Fascismo como religião: a legitimação da violência

Adriano Nunes


Antes de perguntar-nos por que vasta parte da sociedade brasileira vem flertando com extremismos, principalmente de direita, antes de interrogar-nos em busca de uma compreensão racional acerca das investidas de religiosos na política e em setores ligados ao poder, como o judiciário, precisamos estar conscientes de que toda e qualquer religião é uma ideologia.

Sendo um conjunto sistemático de ideias cujo cerne gira em torno do sagrado, do controle social e de promessas de salvação e/ou recompensas futuras, isto é, através de um sistema organizado de símbolos, crenças e ritos, um grupo, uma comunidade ou uma sociedade (nos casos de teocracias) mantêm os seus indivíduos ligados através dessa ideia de sagrado a qual servirá de fundamento para engendrar dogmas e normas de conduta, ações, práticas, discursos e estados anímicos transcendentes que podem, também, até levar à fé cega, a fundamentalismos, a cruzadas extremistas, etc. Ou melhor: a variados graus e tipos de violência. Vejam, como exemplos, os ataques a Judith Butler quando veio ao Brasil, em 2017, os ataques ao jornalista Glenn Greenwald na FLIP em 2019, o ataque sofrido por Chico Buarque e amigos ao saírem de um restaurante, em 2015. O assassinato de Marielle Franco, em 2018. E muitos outros!

Como características desses atos, temos o extremismo, o culto à violência com a sua banalização, a intolerância ao diferente, ojeriza ao que pode ser tido como "de esquerda", elementos de patriotismo exacerbado, fundamentalismo, conservadorismo radical. Mas não só! Esta é a parte visível dessas violências. É a parte fenomênica observável.

Vistas sob esta perspectiva, as religiões não se amalgamam necessariamente a entes divinos metafísicos. Como nunca se materializou a divindade para todos, ao mesmo tempo e publicamente, sem mistérios, as pessoas passaram a creditar e a acreditar nos "enviados", aqueles que se dizem representantes do ente divino. Como bem sinalizou Eric Voegelin, na política moderna, verifica-se a emergência de homens cultuados como divinos, com uma missão messiânica apocalíptica capaz de mobilizar as massas através de um sentimentalismo religioso. Em seu brilhante ensaio "The Political Religions", afirma que "men can let the contents of the world grow to such an extent that the world and God disappear behind them, but they cannot annul the human condition itself". Como não podem anular a condição humana, quando as massas despertam do transe transcendental, a divinização cai por terra. Os defeitos, as falhas, os arbítrios, as cicatrizes dos atos e discursos são expostos, a crença é desfeita. Todavia, o rastro de dor, ódio, violências e misérias permanece.

Os "enviados", os "escolhidos", estandartes da esperança e salvação, na esfera terrena, poderão então ser (re)presentados por um pastor, um profeta, um político carismático, um tirano, um rei, o Estado, a pátria, o proletário, ou qualquer outro mito, objeto de crença e fé, que se proclame "enviado" ou "representante" do além ou, ainda, aquela pessoa e/ou aquilo que as massas, os séquitos de fiéis queiram determinar, através de suas crenças, como portadores da esperança, da salvação, pelo convencimento e percepção - sem quaisquer reflexões reflexivas! - do sagrado. Tornando-os "sagrados", as massas passam a cultuá-los. A crítica passa a ser desprezada ou ridicularizada. O irracionalismo arbitrário passa a contestar as verdades fatuais. E a sua arma é simplesmente a violência, nos moldes de um Sorel ou de um Maquiavel, com os fins justificando os meios. Procura-se inclusive em textos sagrados, arbitrariamente e irresponsavelmente, encontrar passagens e fragmentos que possam legitimar e justificar os seus atos de violência sagrada.

Assim, teremos todos os elementos essenciais de uma religião: fé irracional, mitopoiesis, mesianismo, simbolismo, ritos, asceses, conversão, catarses, sacrifícios, devoção, martírios, fanatismos, intolerâncias-tolerâncias, a eterna luta entre o bem e o mal. A questão é que o mal é visto como irredutível: é o outro, o diferente, aquele que não crê na religião política.

No âmbito político, os elementos religiosos servem de sustentáculo para a tática propagandística. A criação de mitos, os salvadores da pátria, os paladinos da justiça, os ungidos, os perseguidos, os humilhados, todos os portadores da boa nova. Tenta-se, deste modo, instituir a política como religião como algo advindo do além pelo Ser Supremo, sempre seletivo e perseguidor. É preciso propagar as ideias dessa religião! O Estado atua como o evangelizador, como o agente moralizador. As outras ideologias políticas são o mal a ser peremptoriamente combatido. E, por isso, são elas perseguidas até serem extintas do plano político, isto é: a boa nova é o partido único! A religião única! A do Estado, claro! E isto significa querer controlar as ações e discursos dos cidadãos(ãs). Os que não compactuam com a doutrina religiosa são perseguidos. Aqui, vale a pena lembrar o que nos alerta John Stuart Mill, em "On Liberty": "todas as tentativas por parte do Estado de influenciar as conclusões dos cidadãos em matéria de assuntos controversos são malignas."

Para adiante dar início à análise crítica, é preciso demonstrar que a ideia fascista se pretendia religiosa, isto é, quando Mussolini elaborou a sua Dottrina del Fascismo, ele deixou explícito que o fascismo deve ser compreendido como uma religião. No plano político, isto significa que a doutrina fascista precisa de pessoas que acreditem nela, na ideia fascista, de forma ativa, isto é, no Estado fascista, nas suas doutrinas, nas suas ordens, nas suas leis, nas suas arbitrariedades, na sua violência, na sua injustiça. É preciso crer que o Estado fascista salvará o indivíduo já anulado e reificado a serviço de uma Wille zur Macht. Vejamos como se expressou Mussolini:

"Lo Stato fascista non rimane indifferente di fronte al fatto religioso in genere e a quella particolare religione positiva che è il cattolicismo italiano. Lo Stato non ha una teologia, ma ha una morale. Nello Stato fascista la religione viene considerata come una delle manifestazioni più profonde dello spirito; non viene, quindi, soltanto rispettata, ma difesa e protetta."

Notem a parte final: "No estado fascista, a religião é considerada uma das manifestações mais profundas do espírito; portanto, não é apenas respeitada, mas defendida e protegida"

Esta defesa da religião pelo Estado, esta ligação íntima Estado-Religião precisam ser compreendidas de forma crítica. O fascismo e o nacional-socialismo proporcionaram acriticamente a validação de características religiosas nas políticas públicas, sobretudo quando promoveram a defesa exacerbada da pátria e, no caso do nazismo, da raça. O Estado se confunde com o ente metafísico. A grande glória passa a ser a glória estatal, porque o Estado está acima de tudo enquanto ente político e, acima de todos, enquanto elemento religioso. O "estar acima" é uma forma explícita de que a religião estatal e o Estado não respeitarão anseios democráticos. A democracia é inimiga de autoritarismos e teocracias. "Estar acima" significa desprezo pelas garantias e direitos fundamentais. Neste sentido, os mais vulneráveis, aqueles que não se enquadram no viés religioso estatal, passam a ser tratados com indiferença e desprezo. Mas não só: passam a ser vítimas de violências várias. Em nome da fé estatal, acima de tudo e todos, numa religiosidade política. Sim, esta é uma característica do fascismo.


Adriano Nunes

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