A criação da palavra surge da necessidade de expressão diante de uma nova realidade, seja na escrita, seja na fala. Desde o anônimo contador de histórias, o homem coletivo, que vem desde os tempos de Homero, como se fossem “homens narrativas” dos contos como os de “Mil e uma noites”. Sherazade vive unicamente na medida em que pode continuar a contar. Paul Zumthor diz que a palavra dita, a palavra cantada pelos poetas antigos é celebração; a transmissão do saber; não é diferente, dos nossos dias, da palavra televisada.
Palavra, escrita, falada e cantada.
A palavra cantada
Não é a palavra falada
Nem a palavra escrita
A altura a intensidade a duração a posição
Da palavra no espaço musical
A voz e o modo mudam tudo
A palavra-canto
É outra coisa
(Augusto de Campos)
Além da tradição da palavra escrita, existe a tradição da palavra falada e a tradição da palavra cantada. Existem historicamente, literaturas orais e literaturas escritas. Ignorar a existência das literaturas orais, no Brasil, é assumir uma posição racista e preconceituosa, diante da cultura do outro, segundo André Bueno. Sabemos que a língua portuguesa vem da tradição oral ou da escrita. Chegou aqui como um corpo vivo pulsante, via latim vulgar, pela boca do povo. Veio com a força, com a extensão e a variedade de manifestações culturais brasileiras, como a literatura de cordel, os cantadores de feiras, a música popular e todo o riquíssimo imaginário dos casos, lendas e provérbios, poético-religioso, ainda hoje, fortes no Brasil. A poética e estrutura oral são historicamente, muito anterior à tradição gutemberguiana, da palavra impressa e da produção tipográfica de textos. Antes da invenção da imprensa, a poesia era uma arte vocal que, em seus princípios tinha funções sociais muito fortes, ligados aos ritos e religiões. Tempos de poetas, como profetas, videntes, juízes, sacerdotes, xamã. Tempo de poesia como algo para ser falado, cantado, às vezes com acompanhamento musical, às vezes, junto com a dança.
O texto oral tem como valor a voz, mito e movência. A poética oral ou a literatura oral é a poesia como pulsão de ser na linguagem. Toda Palavra poética aspira a dizer-se, a ser ouvida. Sabe-se que sem a voz, sem o mito e sem o movimento das culturas, não poderá haver a tradição da oralidade. A tradição se renova por meio das iniciativas dos poetas, que se renovam e se recriam sem cessar. As obras repetidas e divulgadas sofrem uma série de refundições através dos tempos, estando em estreito contato com a memória do povo. No caso da literatura popular do Nordeste que sofreu refundições, podemos citar, por exemplo, “as novelas e os romances” de Ariano Suassuna, O Auto da Compadecida e Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, heranças do teatro vicentino. A poesia oral do poeta anônimo individual só foi reconhecida a partir do final do século XVIII, tendo alcançado o seu real significado com os trabalhos de Menéndez Pidal. Manuel Bandeira, José de Alencar, Jorge Amado, Rubem Braga e outros, receberam influências da poesia oral. Gil Vicente, dramaturgo português, representante da literatura renascentista portuguesa anterior a Camões. Gil Vicente incorporou elementos populares na sua escrita, influenciou a cultura popular portuguesa, que, consequentemente, serviu de espelho para o teatro brasileiro, especialmente, na dramaturgia Nordestina.
Falando da poesia citada no texto que diz: “a palavra cantada não é a palavra falada nem a palavra escrita”, certamente, que o peso maior está na palavra cantada. Ler poesias poucos se interessam, no entanto, certas melodias não saem da boca das pessoas. Ninguém sonharia em negar a importância do papel que desempenham na história da humanidade as tradições orais. Um exemplo entre muitos, um jornal francês publicou alguns anos atrás que “são compostas, a cada ano, na França, dez mil canções, entregues a 3.000 cantores profissionais” (Zumthor, Presença da Voz, p.10). Aqui no Brasil, conferimos o grande sucesso das duplas sertanejas. Com a valorização dos estudos folclóricos, começamos a interpretar melhor nossa literatura, compreendendo o sentido dos autos populares, a alegoria dos pastoris e das lapinhas, sobrevivência de velhos costumes portugueses e castelhanos, redivivos em nossos autos de natal, de que é exemplo Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto (auto de natal pernambucano). Assim, toda palavra poética aspira a dizer-se, a ser ouvida. O texto oral dito das várias maneiras possíveis tem como atuação a memória. Sejam elas europeias, medievais ou provenientes de culturas as mais diversas, como a brasileira e a africana, em seu universo de oralidade.
PALAVRAS
As palavras dormem
Descansam
Tornam-se invisíveis
Insensíveis
Até que um mágico
Desperta-as
Reanima-as
Daí as palavras crescem
Às maravilhas
Soltam-se galhardas
E faceiras
As palavras provocam rumores
Sabores
Humores
Consequências
Inconsequências
Transformam-se
Pelas mãos hábeis do poeta
O poeta que brinca e faz de conta
Transmuda-as
Explora-as
As palavras às vezes são ignoradas
Outras vezes são devoradas
Assediadas
Manipuladas
Aí se soltam felizes
Porque é o que elas desejam
A PALAVRA
CrônicasLúcia Nobre 27/09/2012 - 10h 18min

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