DIÁLOGOS II - MEU AMIGO NARCÉLIO E EU

Pe. José Neto de França

Eis que abrir uma página em branco no word, procurei uma lembrança que marcou de uma forma toda especial o meu passado e a primeira pessoa que veio ao meu consciente me questionou:

- Padre Zeneto! A quanto tempo!

- Realmente, meu amigo Narcélio! Nosso último encontro não foi muito bom, não porque não quiséssemos nos encontrar, mas porque foi quando fui me despedir de seu corpo inerte, na manhã que antecedeu o sepultamento, não seu, mas do seu corpo, veste de sua alma... Aliás, entre tantos fatos que marcaram nossas vidas, um deles foi o intervalo longo entre um encontro e outro...

- O senhor foi um dos meus melhores amigos, embora um inconveniente tenha motivado nosso afastamento no mundo temporal. Apesar disso, nunca esqueci te esqueci.

- Sei disso, Narcélio. Desde quando nos conhecemos no ano de 1973, início do ano letivo da 7ª série ginasial, no Ginásio Santana, hoje Colégio Cenecista, tornamo-nos praticamente irmãos, não de sangue, mas de coração.

- De fato Padre Zeneto. Meu sentimento era e sempre foi o mesmo. Sentia também essa correspondência de sua parte. Não havia tempo ruim para nós.

- Eita, meu amigo recordei agora de que sentávamos próximos um do outro na sala de aula, fazíamos trabalhos escolares juntos, eu te ajudava em Matemática e você me ajudava em Língua Portuguesa... Estávamos sempre juntos nos intervalos resenhando com os outros colegas, partilhando lanches, planejando brincadeiras...

- Sim Padre. Lembra-se de quando quase todos os dias você ia ao escritório de contabilidade de papai, que ficava na Rua Dr Arsênio Moreira?

- Lembro-me muito bem. Era lá que brincávamos, fazíamos trabalhos escolares, falávamos sobre as garotas da escola, conversávamos sobre a vida que se descortinava a nossa frente...

- Você se lembra das resenhas que fazíamos com uma vizinha do escritório?

- Eita Narcélio, lembro-me sim. Havia uma enorme goiabeira no quintal dessa vizinha. As folhagens ultrapassavam o muro e “invadiam” o quintal do escritório. Quando havia goiabas maduras, subíamos no muro e invadíamos a goiabeira do lado do quintal dela para “colhê-las”. Ela, uma senhora já de idade, possuía um papagaio que nos denunciava: “ladrão... ladrão!” Ela, então, aparecia e com um cabo de vassoura, literalmente, expulsava-nos do quintal. Não ligávamos para esse imprevisto; ao contrário, até provocávamos essa expulsão... coisas de adolescente.

- Saudades, Padre, daquele espaço físico, palco de nossas brincadeiras de dominó, ximbra, baralho, dados... brincadeiras que nossos pais proibiam, mas que nesse espaço declarávamos permitido. Rssssss...

- Narcélio, meu amigo! E o sorvete da Maguary? Juntávamos nossas economias, do que você ganhava de seus pais e do que eu ganhava com o suor de trabalho – eu era balconista (feirante) da Casa o Ferrageiro. Quando dava para comprar aqueles potes de meio litro, ficávamos empanzinados de sorvete, quando o dinheiro era pouco, apenas picolés... Rssssss...

- Oh tempo bom que ficou no passado cada vez mais distante...

- Pois é, Narcélio! E nossa amizade foi “dividida” entre o antes e o depois do casamento de uma de minhas irmãs com um de seus irmãos no início do segundo semestre de 1974, quando você e seus irmãos e irmãs foram orientados a se afastarem de minha família.

- Padre! Você sabe que aquela minha atitude aconteceu independentemente de minha vontade.

- Claro que sei, Narcélio. Uma amizade como a nossa não se acaba do nada, como de fato não acabou. Apenas mudou a forma de como tivemos que lidar. Isso faz parte do convívio humano.

- Naquele dia que cheguei ao Ginásio e falei contigo e você não respondeu e se afastou, inclusive mudando de lugar na sala de aula, tive até então a maior decepção de minha vida.

- Mais uma vez, perdoe-me Padre. Não foi minha intenção. Eu era apenas um adolescente, tanto quanto o senhor.

- Não se preocupe Narcélio. Compreendi que o problema não estava em você ou em mim, mas na questão criada por parte de sua família que não aceitou a união de minha irmã com seu irmão. Confesso que fiquei feliz em te encontrar em dezembro de 1977 à porta do Cine Alvorada, quando, de férias, vim visitar minha terra natal. Conversamos rapidamente sobre escola e que rumo estávamos dando a nossa vida.

- Eu senti muito a falta de sua amizade quando o senhor foi residir em São Paulo. E, também, fiquei feliz com esse encontro. Infelizmente, não existia mais aquela afinidade de antes. Tive vontade de estender nossa conversa, porém senti-me envergonhado pelos acontecimentos do passado.

- Ora Narcélio! Não sou de guardar ressentimento. Também senti vontade de demorar mais na conversa, mas fiquei temeroso de sua reação. São sentimentos decorrente dos fatos passados e da distância geográfica.

- Pois é Padre! Nossos caminhos diferentes fizeram com que se passasse mais ou menos trinta e cinco anos até um novo encontro.

- Isso, Narcélio. Recordo-me desse segundo encontro. Foi novamente em Santana do Ipanema.

- Sim Padre. Foi durante um evento promovido pela CASAL, hoje Águas do Sertão, que participei. Nossa conversa foi amigável e rápida... Notei, tanto da parte do senhor, quanto da minha, que o tempo foi quem se encarregou de fragmentar nossas afinidades, cumplicidades...

- Outro tanto de anos se passou e voltei a te ver no dia do casamento de minha irmã Salomé, justamente a viúva de seu irmão. Enquanto celebrava o casamento, percebi que você entrou na Igreja e sentou em uma das bancas, ficando até o final. Após o casamento, entre uma fotografia e outra, quando lhe procurei não te vi mais.

- Eita padre. Perdoe-me! Fiquei com vergonha de me aproximar do senhor.

- Ora, Narcélio. Já te disse que não guardo ressentimento de nada. É uma pena que não tenhamos nos falado. Peço perdão também pelo fato de não ter me aproximado de você.

- Tranquilo Padre.

- Narcélio! Como eu fiquei triste quando no domingo de 19 de outubro de 2014, após a Missa faz 7h na Igreja Matriz de minha Paróquia, Santo Antônio de Pádua de Major Isidoro,recebi um telefonema de minha sobrinha Aninha comunicando o seu óbito. Passei o resto do domingo fazendo todo um retrospecto de nossa amizade.

- Foi triste, Padre! Mas agora eu estou bem.

- Recordo-me de que em profundo pesar, na manhã de segunda, fui a Santana do Ipanema e me dirigi a Central de Velório OSACRE, local onde seu corpo estava sendo velado. Diante do corpo inerte e frio, no meu pensamento, com a velocidade de um raio, passou como que num “filme” todas as nossas aventuras da adolescência... Pensei: “O tempo, o espaço geográfico e as decisões individuais e coletivas, podem até ‘minar’ ou destruir uma amizade, mas nunca a história dos bons momentos de uma vida!” E continuei: “Deus lhe dê o descanso eterno, meu amigo!” Entreguei sua alma a Deus! Retirei-me e fui cuidar de minha vida...

- Importa agora, que o senhor siga adiante. Um dia, poderemos nos reencontrar no eterno... Parodiando o título de uma de suas obras, uma amizade verdadeira se prolonga por toda a eternidade. Até um dia, meu amigo Padre Zeneto...

- Até um dia, meu amigo Narcélio!

Enigmas da vida!

[Pe. José Neto de França]

Comentários