ROTEIRO DO CONDADO DE GREEN

Ensaio

Por Tadeu Rocha

Em nenhum dos modernos contistas brasileiros a própria infância refletiu-se tão fortemente na sua obra de ficção como em Breno Accioly. Os nove primeiros anos de sua vida, passados em Santana do Ipanema, impregnaram de tal maneira a sua memória que mais de metade dos seus contos enfeixados nos livros João Urso e Cogumelos possuem cenários sertanejos ou personagens de nomes bem conhecidos em sua cidade natal. O resto da infância e a adolescência na capital da Província permitiram-lhe também tirar de algumas impressões belos contos de intensidade psicológica ou sentido poético. O menino matuto, que só conheceu o mar aos nove anos, guardou vivíssimas imagens da baía de Jaraguá, que mais de dez anos após surgiram recriadas nas embarcações, nas luzes e nos habitantes do Condado de Green, de onde fugiu Yana, em que desapareceu Cíntia e em cujo porto ancoraram os barcos Andaluza, Alone e Capricórnio. 0 Recife e o Rio de Janeiro também contribuíram para os seus contos, porém com os fatores propriamente literários que revestem a sua obra de ficção. Os elementos psicológicos ainda são os da infância e da juventude no sertão e no litoral da sua Província. A vocação de Breno Accioly para retratar estados psíquicos entre a loucura e a sanidade pode ser compreendida por qualquer pessoa que se transporte a Santana do Ipanema e ali conheça algumas personagens e muitos cenários dos seus contos.

Breno Accioly nasceu a 22 de março de 1921, num grande sobrado da praça principal da cidade. O seu avô materno, o “coronel" Manoel Rodrigues, descendente direto de um sertanista pernambucano – João Rodrigues Cardoso, o fundador de Águas Belas, não usava armas de qualquer espécie, nem tinha cangaceiros. Mas possuía espírito de iniciativa e capacidade de trabalho, de modo que os seus negócios industriais e comerciais eram prósperos e a sua casa muito bem arranjada: uma farta despensa completava-se com finos tallheres, cristais e porcelanas, e o sobrado todo iluminado a bicos de acetilene ostentava um piano Pleyel e um enorme gramofone inglês. Na parte térrea do sobrado, de grossas paredes de pedra, ficavam armazéns e depósitos. No primeiro andar e no sótão residia a família do coronel, verdadeira autoridade social no município: ele era banco, caixa econômica, cooperativa, sociedade beneficente,hospedaria e santa casa de misericórdia, tudo isso ao mesmo tempo.

Quando Breno Accioly nasceu, o coronel tinha falecido há menos de um ano mas o prestígio do sobrado era o mesmo: a viúva assumira a direção dos negócios e seu primeiro genro levara para a família a autoridade de promotor público, a três anos depois se converteu na de juiz de Direito da Comarca. Não era que a gente do sobrado tinha parentesco com o jurista Sérgio Loreto, governador de Pernambuco. A casa do coronel continuava sendo como ele quis em vida – “o seio de Abraão" –, hospedando governadores ou aventureiros, bispos ou vagabundos a enorme sala de visita “fim do Império", com cinco portas envidraçadas, no primeiro andar, abria-se para receber o governador Costa Rêgo e o industrial Lionello lona da mesma forma que antes acolhera os governadores Euclides Malta ou Manoel Borba o pioneiro Delmiro Gouveia e os arcebispos D. Sebastião Leme e D. Duarte Leopoldo. Mas também os humildes clubes carnavalescos da cidade, com fantasias de morcego ou negra da costa, subiam as escadas do sobrado e dançavam livremente na ampla sala de visita, desde a parede onde ainda estava entronizado o quadro do Coração de Jesus até a outra de que pendia um belo espelho oval biseauté.

Como toda casa velha que se preza, o sobrado também possui os seus fantasmas. Os parentes e amigos da família contam muitas histórias de assombração ali se passaram na infância de Breno Accioly. Durante alguns meses, quando a família rezava em conjunto uma das novenas do seu calendário litúrgico – São Sebastião, São José, o mês de maio, Santo Antônio, Nossa Senhora do Carmo, Senhora Santa Ana, o mês do Rosário e a novena de Natal --, uma voz misteriosa respondia à ladainha de Nossa Senhora: “rogai por nós". O juiz de Direito atestou que ouviu essa voz grave e compassada. Nos dois quartos e na escada do sótão, comumente se ouviam pisadas estranhas: ia-se ver, mas a porta da escada continuava fechada, ninguém de casa subira ou descera. E quando a família deixava o sobrado para viajar. muitas pessoas da cidade aglomeravam-se de noite na praça fronteira para ver as luzes que se deslocavam por trás das cincos portas envidraçadas do primeiro
Andar E havia discussão sobre a alma penada que aproveitava a ausência da família para povoar a sala deserta, fazer vibrar as cordas do velho piano ou acionar o veio do gramofone para que tocasse a Serenata de Braga ou a valsa Nid d´ amour em antigas "peças" da Casa Edson - Rio de Janeiro.

Foi entre as paredes desse sobrado que Breno Accioly viveu os seus primeiros sete anos, num ambiente de misticismo religioso, transações comercias e formalismo jurídico. Porém, na praça fronteira ele completou sua experiência de menino, entrando em contato com a cidade: no outro lado da praça, ficava a Matriz da Paróquia, dirigida pelo seu padrinho, o vigário José Bulhões (que veio a falecer no dia 17 de outubro de 1952); no lado esquerdo do logradouro, ainda não ajardinado, via-se do sobrado a escola pública da professora Zefinha (D Josefa Lima), sua madrinha de São João, que lhe ensinou as primeiras letras, juntamente com a devoção obrigatória a São José; nas duas casas à direita do sobrado residiam a avó e os pais de Agissé, Poni e Berenice Feitosa, cuja insanidade lhe inspirou as figuras de João Urso, Poni e Cíntia; e na segunda casa à esquerda morava o insuperável Hermídio Firmo (falecido em meados de 1951), que não saía nunca de casa e passava o ano todo executando encomendas de "mané-gostoso" ou imagens de santos, para na época da festa armar o seu sortido presépio. Foram esses vizinhos de Breno Accioly, tão inocentes como esquisitos, que melhor ficaram retratados nos seus contos. Foram como que superados numa recriação, onde o modelo é convertido numa personagem mais densa, mais humana, mais poética.

Ele tinha quase sete anos, nos começos de 1928, quando os seus pais tomaram casa noutra praça de Santana do Ipanema. Foi ali que o menino descobriu novas faces da cidade, com o mundo real da política (o governador Álvaro Paes era hóspede do juiz Manoel Xavier Accioly) e o mundo mágico do circo sem cavalinhos. Foi numa tarde de carnaval: os artistas do circo armado defronte do sobrado confraternizavam com a população em festa. Uma “troça" improvisada quis homenagear o Dr. juiz de Direito, a fim de dançar na única sala de tacos encerados que Santana do Ipanema possuía. O enorme palhaço, o mesmo que andava de pernas de pau e montava de costas no jumento do circo, agradou ao menino gordo fantasiado de marinheiro e tomou conta do piano Essenfeld com que o juiz presenteara a sua esposa. A ousadia do palhaço teve um êxito maior do que as músicas: aquele piano, que só se abria para que as leves mãos da sua dona tirassem melodias suaves ou acompanhassem o sopro da flauta do seu marido, recebeu percussões fortíssimas, que pareciam ver de um mundo bárbaro, em que havia sambas, marchas e foxtrots. Era, sim, um mundo diferente aquele do hábil palhaço: o próprio piano se transformou ao seu contato. Dentro de pouco tempo, o sopro da flauta do juiz começou a ter novas ressonâncias: esposa e filho acompanhavam-no a quatro mãos.

A matriz com o Senhor Morto na Sexta-feira Santa, o antigo Cemitério do Monumento, as bandas de música Carapeba e Aratanha (Breno era partidário da Carapeba), as sessões do júri presididas por seu pai, o juiz Manoel Xavier Accioly as evoluções da polícia, comandada pelo tenente José Lucena, de alpercatas e chapéu de couro, as visitas de Lampião ao município (em janeiro de 1927, Breno foi mandado para a casa do padre Francisco Macedo, em Palmeira dos Índios, por causa de Lampião), os enterros de defuntos pobres carregados em redes, as festas de Senhora Santa Ana, com o zabumba recolhendo esmolas para o leilão de cada noite de novena, o teatro da Agremiação Literária, Dramática e Beneficente, enfim, toda a vida municipal de Santana do Ipanema no terceiro decênio do século ficou gravada na memória do menino gordo e treloso. Quando em meados de 1930 seu pai foi promovido para a capital, a população da cidade. que homenageava seu antigo juiz, não podia imaginar que o menino carregasse no subconsciente uma parte da vida de Santana do Ipanema, que iria mais tarde ressurgir numa criação literária de repercussão nacional.

Em Maceió, Breno Accioly residiu sucessivamente na Pajuçara, em Jaraguá e na primeira ladeira do Farol, atrás da Catedral. Seus horizontes geográficos dilataram-se pelas águas da baía de Jaraguá, ao mesmo tempo em que sua vida se enriquecia com as novas convivências no Colégio Diocesano, nos clubes elegantes e nas rodas literárias da capital. Ao concluir o curso fundamental, em 1937, já escrevia contos no diário católico O semeador e foi com uma pequena bagagem literária de adolescente que no ano imediato se matriculou no curso pré-médico do Ginásio Pernambucano. Os cincos anos passados em Maceió e no Recife foram decisivos na sua carreira literária. José Otávio de Freitas, João Cabral de Melo Neto, José Vieira Coelho, Rui Belo, Evaldo Coutinho, Gilberto Freyre, Esmaragdo Marroquim e Mauro Mota foram os seus grandes amigos do Recife, que nunca lhe negaram um copo d'água, para usar uma sua expressão na dedicatória de Cogumelos a este último. E não pode ser esquecida a sua correspondência de então com Mário de Andrade, que sempre animou o jovem contista alagoano a prosseguir na sua obra literária, em que logo percebeu uma grande força criadora. Deixando a Província em 1943, já no ano seguinte encontrou editor para o seu primeiro livro de contos - João Urso –, cinco anos depois seguido de Cogumelos.

É nos contos João Urso e o Natal de Seu Hermidio, do seu primeiro livro, e em A valsa, Dois enterros, Cintia e Noiva, de Cogumelos, que repontam as memórias de infância de Breno Accioly em Santana do Ipanema. Não são fotografias que ele nos expõe, mas verdadeiros quadros, onde o pintor se inspirou em modelos para recriar personagens e sondar verticalmente as suas almas nas fronteiras da loucura. Agissé não é o mesmo idiota que reza na Matriz da Paróquia, faz propaganda nas ruas da cidade ou repousa nu em pelo debaixo de sua cama: ele está metido na pele de João Urso, olhando a trovoada por uma das janelas do sobrado do coronel Manoel Rodrigues, vendo os copos e as taças da cristaleira se encherem de vinho ao clarão dos relâmpagos e soltando estridentes gargalhadas que assombram a cidade toda. Seu Hermídio, agora morto, continua a ser "tão vasto como um rio, tão sozinho como um caramujo", para quem a vida só reservou uma alegria: o seu presépio, que armou 26 vezes, desde a festa em que Breno Accioly tinha apenas quatro anos, até o Natal de 1950.

O Condado de Green possui as lanternas, os faróis, os botes, os veleiros e os vapores da baía de Jaraguá, antes das obras do porto, nos tempos ponte de desembarque, dos trapiches e da luz do farol brilhando por cima da Catedral. "Os navios passavam no tempo de lua e, nas noites de ancorar, com lanternas e faróis acesos, a ilha presenciava o Condado de Green sair da sua solidão". Nessas mesmas noites, a baía de Jaraguá se povoava de embarcações, luzes, marinheiros e vagabundos. Entretanto, o Condado de Green poderia ser uma ilha do mar de Java, estar no Arquipélago de Salomão, ser uma insignificância no Pacífico, mas por se ancorar no Condado de Green sem rota, nem bússola, é que se sente uma grande paz, esse alívio de se ficar num lugar – num paraíso sem ninguém supor tal existe. O caminho do Condado é o roteiro dos bem-aventurados, dos se sentem cansados das estradas de pecado, dos que não podem mais divisar miragens imprevistas e que ancoram nessa enseada como necessitam de ancorar todos os navios de hélices partidas". Porém, é possível fugir do Condado: "Yana procurou o mar como estrada de salvação". E Cíntia não atendeu às vozes que chamavam pelo seu nome, “subindo e descendo dunas, correndo por toda a ilha, despertando cães, como todos vão ficar despertos no último dia do mundo". No Condado de Green não há lógica, nem moral. Ali é próprio reino da Poesia.

Antigo sobrado do coronel Manoel Rodrigues da Rocha, onde Breno Accioly morou. (foto: acervo Darras Noya/João Neto Félix Mendes).

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REFERÊNCIA:

ROCHA, Tadeu – Modernismo e Regionalismo – Maceió – AL EDUFAL 2014

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