"A mentira e o amor"

Adriano Nunes

Há um importante e interessante debate acerca da verdade e da mentira que Benjamin Constant (em "Des réactions politiques", de 1797) trava com os argumentos morais de Kant, que contra-argumenta em um ensaio chamado "Über ein vermeintes Recht aus Menschenliebe zu lügen", também de 1797. Cito-os, aqui, apenas a título de conhecimento. Recomendo ambas leituras. Sigamos.

O tema a que me proponho analisar, resumidamente, é sobre a mentira e o amor. Quem ama mente? Quem ama é capaz de mentir para proteger a pessoa amada? A verdade não protege a pessoa amada? Que interesses estão por trás da mentira e da verdade em relação ao amor? Esses são alguns dos questionamentos possíveis dessa relação complexa amor- verdade/mentira.

A meu ver, o verdadeiro amor suporta a verdade, seja ela qual for. A amplidão do amor parece estar mais relacionada com os possíveis efeitos dolorosos da verdade. Verdade, em grego antigo, é ἀλήθεια que, em seu sentido original significa verdade, uma não-mentira. Tal palavra deriva do adjetivo ἀληθής (verdadeiro, real, genuíno, leal, honesto). É importante esse sentido original de ἀληθής com honesto, pois dizer a verdade tem relação com a honestidade. Outro ponto importante é a sua relação com o verbo λανθάνω (e suas formas alternativas λήθω e λᾱ́θω em que a relação de origem fica mais evidente. A negativa dessas formas originárias traz à tona o sentido real de ἀλήθεια) que significa "perder a atenção", "esquecer", "fazer esquecer". Vejam bem: a verdade tem relação íntima e forte com a memória, o lembrar, o fazer lembrar. O império da verdade reside no acontecer do mundo real, na abertura histórica dos fatos.

A mentira, que é uma forma de fazer esquecer, de ocultar os fatos, pode corroer, de algum modo, a estrutura do amor. O amor exige a realidade factual. Sustenta-se no real e para o real. O amor não bebe da água do Lete. A mentira almeja uma realidade fictícia, onde as coisas possam ser esquecidas ou não lembradas. Mesmo a mentira que se queira protetiva, no sentido de evitar algum tipo de constrangimento, dor, angústia, mal-estar, pode causar danos ao alicerce do amor.

Se o amor tem quatro remédios (tempo, ausência, ingratidão e melhora do objeto), como espetacularmente dissertou António Vieira, a mentira parece ser um veneno corrosivo para o amor. Amor precisa de liberdade. Essa relação amor-liberdade traz em si um conteúdo racional para o amor, já que a liberdade é um dos fundamentos da razão. E, para a razão, mentir não é um fim em si mesmo, apenas mero meio instrumental. O mentir tem aparência de liberdade. Se o amor é uma alegria, conforme Spinoza ensinou, então, não deixe que a mentira, travestida de liberdade e proteção, tente estragar esta luminosidade alegre, veraz, que é o amor.


Adriano Nunes

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