Projeto Fábula no Atacama

Artigo

por Fernando Soares Campos(*)

.(Pouca carniça pra muito bico)

Já faz alguns anos que venho tentando escrever uma fábula ambientada no Deserto do Atacama. Pensei num diálogo entre um urubu e um preá agonizante. Já estava com tudo fantasiado, como quando eu era adolescente, no banheiro, prestando homenagem à saudosa Odete Lara. Mas, como desconheço a fauna do Atacama, pintou uma dúvida: não sei se no Atacama existem preás e urubus. Dizem que, nos oásis e margens das lagoas, podem ser encontrados flamengos, lhamas, guanacos e outras espécies. Bom, nesses locais, pode-se encontrar tudo isso, creio que até preá. Urubu, jamais; pois sabe-se que urubu prefere lugares mais hostis, onde preás morrem de fome e sede. Além disso, oásis não é deserto, é desvio de conduta, como a honestidade desde muito antes de Ruy Barbosa.

Pensei em exportar alguns urubus pra lá. Botei fé na verve. Aí meti o dedo no teclado e espantei uns três: Xô! Xô! Xô! Afinal, a viagem é longa, e um urubu só não faz. Verão.

Nada. Só consegui fazê-los alçar voo e ficar lá em cima planando em espiral e corujando a gente aqui embaixo.

Liguei para um amigo e pedi sugestão sobre como levar uns três urubus até o Deserto do Atacama.

— Como é que eu faço?

— Digite “teco-teco”.

— Pronto, digitei “teco-teco”.

— Agora, em vez daquelas faixas que os teco-tecos rebocam, digite “galinha morta”.

— Tá digitado, “galinha morta”. E daí?

— Amarre a galinha numa corda de uns vinte metros e levante voo rebocando essa isca.

— Saquei! Obrigado, amigão.

— Cara! não se diz mais “obrigado”. É “valeu!”.

— Tudo bem, valeu, cara!

Com uma galinha morta a reboque, decolei do aeroporto de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, com destino ao Chile. Quinze minutos de voo, olhei pra trás. A corda esticadinha. Lá na ponta, uma galinha planadora, linda, leve e solta, apesar de espetada num arame anzolado.

“Quando a gente cruzar os Andes, vai arrastar uma revoada de condor excitado.” Epa! E os urubus?! Cadê-los?! (Se esse texto fosse do Millôr, nos anos 1970, se tornaria objeto de interpretação nos cursinhos pré-vestibulares. E os professores justificariam o uso do “cadê”, classificando-o como “verbo de interrogação”). Os urubus continuavam lá distante, planando, espiralando numa corrente aérea qualquer. A galinha não provocou o menor tesão no pedaço.

Aterrissei e liguei novamente para o meu amigo diqueiro.

— Cara, não valeu, não! Os urubus não deram a menor bola pra galinha.

— Peralá! Você levantou voo hoje mesmo?!

— Claro, tenho pressa. Quero mandar a fábula ainda hoje para o editor.

— Assim não dá! Você precisa dar um tempo, pelo menos uns dois dias, até a galinha apodrecer. Urubu só se interessa por putrefatos.

— Valeu!

Digitei: “Uma semana depois...”. Apaguei e troquei por "A week later...", afinal, meu editor já me disse que vai tentar emplacar minha fábula na Disney Animation Production.

Decolei o teco-teco rebocando a galinha bichada. A duzentos pés de altitude, dei uma olhada em volta, a fim de localizar os urubus e atraí-los rumo ao Atacama. Céu mais limpo! Olhei pra trás e só vi a corda tremulando. Lá embaixo, no final da pista, uma mancha preta se movimentando. Mais de não sei quantos urubus estraçalhando a carniça!

Aterrissei.

Liguei para outro amigo diqueiro:

— Cara, me dá uma dica aí!

Falei da minha intenção de transportar uns três urubus até o Atacama, onde pretendia escrever uma fábula tendo como protagonistas um preá agonizante e um urubu faminto. Contei sobre a minha frustrada tentativa de atrair os urubus com uma galinha podre e tal.

— Já que se trata de uma fábula, urubu sabe ler. Então, você não precisa de isca natural — disse ele, demonstrando que manjava da coisa. — Você já tem o teco-teco digitado, o aeroporto, os urubus... plano de voo...

— Tá tudo aqui na tela do monitor.

— Digite “faixa”.

— “Faixa”.

— Bom, agora...

Aí o amigo mandou todas as coordenadas: faixa de cambraia, largura, comprimento e nome da isca, na cor marrom. Escrevi, e ele finalmente recomendou:

— Decole com a faixa enrolada, só deve soltá-la quando atingir uns quinhentos pés de altitude.

— Valeu!

Pronto. Tudo nos conformes, decolei. O teco-teco atingiu a altitude ideal. Soltei o laço do barbante que mantinha o rolo de cambraia preso à cauda. Deflagrou-se a faixa com o nome da isca. Dois minutos de voo e já estava sobrevoando o oceano. Olhei pra trás.

— Não! Cadê a cidade?!

Tremenda tempestade se aproximando. Era uma nuvem só! “Esse toró vai me pegar.” Não, nada disso! Tempestade coisa nenhuma! Era tudo urubu! Nunca vi tantos numa só revoada. Revoada? Não! Revoada é de ave com pedigree. Urubu é bando. À vante, um céu de almirante; lá embaixo, um mar de brigadeiro; à ré, uma umbrática visão... quer dizer, "urubrática". Milhares deles! Acho que exagerei na isca artificial. Olhei pra ela. Senti náuseas. Adernei a boreste e vomitei. Parte da urubuzada mergulhou atrás do vômito. “Porra! o cara poderia ter sugerido alguma coisa menos nojenta. Esse troço é muito asqueroso!”

Os urubus mais malhados já estavam bem próximos. Acelerei. Velocidade máxima, deixando pra trás tudo quanto é vírgula, ponto, ponto-e-vírgula, parênteses, o escambau...

"Se no Atacama não tiver preá legítimo, deve ter pelo menos algum roedor parente. E daqui pra lá esse bando de urubu vai diminuir, os mais fracos vão cair no oceano."

Oceano?! Peralá! Estou indo pra África! Chegar no Atacama por aqui, só se eu der a volta à Terra! Essa geringonça não tem autonomia pra isso! Se eu deletar “teco-teco” e digitar “jatinho”, os carniceiros não vão conseguir me acompanhar. Preciso voltar, pegar a rota oeste. Aí pintou um baita problema: se eu der uma guinada de 180 graus, vou estourar o teco-teco na nuvem de urubu. Olhei pra trás. Observei que considerável parte do bando havia desistido. Já dava pra ver grandes falhas na nuvem escura. Buracos brancos. Acho que entenderam que é pouca carniça pra muito bico.

Resolvi arriscar. Guinei a bombordo e mirei num espaço vazio. Vupt! Mergulhei! Senti o maior alívio quando vi a cidade do Rio de Janeiro lá na frente. Maravilhosa! Quando pousei, os urubus fizeram a farra, não sobrou um fiapo da isca artificial.

À noite, avaliando a minha malograda tentativa de escrever uma fábula ambientada no Deserto do Atacama, concluí que fui salvo pela pressa e pelo escasso material de que dispunha. Explico. Como vocês viram, leram e possivelmente sentiram, milhares de urubus desistiram do banquete, por entenderem que a carniça, apesar do apetitoso estado de putrefação, não ia dar para todos. Também teve aqueles que se contentaram com o vômito. Foi aí que apareceram os buracos brancos. Acontece que, devido à minha pressa e à pouca merda que eu dispunha para escrever o nome da isca, pintei apenas BOLSO.

(*)Fernando Soares Campos é escritor, autor de "Saudades do Apocalipse ̶ 8 contos e um esquete", CBJE, Câmara Brasileira de Jovens Escritores, Rio de Janeiro, 2003; e "Fronteiras da Realidade ̶ contos para meditar e rir... ou chorar", Chiado Editora, Portugal, 2018.

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