandacarus, e anuncia a chegada do verão como o maior evento das Américas. E, pelas emissoras afiliadas a CPR (Calada Por Resposta) nos cinco continentes, os noticiários comunicam a beleza do sertão por ser tão iluminada.
A sorte favorecia Asioteia, não importava a sua atividade. Ela pulava de cabeça em qualquer abismo e sequer saía arranhada.
Os exóticos cartões-postais em ambientes nevados perderam o glamour com a mulher de Píncaros, em Santana. Enquanto outros lugares exploravam o turismo gelado, em Santana, Asioteia Glamor pulava de corpo e alma no turismo tórrido! disse a neta de D. Xântipe na primeira entrevista, na CPR.
Fosse Bariloche ou fosse o Valle Nevado, de Zermatt a Whistler, citasse Rovaniemi ou Innsbrück, as câmeras estavam apontadas às pedras, às terras secas, aos espinhos-de-roseta. Quem queria os Alpes, as Montanhas Rochosas, se tinha a Serra do Almeida, se tinha a estiagem prolongada, os leitos secos dos rios, se tinha a poeira e o calor, o sol e o mormaço! disse Asioteia aos repórteres estrangeiros. Marrocos tem a Cordilheira do Atlas, e a Islândia, Reykjavik, e daí, Santana tem as partes baixas úmidas e quentes, a terra seca, pedras, espinhos-de-roseta. 
Vivíamos, aqui no sertão, senhores repórteres, no mundo do hedonismo perpétuo; era só fechar os olhos e ouvir o dedilhar da viola. Como se Asioteia e Píndaro tivessem conseguido ressuscitar as palavras de Epicuro, torná-las mais reais do que a realidade. Nada mais havia senão o prazer e o comodismo. Eles, dizia-se nas praças das cidades alagoanas, conseguiam transformar tudo o que tocasse em prazer absoluto. Quem não queria sentir? A vida era a sessão dentro de uma sucessão de acúmulos de riquezas que não seriam usadas. Mesmo que o preço fosse perder a percepção das cores? O hedonismo prometia compensar todas as pedras. 
O prazer pelo prazer e para o prazer! ela adaptou esta frase. Tudo por ele e nada acima dele, desde que seja prazeroso, pois nada que não proporcione prazer nos interessa.
O velho não tinha a mesma força do novo.
Mas todo o mundo sabia.
E faz questão de não enxergar a presença da realidade.
Ó povo abespinhado! disse, enquanto acariciava um filhote de cãochorro, depois o soltou e foi atender aos repórteres estrangeiros com os seus gestos de enérgicos braços e inaudíveis palavras inerentes ao ser humano e, sem demora, se ouviu o estouro. Era o povo a meter-se na embocadura da tromboneta.
A notória tradição musical santanense vinha de retretas, de fanfarras e de orquestras. Os músicos de Santana sabiam que ensinar ao falante desta língua chamada música a escrever notas, na partitura, parecia tão ilógico, antinatural.
Asioteia Glamor via com olhos de ver longe, e fazia o marido Píndaro ver. Eles viam, naquela manhã de sábado, as orações subordinadas substantivas objetivas diretas chegarem aos aeroportos de Santana em aviões fretados.
Você viu, Asioteia?
Vi!
Por que não trocava a fortuna por moedas de pouca monta?
Na verdade, tudo isso queria dizer o quê? 
Isso o que via? Oração subordinada substantiva objetiva direta.
E o que seria?
O quê?
A oração subordinada substantiva objetiva direta.
É a verba que faz o verbo na oração principal.
Isso tudo é por causa do vértice?
Vértice?! demonstrou Asioteia não ter entendido o vértice de Píndaro.
Nada, amore mio! disse. Só movimento giratório alucinado que chamamos de Gramática.
Vou contar-lhe uma história! disse a ele. E cantou:
Parã-rã, parã-rã, parã-rã/Bucho de Lama, Bucho de Lama me socorra, me socorra, Bucho de Lama/parã-rã/Não me faça estudar/parã-rã//Bucho de Lama me socorra, me socorra, por favor, me socorra, me socorra/parã-rã/A prova já vai começar/parã-rã. Assim, assim, talvez não a inteligência que conhecemos, mas outra, como outra vida diferente, outro tempo, outra época de existência. Se uma pessoa vive 100 anos, um baobá vive 200 anos? Não. Baobá vive mil anos e atinge 30 metros de altura. Aqui mesmo em Santana, a figueira vive anos. E no quintal, o gato vive livremente até 16 anos; a vaca 22; o pombo seis; burro 30; e o cachorro 13; coruja-buraqueira 15. Aprendi com o marceneiro Pitágoras. Todo dia tinha uma manhã; depois da manhã, uma tarde; fim da tarde, uma noite. E, no dia seguinte, outra manhã, outra tarde, outra noite; no outro dia, a mesma coisa. Era infinito, enquanto a vida fosse vida. Pitágoras, pai de G., gestado e nascido no Vale do Açúcar-Pimenta-Essal, na cidade Barrigadear. G. chegou na Rua do Amor, 29, aquela rua onde o gafanhoto apaixonou-se pelas vastíssimas plantações, e o passarinho apaixonava-se pelo ninho da passarinha; a lavadeira apaixonava-se pelo sabão, beija-flor pela flor, vira-lata por cada lata e o pirilampo pelas lâmpadas. Na primavera, o caranguejo apaixonou-se pelo espelho, e as formigas apaixonaram-se pelo formigueiro. Vizinha à Rua do Amor, a Avenida do Poeta, onde as árvores de verdes copas recebiam os pássaros e os pássaros bicavam o cabelo afogueado das vizinhas, e no cabelo delas o poeta construía escada e, de repente, de tão doce a paixão, quem se apaixonou se acabou no doce. A flor do beija-flor despetalou e a lâmpada do pirilampo explodiu, o espelho do caranguejo quebrado, milharal do gafanhoto definhou; o ninho do passarinho ficou feio, e o formigueiro foi atacado pelo tamanduá; a lata do vira-lata se foi no caminhão, e o sabão da lavadeira se acabou. E essa tevê, G., desligasse; íamos sair. Ia aonde? Em lojas de R$ 1,99. Oba! Viesse. Sim, Titi. Comprarei carrinhos. Passearei? Sim. Aleluia! Posso levar a bicicleta-mole? Íamos de ônibus, G. Nele embarcaram Titi e G. O ônibus elétrico passou por ruas sem fim; o ônibus passou por casas fechadas, veloz por árvores roxas, prédios azuis, jardins cinzas, e nas os velhos cochilavam em bancos de madeira. As janelas sorridentes viam ruas cheias. O ônibus subiu e desceu ladeiras. Olhos de G. brilhavam. Manhã de sol resplandeceu nas vidraças do ônibus. Passou uma praça, logo chegou à outra. O ônibus ziguezagueava. Naquela praça, uma criança parada observava o seu pai, agachado, trabalhando; assim trabalhava o pai da criança como num samba pra lá e pra cá. Vou vestir meu abadá, vou comer meu abará com café e acarajé. Vou dançar só afoxé, vou tocar só agogô, vou beber todo aluá, viajar lá pra Angola. Vou fazer o meu angu. Axé a todos vocês. Azoeira vai começar; a bagunça já começou. Balança os balangandãs no canto do bamberê. Deixa o banzo de banda, deixa o banzé ao batuque sob a sombra do baobá. Ouça o drinlim do berimbau. Sai pra lá, borocoxô! Conta os búzios na caçamba. É hora de cafua, é hora do cafundó, hora do cafuné. Deita na rede a calunga. Cheia de catimba a catita. Batem os tambores caxumba no ritmo de caxangá, e espanta cazumbi com caxixi, com caxixi. O sol chegou à cubata. Rói a cuíca na lata. Orixá aceite ebó. Eparrei, Iansã, eparrei! Eparrei, Erê, eparrei! Se fulo não faz fubá, Peça paz à Ialorixá, Peça alegria à Ibejis, Adivinhação à Ifá. Tá na hora de lelê. Deixe um pouco pra lelé. Liberte-se desse lubambo. Venha ao lundu, maculelê. Saia desse mafuá. Toque forte a marimba. Respeite mojubá. Nanã vem lhe buscar. Peça intervenção a Obatalá. O pai era um engraxate que fazia correr a escova sobre o sapato até ele brilhar. Pra lá e pra cá. A graxa no sapato, a flanela no sapato. Pra lá e pra cá. E os sapatos eram espelhos, falava o pai engraxate; os sapatos faziam as ruas, os sapatos acordavam o mundo. Os sapatos subiam ladeiras, os sapatos iam à chuva, os sapatos caíam no barro, caíam na lama, voltavam os sapatos sujos. Que seriam desses pés se não fossem os sapatos? Que seria do amor se não fossem as bocas, os braços, as pernas e as praças? Que seria do fuxico se não fossem os boatos? Idosos em bancos com os seus sorvetes molhados de passas ao rum. Diante das lojas, o ruge-ruge simpático, às compras de sábado. Chegaram G. e Titi ao comércio de Barrigadear. Ali em Barrigadear era recorde de lojas R$ 1,99. Carros em Barrigadear tinham pressa de ônibus. As fábricas, os museus, as bicicletas, os trabalhadores têxteis iguais aos operários têxteis em Santana. Ali, parados por alguns minutos, G. e Titi. G. amava conversar com Titi, nas ruas de Barrigadear. Chovia água de coco-da-baía à beira do rio. Assim eram as crianças: sempre nas satisfações e prazeres imediatos diante de um bom caldo de cana, na XV, ao voltar da Escolinha SESC. Na cacunda, G. ao sol pôr encontrava os restos do dia na Ponta. Um encontro hedonista entre G. e o sapateiro Titi, pai de G. Ao fim do sábado, com caldo de cana e água de coco-da-baía, eles andavam na XV, nas calçadas amplas de vida, anchos, G. e Titi. Neste estado de prazer e graça. Outra vez, na cacunda, G. conseguia ser grande mesmo criança. Sobre os ombros do pai, G. enxergava mais longe e vencia a vida mais fácil. Ontem era apenas sexta-feira. Hoje? Sábado de sol. Fonfonfom – ouvia-se – fonfonfom: estes fonfonfons nas ruas em Barrigadear fom – carros iam e vinham – fom! eram os carros trafegando, eram pneus girando na poesia dos poetas de cordel. Sai da frente, ciclista, com cara de neoparnasianista, e pernas de neossimbolista trafegando nas ruas de Barrigadear. Fom – carros iam e vinham – fom! Bem assim. G. dizia, com a sua caneta doutrinando a carta de tão-somente ser a arte pela arte trafegando nas ruas de Barrigadear. Fom – carros iam e vinham – fom! Em meio às estradas, os torvelinhos. Dialogavam com as ruas insinuantes, com becos cheios de histórias. Balofas ruas, se comparadas aos que passavam; eram passantes apressados em ruas estreitas, magras de fome. As ruas em Barrigadear acordavam com fome de gente. Formavam-se redemoinhos de poeira. Sábado de sol e céu azul, intensamente azul. Redemoinho num giro rápido de vento em Barrigadear. Veio um levante ligeiro. Passou. Enorme de poeira. Rápido, rápido o vento moveu-se em espiral; giraram ruas, girou a cidade, girou Barrigadear; Barrigadear tonta. O vento soprou, e o vento levantou-se. Rapadura batida! gritavam e regritavam as crianças, na XV. O turbilhão, o assovio. O clima mudou ligeiro. A terra resfriando-se. Como era insistente o vento em Barrigadear. Assobiava malvado, raivoso. As alamedas faziam deitar as figueiras. Gárrulas, nos arranha-céus, dormiam. Chove-não-molha, um deus-nos-acuda. Em avenidas estreitas, desconectas e repetitivas, o vento do sábado corria levantando saias. Ciscava no sobe-desce: brincava um dom-quixote, brincava sancho-pança naquele imenso céu. Febre nas ruas de vaga-lumes. Vespas a cruzavam em meio aos carros no gargalo do trânsito. Aos poucos parava o tráfego para uma multidão ante o semáforo e aguardava um caleidoscópio de trânsito imenso. Entre os automóveis, o vento, mendigos famintos, atônitos: Me dê! Me dê moeda. Gente anônima enclausurada, e carros em pânico, e malabares de rostos surpresos, anônimos e trêmulos, ofereciam pirulitos às mãos cheias, outros mostravam as faixas nas sinaleiras, o vento em cemitérios. Nos vrunsvrunsvrus, os ônibus elétricos amarelos, vermelhos cara-brava, ônibus azuis, motos zumbindo vrunsvrunsvrus, vrunsvrunsvrus. Sinaleira fechada. Ciclistas iam e passavam no mesmo ritmo da bossa nova; seguiam os burros-sem-rabo, mas a carroça não ia além dos carroceiros. Formavam-se de repente filas formiguilométricas e as ruas estavam outra vez cheias; os carros quase não se mexiam e o povo reclamava, desesperava-se a vida; o céu infinito fitava-os de longe. E roncavam aflitos os caminhões de lixo sem respeitar o patrão nem a patroa, os caminhões dando pitus. Mas em uma parte da rua, com sono, a sinaleira ia do vermelho ao verde. Podíamos atravessar agora, Titi? Não, G.; esperasse o guarda de trânsito autorizar. O guarda com apito: Fio! fiiiio! Pedia o guarda com estridente apito. Fio! fiiiiiiiiiiiiio! fio! fiiiiiio! fio! fiiiiiio! Ninguém parecia ouvir ninguém. E a rua cheia de poças d’água. Os gritos do guarda aflito a assobiar no apito: Fio! fiiiiiiiiiiiiiiiiiio! E o guarda de trânsito chorou, tropeçou e caiu com o estridente apito; e o guarda levantou-se, caiu: Fio! Fiiiiiiiiiiiio! O guarda de trânsito se desmanchou com o seu fio! fiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiio! Em um buraco d’água fio! fiiiiiio! Mas, de repente, o guarda devorava a manhã do sábado e, das tripas do guarda, tripas delgadas, escapava o som do apito fi...o..! f...i...ooooo! Através da roupa encharcada fio! fiiiiiio! fio! através da roupa do guarda de trânsito, a roupa gelada, hirtamente molhada, roupa molhada de frio; cada mexida do guarda, da veia, de um músculo... A mistura do apito nas tripas sofrendo, sofria fazendo fio! fiiiiio! fio! fio! Fazendo repetidamente fio! fiiiiiio! O trânsito se recompôs, porém. Barrigadear estava salva do guarda aflito que livrou os seus pés da água fria. Havia chovido muito na véspera, e poças d’água não tinham sido secas ainda em Barrigadear. G. e Titi, concluído o almoço, à tarde eles reuniram a família; ganharam a estrada numa longa viagem à Ilha. Deixando a rua onde o gafanhoto apaixonou-se pelas plantações e o passarinho pelo ninho da passarinha. Todos pegaram a estrada com as mãos. Titi dirigia o Pálio; subia Titi o Morro do Bumba Meu Boi, voltava ao Túnel da Vaca. Todos passavam no Morro Nariz de Palhaço e na Curva do Elefante Deitado. G., na descida abrupta, no Morro do Bumba Meu Boi, apontava; naquela altura, via o oceano espalhado, montanhas, curvas, corujas-buraqueiras e o céu azul. Onde a água salgada nivelava o mundo. Feias corujas conversavam longas conversas com as borboletas encantadas. Voou um martim-pescador-verde sobre o rio, pousou no galho de uma jaqueira. Rolinha-roxa solitária desceu à grama, e ficou esburacando a grama à procura de insetos. Cambacicas cantavam os seus atrativos cantos cujos sons se escutavam longe; elas falavam de seus amores não correspondidos, duma Santana que não existia senão em fotografias amareladas em caixa de sapatos. Uma maracanã-pequena assoviava o seu assovio triste e prolongado, bentevi-peitica respondia. Saíra-de-papo-preto cortejava saíra-ferrugem. Anu-preto parou sobre estaca na cerca que protegia a mata nativa. Zabelê fez barulho, longe de onde estava. Inhambu-guaçu anunciava chuva. Coleirinhas voavam sem ninguém saber donde; sumiram entre folhas de baraúna. Um velho cedro cochilava. Em que pensava aquele cedro ao dormir, o velho cedro o que sonhava? Sonhava com bons invernos, sonhava com os dias de chuva. A quixabeira mostrando todo o seu esplendor realçado sob os raios de um sol findo. Balançando-se os ouricuris conversavam, trocavam informações, faziam planos, acolhiam pequenas abelhas. Patativa-verdadeira cantava num galho distante. Urubus sobrevoavam uma carcaça. Mandacarus espalharam-se entre outras vegetações na caatinga de xiquexiques. Curió festejava curió, saíra-de-chapéu-preto misturava-se à andorinha-da-coxa-branca. Casaca-de-couro parado, triste. Codorna-amarela alçou voo ao rufar de asas, ganhou o leito do rio. Dois ou três cajueiros tingiam a paisagem. Velhas mangabeiras amontoavam-se. Rabo-branco-de-cauda-larga pousou num galho. A enorme Lua prateada despontava sobre um dos serrotes numa irmandade a Santana. Um dia, disse o sapateiro Titi ao filho G., já aos três anos de idade, estando eu aqui nesta parte da casa, o Sol começou a dar lições de moral aos bichos na beira do rio. Com quem, Senhor Sol, o senhor aprendeu a dar lições de moral? Aprendi com o escravo Esopo, foi o que me respondeu o Sol, Esopo que andou lá pras bandas do Egito, navegou pras bandas da Grécia Magna, terminou escravo pras bandas da velha Roma do pão e circo. Meteu-se Esopo num barco e acabou ilhado nas águas do São Francisco. Esse foi trazido a Santana por Bucho de Lama. Dela, ele ouviu, a literatura é uma pandorga que se solta e sai voando. Nunca se sabe onde vai parar, se no gerúndio do monturo ou na esquina do escândalo. Aparte-se dela, filhinho, se houver tempo hábil. Essa uma lhe consome tão rapidamente que você sequer enxerga. Vi tantos morrerem à míngua deste sonho e, antes do corpo esfriar, outros encheram caçuás e caçuás com o dinheiro das suas obras deixadas à posteridade, entregues ao espólio, furtadas pelo erário, exploradas até os ossos. O filho do sapateiro, agora aos dez anos de idade, já ajudava o pai a fazer xoboi, sela, gibão de couro. Desde Amsterdã, onde o capitalismo nasceu, ouvia-se falar em xobois, selas e gibão de couro do sapateiro G. Portugal era tão grande e, rapidamente, encolheu. Durante a viagem, sítios passavam, cancelas. Uma moeda, que foi arremessada, caiu e grudou à mão. E hoje mesmo tu serás cancelado caso não decifrares, na moeda estava escrito.

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