DIÁLOGOS III – VOVÓ MARIA BARBOSA E EU

Pe. José Neto de França

15 de junho de 2023. Noite chuvosa; passava das 20h quando, sentado diante de meu notebook, imerso em um turbilhão de pensamentos, resolvi voltar ao passado. Não ao passado próximo, mas ao distante. Essa técnica que uso quando estou agitado após um período de trabalho intenso, faz-me um bem imenso. Trata-se de uma catarse.

Comecei a “viajar”, mergulhando no século passado... década de noventa, de oitenta... aqui, vi-me há poucas semanas de ter ingressado no Seminário Arquidiocesano de Maceió, sangrando pela boca, vítima de um edema pulmonar... não, não quero me deter aqui, quero regressar mais no tempo. Vi-me agora no início da década de oitenta, trabalhando no Banco Econômico, rodeados de amigos... mas sinto que ainda não é aqui; quero me encontrar com alguém especial. Década de setenta, vi-me adolescente, descobrindo que não sou mais um menino... Vixe... passa... ainda não é aqui. Estou agora na década de sessenta, eu ainda menino na companhia de um doido que, com um canivete está riscando o meu peito (tórax), dizendo que vai beber o meu sangue... passa, passa que isso me gerou traumas... continuei regressando. Final da década de cinquenta, sentindo falta de ar, sem respirar direito, ouvindo a voz de meus pais e de uma pessoa desconhecida... estou vindo ao mundo... deixando para traz o útero de minha mãe... parto trabalhoso, de risco, estou com o cordão umbilical laçando meu pequeno pescoço... E agora? Sinto que preciso voltar mais além, mas como, se acabei de nascer?

Senti como que uma explosão seguida de um clarão a ponto de me fazer enxergar com dificuldade. Aos poucos, tudo foi se ajustando

Vi-me agora sentado em um banco de madeira rústica, encostado a uma mesa. Estava na cozinha da casa de Vovô França, esposo de Vovó Maria Barbosa, (sua primeira esposa). Sinto-me eufórico, não de medo, mas porque seio que era para ali que fiz toda essa viagem no tempo.

Há na cozinha além de prateleiras com algumas panelas, mais de barro do que de alumínio; um fogão a lenha, sobre o qual está uma panela, também de barro que cozinhava algo, pois o fogo estar aceso e sai fumaça por uma pequena abertura entre ela e uma tampa, igualmente de barro. Aliás, tudo ali é rústico, até a casa que é feita de taipa (barro com varas entrelaçadas) ... Sobre a mesa, um pequeno bule e alguns canecos de plástico.

Ouço passos vindo da sala ao lado. É ela, minha avó paterna. Não a conheci em vida, pois ela faleceu em 1947 e eu nasci em 1958. O máximo que vi relacionado a ela, foi uma foto daquelas antigas que era mais desenho do que uma foto. Também a vi em um dos sonhos realistas que tive, já na minha idade adulta. Mas não importa. Eu tenho certeza de que quem estou vendo é ela. Vovó traz nas mãos um pacote de bolacha.

Chegou à cozinha, está se sentando em outro banco no lado oposto da mesa, à frente de onde eu estou. Que emoçãão estou sentindo agora! Colocou café em dois canecos, está me oferecendo um; o outro está com ela. Delicadamente está colocando as bolachas em um recipiente de barro, deixando-o sobre a mesa ao alcance de nossas mãos. Eita! Agora olha-me nos olhos...

- Posso chamá-lo de Zeneto?

Disse-lhe:

- Bênção vovó. Pode sim.

- Deus lhe abençoe meu neto.

E a conversa prossegue...

- Vovó, há uma defasagem bem significativa entre a sua morte e meu nascimento. Mesmo assim, sem tê-la conhecido por causa disso, sempre tive um carinho imenso pela senhora.

- Sei disso Zeneto, por isso o visitei em um de seus “sonhos”.

- Naquele dia que a vi no sonho, tinha certeza de que era a senhora. Estava, nesse salãozinho aqui colado com a cozinha e a senhora, com uma vassoura varria o ambiente. A rapidez de como varria chamou minha atenção. Dias depois, conversando com mamãe, que a conheceu, ela confirmou que era a senhora mesmo.

Entre um gole e outro de café, vovó riu e falou:

- Meu neto. O tempo é só um detalhe. O que importa é o amor que une todos nós. O fato de que eu tenha morrido anos antes de seu nascimento não significa nada. Amo-te do meu jeito, como você me ama do seu.

- É vovó. A senhora sabe que eu sou muito sentimentalista. Amo o meu presente e amo o passado também. Como eu queria reviver todas as épocas já vividas e até outras de que só ouvi falar...

- Zeneto, não se deixe ser dominado pelo tempo. Ele flui como a água de um rio. Assim como você não pode encher totalmente uma de suas mãos de água porque o líquido escorre pelos dedos, assim é o tempo... Não o segure, ele, também, não vai te segurar...

- Sei disso, vovó! Por vezes, quero fraquejar, mas resisto. Confio muito em Deus. Aí de mim se não confiasse.

- Continue assim. Você já tem consciência de que mais cedo ou mais tarde, todos nos encontraremos...

- Vovó, tenho dois “espinhos” que carrego desde que comecei a me perceber como pessoa humano, ou seja, desde a mais tenra idade.

- Zeneto, há espinhos decorrentes de nossas próprias escolhas, mas há espinhos que fazem parte de nossa vida para que nos ajude em nossa evolução como pessoa humana.

- Mas logo dois?

- Zeneto, o que é dois, três, quatro... o que é um número senão uma categoria para indicar o tempo ou algo que esteja sob seu domínio? Já pensou nisso? Veja, que os tais espinhos (como você os intitula) que você carrega, se bem administrados, lhe ajudarão muito.

- De fato, vovó. Temos que focar não naquilo que passa, mas no que permanece. Pensando bem, enquanto vi um de meus espinhos, minha paranormalidade, como um problema, ele de fato foi problema, mas quando comecei a vê-lo como um dom de Deus, ele até tem me ajudado e ajudado a outras pessoas também...

- Isso mesmo, Zeneto. Se você pensar bem, sua paranormalidade nunca foi espinho. O que você enxergou como espinho, era dom de Deus. Hoje você já tem essa consciência. Isso chama-se maturidade. Eu até estranhei você se referir agora a pouco como sendo espinho.

- Desculpe-me, vovó. Mas e o outro?

- Sinceramente, você tem certeza de que quer falar sobre ele?

Pensei... pensei... e respondi:

-É vovó, acho melhor deixar quieto.

Vovó esboçou um leve sorriso, mas com o semblante de compaixão... depois falou:

- Meu neto. Esse é para sua edificação. Lute, resista. Cuidado, não se arrisque, não tome atitudes que venha a estagnar, fragmentar, destruir a busca de sua santidade. Você foi escolhido especialmente para uma missão. Você sabe disso.

- Fique tranquila vovó. Eu não vim (voltei) até aqui a troco de nada. Tinha que ouvir isso da senhora... Ore por mim... Eu orarei pela senhora e por todos.

Vovó e eu tomamos o último gole de café, olhamos um para o outro, pedi sua bênção e enquanto ela me abençoava, ainda ouvindo soa voz tudo desvaneceu...

Fiz a “viagem” reversa a que tinha feito, rápida como relâmpago...

Bem mais tranquilo, na vida que segue, estou eu!

Enigmas da vida!

[Pe. José Neto de França]

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