"250 mil mortos"

Adriano Nunes

Estamos nacionalmente de luto. Lembro-me assustado da história bíblica de Jó. Voltarei ao enlutado adiante. É muito difícil e dolorosamente cruel constatar uma estatística dessas: 250 mil mortos! Tenho amigos e amigas que estão incluídos nesses dados. Uma dor a mais, para mim. Uma dor existencial suprema que denuncia a nossa futilidade e a nossa covardia cotidianas. Estamos ficando acostumados com a morte como se ela fosse um fato banal mesmo quando morrem a cada dia 1000 pessoas da mesma causa. O que nos deveria assombrar, alarmar, imobiliza-nos, torna-nos indiferentes.

É angustiante também saber que não temos estrutura para atender as vítimas. Primeiro, foi a escassez de álcool, máscaras e luvas. Depois a falta de respiradores. E logo a falta de testes para toda a população. A seguir a falta de leitos especializados. A falta de gente capacitada da área da saúde para dividir os trabalhos com os que estão sobrecarregados. Os fármacos que não servem para nada. A ideologia política impregnando a farmacologia em rede nacional, com outdoors e muito mais. A inexistência de uma vacina. Depois, a feitura e a vinda portentosa de vacinas e os novos embates da torcida do contra e as burocráticas e estressantes tratativas, seguidos das grotescas atitudes de algumas pessoas ao aplicar as vacinas. A barbárie filmada através de celulares. Os fura-filas. Os que querem usar o poder para furar filas. Os erros estúpidos de logística.

Todos(as) têm amigos e amigas, conhecidos e conhecidas que, de algum modo, contribuíram para que esse número fosse terrivelmente possível, tanto por outrora ter querido que se chegasse a esse estado político durante as eleições, este status quo nefasto, bem como por duvidar da pandemia e seus efeitos nocivos ou por acreditarem em crenças obscuras e absurdas e irem contra a ciência e a razão, sob um pathos nocivo político, ideológico e, até mesmo, fanático. Incapazes de reflexões sérias e autocríticas necessárias.

Estamos ante o espelho da razão crítica. Tudo dói. Somos, talvez, um fracasso enquanto seres habitantes da Terra, pretendentes do título de "racionais" e "humanos". Não aprendemos nada ou quase nada com o passado. Fascismo e nazismo viraram até slogan de uma nova era, com novíssimos adeptos bombados e com os olhos brilhantes frente à facilidade para obter legalmente armas. Não se envergonham de fazer saudações nazistas, de usarem camisetas com o rosto de Hitler e Mussolini.

Desinformação e o ódio à modernidade engendraram, de alguma maneira, séquitos de fiéis partidários ad hoc que seguem robotizados, qual manada em busca de amor num matadouro. A Terra a essa altura teme ser plana! Enquanto uns amaldiçoam as ciências e o conhecimento, apegando-se a sentimentos messiânicos e de revanche e vingança, gerando realidades fictícias, outros passam horas e horas ininterruptas em enfermarias e UTIs tentando salvar vidas, inclusive dos que praguejavam contra a medicina, contra a realidade fatual, contra as medidas preventivas, de saúde e proteção, contra o uso de máscaras e álcool em gel.

250 mil mortos. Vou-me lembrar, quem sabe, durante muito tempo, daquele discurso irracional do desembargador negacionista ao tomar posse como presidente de um tribunal. Vou-me lembrar de um abaixo-assinado feito por médicos que defendem o indefensável, por amaurose ideológica, por amor à azitromicina, à cloroquina e à ivermectina. Uma medicina eticamente corroída. Ah, quantos ataques à democracia! Ah, quantas festas e superlotações! Ah, quanto clamor desumano em nome da economia! Sim, em nome de um artifício humano que sequer pode existir se não houver vida! Mas, nestes tempos sombrios e caóticos, causas e efeitos se invertem ou se anulam a bel-prazer dos demagogos e autoritários. Origem e fim se mesclam sob a Wille zur Macht do fanatismo da vez. A vida é deixada a posteriori. É desprezada em nome do capital que, sem a vida, é o vazio, o vácuo, o nada.

250 mil mortos. E não se percebe brilhar a solidariedade humana. 250 mil mortos. E a compaixão se esfacela a cada artimanha de um Congresso que só pensa em se proteger das verdades e dos limites democráticos a seus abusos e privilégios. Poder e poder.

Estamos de luto. Volto a Jó. Que lições, escândalos e assombros pode trazer-nos, nesta pandemia, o Livro de Jó? Quais dos três foi mais cruel com Jó? Deus, Satanás ou os amigos de Jó? Aceitar que Jó, sempre temente a Deus, é vítima de um jogo de egos entre Deus e Satanás é mesmo pôr em dúvida a existência de ambos. Ou pôr em dúvida se ambos são mesmo divindades. É estranhíssimo que um Deus ceda à tentação de um ente maligno só para provar a este que um cidadão é seu "servo" fiel, inabalável. Jó parece ser a cobaia durante uma demonstração de força e poder entre tiranos.

Perguntaríamos se Deus é todo-poderoso, onipotente, bom. Esses são atributos de um deus. Seria contraditório se não fosse assim. Ora, se Deus é onipotente e bom, por que existe o mal? Essas três características parecem, juntas, incompatíveis. Para os Spinozistas, o mal não existe. Compreendo-os. A existência do mal põe, de algum modo, em choque/xeque a existência e o poder de Deus.

Jó perderá filhos e esposa. Estará em luto. Estar em luto, de acordo com Talmude, é uma quase inexistência. Não é uma dor a mais, tanto que o Talmude permite comer e beber vinho. Mas a vida social e as vaidades pessoais são durante sete dias proibidas. O Talmude também compara o enlutado ao exilado, ao banido. É como se não existisse. Que fazem os amigos de Jó? Acusam-no da culpa do que ocorrera a seus filhos. Um horror! Ou seja: atiram sobre a vítima do luto (Jó) a culpa do que está ocorrendo aos seus. Essa é uma das formas vis de negar a existência do mal. Pôr na vítima uma culpa que não é sua, isto é, retira a culpa de Deus, atirando-lhe a culpa de uma tragédia na face, numa acusação dura, abjeta. Ainda que Jó nada tenha feito para merecer isso, os amigos acusam-no de tal destino, acrescentam-lhe uma nova dor. Outra forma de negar o mal (assim tenta-se preservar a bondade de Deus e até mesmo a sua existência) é enganando a vítima (Jó) a ponto de ela considerar o seu sofrimento como um mal. Ora, se é um mal considerado pela própria vítima então esse mal não é um mal real.
Feitas essas considerações, chego a um ponto crucial deste ensaio crítico: com a pandemia, com tantas mortes na sociedade brasileira, a política nacional está, sob certa perspectiva, tentando se eximir dessa responsabilidade, parecendo querer dizer sub-repticiamente que a culpa é dos que morreram. Ou ainda: dos que estão enlutados, como se eles fossem culpados pelo que aconteceu a seus familiares. Ou ainda mais: age para que todos e todas sintam-se como que os seus próprios sofrimentos sejam algum tipo de mal. É inadmissível que 250 mil cidadãos e cidadãs tenham morrido nesta pandemia.

A história de Jó tem um final feliz. Todavia, os que morreram nela não retornaram. Deus livra Jó das acusações de seus "amigos", perdoados por Jó. Seria covardia de Deus se não fizesse isso, se lhes não dissesse que Jó não era culpado pelo que acontecera. 250 mil mortos à espera de uma consideração humana, demasiadamente humana: que outras pessoas não morram mais! Que os pretendentes a deuses da política e da justiça parem de brincar com as vidas alheias, parem de querer medir forças entre si e concentrem os seus esforços, objetivos e verbas conscientemente e eticamente para salvar todas as pessoas desta nação, sem distinção.

Adriano Nunes

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