O culto à ignorância é uma das formas possíveis de retorno à barbárie. Com o culto à ignorância, vem o séquito do culto à violência e ao homem violento. É preciso compreender como se processam as práticas, atos e discursos que legitimam esses processos anticivilizatórios.
O que levaria pessoas a flertarem com tudo o que representa o anti-humano, o ataque concreto à razão? Antes de engendrarmos uma análise sociológica do problema, é preciso reconhecer que da razão, no decorrer dos séculos, declararam-se inimigos não só instituições e agências, mas grupos humanos organizados ideologicamente sob perspectivas e dogmas fundamentalistas e com pretensões de superioridade, sob uma ilimitada vontade de poder.
O culto à ignorância mantém íntima relação com o culto à intolerância. Talvez, seja possível dizer que tal culto seja um vestígio concreto da censura e da violência nefastas da Inquisição. Mas seria falho apenas considerar tais eventos históricos como as causas totipotentes ao culto à ignorância na modernidade. Antes mesmo da Inquisição, a Biblioteca de Alexandria tinha sido incendiada. Quantos filósofos(as) e pensadores(as) não foram assassinados(as) covardemente em nome de crenças?
A quem interessa a destruição das verdades fatuais, das verdades científicas, de todo o conhecimento humano, da razão, da crítica? A quem interessa que as pessoas mantenham-se desinformadas ou informadas de forma distorcida sobre tudo que houve e há? A quem interessa que as pessoas permaneçam ou retornem a certo grau de ignorância crônica? A quem interessa que a terra seja plana e que o nazismo seja de esquerda, que nunca houve ditadura? A quem interessa o elogio da tortura e da morte? A quem interessa que presidiários matem-se uns aos outros em presídios precários e desestruturados humanamente?
A quem interessa que as pessoas fiquem docilizadas, inertes, aceitem ver os seus direitos fundamentais serem retirados e acharem normal, ético e justo? A quem interessa que as pessoas ajam como se estivessem domesticadas, como se sob específica dominação, robotizadas para aceitarem e legitimarem o anti-humano?
A quem interessa que os trabalhadores tornem-se escravos do trabalho? A quem interessa que os estudantes rebelem-se cruelmente contra professores, tutores, mestres? A quem interessa que o meio ambiente seja destruído, pouco se importando com as gerações futuras, sob a funesta moralidade egoísta da ordem e progresso? A quem interessa a perpetuação de distinções, de separações, de políticas excludentes e discriminatórias?
A quem interessa a vida como mercadoria? A quem interessa que os presídios fiquem superlotados de negros, pobres, vulneráveis? A quem interessa a criminalização de jovens e adolescentes? A quem interessa o boicote à existência daqueles e daquelas que parecem já não ter existências por estarem à margem do todo social? A quem interessa o extermínio sistemático de LGBTQI+? A quem interessa a legitimação da violência para pôr em prática tudo isso?
Os que promovem o culto à ignorância, sabem bem por que o fazem. Costumam promover a naturalização e a aceitabilidade de racismos, preconceitos e violências várias, principalmente com o apoio do aparato tecnoburocrático e ideológico do Estado. E, claro, muitas vezes, sob argumentos religiosos dogmáticos! Partem de um princípio aparentemente simples: se o Estado é um ente legítimo, então, por dedução lógica, seria legítimo todos os seus atos. Numa rápida passagem ao passado, durante o julgamento de Nuremberg, veríamos o protótipo dissecado desta prática: não alegaram os nazistas que cumpriam ordens legais e legítimas? O culto à ignorância faz com que a razão e a crítica cedam à ideologia e ao horror. Ao negarem-se fazer reflexões reflexivas sobre os seus atos de comandados, os oficiais nazistas não só compactuavam com a barbárie, mas acreditavam religiosamente que estavam fazendo o que era certo, legal e legítimo: o anti-humano era legitimado em nome do aparelho estatal.
Possivelmente, ao promover o culto à ignorância, as ideologias que o fazem procuram evidenciar, com argumentos retóricos e falaciosos, com fake news até, muitas vezes, argumentos bem construídos, com apelo populista e de pretensão de mobilização de massas, que a existência é bipartidária, isto é, há dois lados: o do bem (o das ideologias que assim se percebem!) e o do mal (os adversários e, neste caso, a razão e tudo que dela emana e transcende).
A promoção do culto à ignorância pretende engendrar humanos anti-humanos. Para isso, procura justificar-se eticamente e moralmente por alguns argumentos, tais como: a defesa e a idolatria exagerada da pátria (o que promove um chauvinismo perigoso) e a exaltação de uma religiosidade política ou de uma política religiosa(a crença de que algum ser divino predestinou e dá legitimidade absoluta a todos os atos e discursos praticados, inclusive assassinar em nome da divindade!).
Adriano Nunes
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