Racismo e pobreza: os limites do dolo e da culpa no Direito Penal

Adriano Nunes

Escrevo este pequeno texto a pedido de amigos e amigas. Estou muito preocupado com o incidente trágico que ocorreu com o menino Miguel. Não compactuo com clamores populares de prisões, principalmente aqueles que me soam como vingança e não como justiça. O Direito Penal existe independente de clamores. Todavia, sabemos bem que tal Direito parece ter sido elaborado para punir principalmente pobres, negros, miseráveis. As estruturas e agentes de poder que engendraram as leis penais sempre foram aqueles que detêm os diversos tipos de capitais sociais e poderes.

O primeiro questionamento que me fizeram era se ela, a patroa, se fosse mesmo racista, contrataria uma secretária negra. Respondo: sim. O racismo transforma seres em objetos, em coisas. A convivência do negro na esfera branca não se dá no mundo, para o racista, mas no "imundo". Neste espectro da existência, a pessoa negra é desumanizada. Então, para o racista, não há, ali, em sua frente um ser humano que lhe causaria nojo ou ojeriza. Está uma coisa, que pode ser útil ou inútil. Que pode ser usada ou destruída. Há a perda total da dignidade humana e uma falha completa das formas humanas de reconhecimento. Um embotamento pleno na esfera do amor e da empatia. Ocorre uma instrumentalização do ser humano negro por ser justamente negro. Há uma passagem muito exemplificativa desta perspectiva no livro "The Color Purple", de Alice Walker, aquela da personagem Sofia. Todavia, para caracterizar o fato em si como "racismo" precisaríamos fazer uma análise sociológica e histórica da vida de ambas as famílias no contexto do lar da patroa branca, se as crianças de ambas conviviam sem distinções, se havia laços de familiaridade, se a indiferença com a criança da secretária era a mesma com os próprios filhos, etc e tal. Os julgamentos morais precipitados também têm causado, no curso da história, injustiças também graves.

O segundo questionamento que me fizeram era se esse descuido grave cometido por ela em relação à criança negra ocorria se a secretária fosse branca. Esta é uma pergunta que imerge na esfera da conjecturas porque a fatalidade já ocorreu. Se respondemos que sim, que ocorria com uma criança branca, filha de uma secretária do lar, o racismo perderia espaço para a desigualdade social, para a pobreza. Se respondemos que não, tentamos anular a possibilidade anterior sem dar atenção ao fato de que, a priori, a condição de secretária do lar está amalgamada à necessidade de emprego, de renda. Nascem daí outros questionamentos e apontamentos. O maior número de secretárias do lar é provavelmente de negras. E isso reflete a desigualdade social que sempre afetou a população negra por diversos motivos e fatores, entre os quais o próprio racismo. Não é uma questão tão simples como vocês certamente passam a perceber.

Outro fator a ser levado em conta é que, como se trata de 2 mulheres, a sociedade socializou-se a cobrar mais e mais do papel feminino como cuidadora de crianças. Neste sentido, exige-se mais da mulher para que ela, por ser mulher, cuide das crianças, sejam delas ou não. Se em vez de uma mulher branca fosse um homem branco, talvez muitas cobranças morais e éticas fossem atenuadas.

Outro questionamento que me fizeram, agora do ponto de vista plenamente jurídico, era em relação à tipificação penal. Que crime cometeu a patroa? O Direito Penal tende a atender um princípio mor de Justiça, ante as possíveis arbitrariedades e abusos do Estado e contra as paixões, clamores e sedes de sangue e vingança das massas emotivas. O Direito Penal não deve comportar analogias, para não abrir espaços para injustiças graves. É ou não é. O fato concreto é que deve reger a análise penalista. Para que haja dolo é preciso que o agente (ou o omissor) tenha consciência de sua ação ou omissão, vontade livre, isto é, um querer positivo e aja ou se omita. Assim, o dolo pode ser classificado como direto (assume o risco e quer o resultado) ou indireto (quando assume o risco, ainda que não queira o resultado). Os crimes culposos decorrem de negligência, imprudência e imperícia. Não há consciência, vontade ou agir para produzir o resultado. Por ser um crime tipificado com pena de detenção de 1 a 3 anos, geralmente provoca clamores populares porque as pessoas acham que justiça se confunde com mais penas e mais severidade da pena.

Os crimes dolosos indiretos precisam ter na sua caracterização assunção mais previsibilidade concreta consciente. No caso de crime doloso indireto por omissão, a omissão teria que ter a máxima relevância do fato na produção do resultado. Tendo feitas as considerações supracitadas, tecnicamente o crime em que a morte do menino Miguel se enquadra é homicídio culposo por negligência. Sei, claro, que muitos não concordarão. Todavia, o Direito Penal não foi feito para agradar clamores populares que se pretendam, de algum modo, vingativos.


Adriano Nunes

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